A lista dos portugueses que participaram na luta contra a ocupação alemã de França conta centenas de nomes, que De Gaulle fez questão de não destacar na hora da vitória. José Manuel Barata-Feyo conta a história esquecida.
Sob o título A Sombra dos Heróis o jornalista José Manuel Barata-Feyo revela finalmente a história desconhecida dos resistentes portugueses que lutaram contra o nazismo. Além de confirmar o desinteresse dos historiadores franceses em destacarem o papel dos portugueses na luta contra os alemães, uma situação a que De Gaulle deu início de forma a suavizar o sentimento de derrota vergonhosa e humilhante dos franceses, também os que têm estudado o assunto em Portugal pouco ou nada falaram sobre esses herois.
Para o autor, apesar da profusão de nomes e histórias de vida de centenas de portugueses que retrata nesta investigação, a "lista não está fechada". Explica nesta entrevista que "já depois de o livro estar na gráfica, recebi um e-mail com o nome de dezoito portugueses fuzilados ou assassinados pelos alemães", sendo que "metade deles não consta do livro. São heróis que ainda estão na sombra!"
Porque foi o contributo dos estrangeiros escamoteado em França até 2014?
Em parte porque alguns documentos foram considerados secretos durante 70 anos, até 2014. Mas sobretudo porque isso correspondeu a uma opção política. A França estava traumatizada pela derrota de 1940 e pela resignação generalizada dos franceses durante a ocupação alemã. Na hora da vitória, numa perspetiva de futuro e de "colar os cacos" de Gaulle quis enfatizar sobretudo o papel dos soldados e o dos Resistentes franceses. Paris "libertada com a participação da França inteira"...
Poucos são os portugueses que não têm de reclamar os seus louros. Não podiam ter sido respeitados logo?
A França reconheceu individualmente o mérito dos portugueses que resistiram à ocupação nazi, atribuindo-lhes condecorações e honrarias no pós guerra. O mesmo aconteceu com todos os resistentes, de todas as nacionalidades. Porém, ao contrário do que se verifica com outros (espanhóis, polacos, arménios, judeus), os portugueses nunca foram objeto de estudo e análise por parte dos historiadores que se debruçaram sobre esse período. Nem em França, nem em Portugal. Como um todo, os portugueses estavam absolutamente esquecidos na memória coletiva dos dois países.
Receia que a ideia que pode ficar para a História é a de que os portugueses estiveram ausentes dos combates travados contra os nazis?
Essa questão ultrapassa-me. Sou apenas um jornalista. Um "historiador do presente" que fez uma incursão na História. No que respeita a Portugal, a resposta depende apenas dos portugueses e dos decisores políticos. A começar nas aldeias onde cada resistente nasceu e, como um todo, a acabar onde se julgar adequado. Mas uma coisa é certa: agora já não se pode invocar a ignorância para nada dizer ou fazer.
Partilha da opinião de que "seria mais exato falar de resistência em França do que de resistência francesa". Porquê?
Essa conclusão é do historiador britânico Robert Gildea. Concordo inteiramente com ele. Ao estudar os vários movimentos da resistência aos nazis em França, torna-se evidente que um número decisivo de combatentes estrangeiros participou nesse combate, em França, embora fossem estrangeiros.
É longa a lista de portugueses que participaram na luta contra a ocupação de França. Conseguiu reunir todos os nomes ou ainda faltam?
A lista não está fechada. Já depois de o livro estar na gráfica, recebi um e-mail com o nome de dezoito portugueses fuzilados ou assassinados pelos alemães. Metade deles não consta do livro. São heróis que ainda estão na sombra... Outros mais haverá, certamente. E é preciso não confundi-los com os 905 portugueses que se ofereceram como voluntários para o exército francês entre o momento da declaração de guerra da França à Alemanha nazi, a 3 de setembro de 1939 e o armistício de junho de 1940. É uma matéria que já estou a investigar e, provavelmente, o objeto de um próximo livro.
Faz esta afirmação: "Proporcionalmente, houve mais portugueses que franceses a combater os nazis." Podemos quantificar quantos portugueses estiveram com os resistentes?
Comprovadamente 360. Mas outros haverá. Talvez 500, no total, mas o número é especulativo. O resto é uma questão de aritmética. Na altura, havia em França entre vinte e cinco a trinta mil portugueses. Cerca de 1,5% resistiu ou seja sensivelmente o dobro da percentagem de franceses. Estou a levar em conta a população da França na época e o número de cartas de resistentes que ela concedeu no pós-guerra.
Como surge a ideia de avançar para esta investigação?
Foi um desafio lançado pelo autarca Rui Moreira, em abril de 2016. O mérito é dele - e a vergonha é minha: tendo estado refugiado e, no total, vivido em França mais de uma década, e sendo jornalista há quarenta anos, nunca tinha tido a curiosidade profissional de colocar e colocar-me a pergunta "não houve portugueses a combater os nazis durante a ocupação da França"...
Foi fácil biografar todos estes casos?
Depois de apanhar "o fio à meada" foi relativamente fácil, embora muito, muito trabalhoso. Mas até lá, foi desesperante. Não há rasto de portugueses em lado algum, nem em França, nem em Portugal. Os casos estudados e publicados entre nós remetem para os portugueses "coitadinhos", atirados para os campos de concentração nazis. Não encontrei uma única linha sobre os que se ergueram e combateram, tantas vezes acompanhados apenas pela sua consciência e pelas suas convicções. Depois tratou-se de consultar e fotografar milhares de documentos nos arquivos do ministério da Defesa francês, em Paris, interpretá-los e classificá-los de acordo com o critério que me pareceu mais justo e adequado. A documentação durou meses.
Os arquivos estão todos abertos ou ainda há informação inédita para consultar?
Não posso excluir que existam arquivos regionais em França que tenham escapado à minha investigação. Há dezenas deles, talvez centenas. Por outro lado, os "agentes secretos" da França Livre, que trabalharam para de Gaulle ou para os Aliados durante a guerra, continuam ainda algo secretos. É uma secção à parte nos arquivos franceses, que não pude consultar. E depois, como nós, jornalistas, sabemos, um dossier está sempre aberto.
Pode dizer-se que houve cenários e atuações em que os portugueses tiveram mais presença?
Não. A regra é que os portugueses estavam espalhados pelo território francês e que resistiram nas cidades e nos campos onde trabalhavam e viviam.
Há uma 'classe' especial, a dos "repetentes". É o mesmo ideal que está presente nas várias guerras?
De todo. Os portugueses que tinham participado na guerra de 1914/1918 eram elementos do Corpo Expedicionário Português, enviados pelo governo de Portugal. Ninguém lhes perguntou se queriam ir ou não. Acontece que alguns ficaram ou voltaram a França no fim da guerra, quase sempre para casar com uma francesa que tinham conhecido quando eram soldados. Pode haver semelhanças, isso sim, com os portugueses que, por razões ideológicas, tinham combatido em Espanha, do lado da República, e que, após a vitória de Franco, se tinham refugiado em França, em 1939. Mas, no conjunto, todos esses homens, sobreviventes da Grande Guerra ou da Guerra Civil espanhola, têm um mérito particular. Já não tinham quaisquer ilusões românticas sobre a guerra. Haviam sofrido na pele as suas piores abominações e, ainda assim, voltaram a pegar em armas e a combater. Chapeau, como dizem os franceses.
O caso de Hortense Antunes não é o de quem foi apanhada pelas circunstâncias mas apreciava a vida militar. Era caso único?
Não sabemos se, num primeiro tempo, ela apreciava ou não a vida militar. Quando foi para Londres e se voluntariou para as forças da França Livre era apenas uma jovem rapariga civil que poderia ter sido destacada para ajudar em secções administrativas como estenodactilógrafa. Mas sabemos que, depois de ter sido incorporada no exército, escolheu sem dúvida a vida militar, onde continuou longos anos, já depois de a guerra acabar, talvez até morrer. Em contrapartida, houve alguns portugueses que optaram por combater os alemães como voluntários no exército da França livre e que se juntaram a de Gaulle na Grã Bretanha ou, mais tarde, na África do Norte. O caso mais notável é o de Rogério Flores. Nascido em Tavira, simples ajudante de pedreiro e soldado raso, subiu na hierarquia militar, chegou a oficial e acabou capitão do exército francês. É um caso raro, sobretudo tratando-se de um estrangeiro. Recebeu as mais altas condecorações militares francesas por feitos em combate e foi homenageado de uma forma muito invulgar. A Escola Militar Inter-armas francesa escolheu-o para padrinho da promoção de 2009, que tem o nome dele desde então.
Não encontrou em Portugal descendentes dos resistentes portugueses?
Tentei, mas não consegui, salvo uma honrosa exceção. A quase totalidade das câmaras municipais e das juntas de freguesia que contactei não quiseram saber dos seus conterrâneos para nada. É um desinteresse que não compreendo, numa matéria que só poderia honrá-las - para além de tratar-se de elementar justiça para com os seus antepassados. Um autarca chegou a responder-me "Oh amigo! 1944? Eu ainda nem tinha nascido"... No entanto, nos anexos do livro, publicamos uma lista do local de nascimento dos resistentes portugueses. E tenho à disposição dos descendentes e das autarquias toda a documentação que consegui reunir sobre cada um deles. Basta pedirem à editora.
A Sombra dos Heróis
José Manuel Barata-Feyo
Editora Clube do Autor, 315 páginas
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