sábado, 5 de janeiro de 2019

As galinhas do medo

As galinhas do medo
O documento vasado pela justiça americana sobre as dívidas ocultas diz que a EMATUM foi criada para se poder ter um empréstimo adicional para pagar parte das dívidas da Proindicus. Não riam! Isso é verdade. Aconteceu, pelo menos segundo a acusação da justiça americana! Alguém pensou que isso ia dar certo: fazer empréstimo multimilionário de um projecto sem viabilidade para pagar dívidas de outro empréstimo sobredimensionado. O tal estudo de viabilidade [da EMATUM] que dizem existir, nunca foi tornado público, mesmo nos momentos mais acesos do debate. Seria interessante ver que argumento está lá.
Como justificação das dívidas que criaram as três nefastas empresas, vimos discursos que os agrupo em dois tipos. O primeiro, sobre soberania. O segundo, mais tecnicista/supostamente científico, sobre o próprio debate público.
O primeiro (da soberania), funcionou como uma forma de intimidação e de tentativa de criação de uma narrativa patriótica e até de heroísmo. Até tivemos direito a um texto "aos companheiros de trincheira", cujo autor dava o peito às balas pela defesa da tal causa nacional. Qual abnegado herói disposto a morrer pela sua pátria amada. A par disso, também houve uma sistemática sabotagem e ameaças aos que debatiam este assunto publicamente, com direito a textos a circularem nas redes sociais a rotular as pessoas de "agentes de interesses estrangeiros". Também jovens zelosos de uma certa organização partidária não mediram esforços em intervir de forma arruaceira em debates da sociedade civil sobre o assunto, nos quais em certas ocasiões apenas apareciam para discutir pessoas e nem ficavam para as respostas ou o debate.
O segundo, o tecnicista/“científico” – sobre como participar de forma "sensata", “científica”, “informada”, “cidadã” e intervir no momento certo (regra que claramente não se aplica aos mentores dessas ideias, “que sempre sabem” qual é o momento certo de intervir) no debate público. Este discurso, mais manipulativo, funcionou como uma tentativa de incutir a auto censura, na busca de validação cientifica ou técnica dos que se consideram autoridades cientificas ou técnicas, ou na busca de enquadramento social e referências cognitivas ao pensamento das pessoas. A cidadania, o direito de participar e ser ouvido, independentemente das suas capacidades intelectuais ou técnicas, tornaram-se apenas numa ténue referência (se é que existia) em tais mentes iluminadas e supostamente iluminantes. Essa reflexão não parece ser relevante para essa “pedagogia da cidadania”.
À medida que se confirma e se revela detalhes dos contornos deste caso, fica claro que ambos os discursos não foram para além de uma tentativa de criar medo no debate público e/ou não conseguem passar apenas de justificação da escandalosa roubalheira de que fomos vítimas. De forma mais sistémica, da justificação (deliberada ou ingénua) daquilo que à esta altura podemos seguramente chamar de uma cleptocracia que capturou as instituições do País. Portanto, além da fraude descarada que é descrita no documento da justiça americana, este grupo usou as instituições do Estado, incluindo o aparelho repressivo, os impostos dos contribuintes, para marcar a sua posição. A frase do Mia Couto, sobre os homens que aos nossos olhos se transmutaram em várias personagens e que no fundo não passavam de ladrões, é a epítome desta ideia.
Não há muito de positivo que possa vir de um grupo governante (e seus satélites e fieis seguidores) que cultiva o medo, seja a partir da repressão ao debate público e a exigência de responsabilização, seja pelo pseudo debate intelectual, que mais do que educar, tenta formatar maneiras de pensar e intervir na arena pública. O último, uma espécie de banditismo epistemológico (que difere expressão usada por Boaventura Sousa e Santos “de fascismo epistemológico”, porque neste há alguma dose de honestidade intelectual, embora maligna), que não é nada mais do que a expressão intelectual da tentativa de defender interesses de grupo. 
Uma das coisas que esta cultura de medo criou é a complacência com que a sociedade viu as suas instituições serem subvertidas e usadas em prol de um grupo, inclusive para a violentar psicológica e fisicamente, incluindo através da imposição de um injusto fardo económico e social. Agora ainda volta o debate da soberania, ignorando-se o facto de que não só a justiça nacional se manteve inoperante (porque manietada), mas também os crimes de que os personagens aqui referidos são acusados foram cometidos em jurisdição estrangeira. Sobre os crimes cometidos em jurisdição nacional, ainda há muito espaço para a redenção das nossas instituições, mas a nossa nefasta formatação política nos aconselha a “aguardar serenamente”.
Se há alguma lição que se pode tirar disto é que acalentar esta cultura de medo não nos vai levar a lado nenhum. Certamente existe uma componente de violência nestes grupos que não deve ser negligenciada e ela foi sendo usada ao longo deste processo (outro assunto que deveria ser investigado pelas instituições, se funcionassem como deve ser). Mas pessoas e grupos que recorrem a esses expedientes não têm nenhum projecto benigno para a sociedade. Aliás, só faz sentido cultivarem uma cultura de medo, que limita o debate e a responsabilização pública, quando o objectivo é preservar privilégios indevidos e interesses que divergem dos interesses mais amplos, porque nestes casos o debate aberto e sem barreiras é a forma mais legítima.
Se continuarmos a acalentar este medo, não seremos nada mais que parte da capoeira dos milhões de galinhas a que um dos co-conspiradores (como é chamado no texto) se refere, ao gulosamente exigir o quinhão desta roubalheira para alimentar a gula dos seus comparsas. Com este tipo de patriotas e defensores da soberania, não há muito a esperar do nosso futuro como País.
Comentários
  • Zacarias Sabino A justiça americana é estável e inspira confiança
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  • Chung Lee Os juizes do tribunal administrativo devem estar baralhados
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  • Francisco Simango Uma pátria cujo destino se desconhece. Uma pátria onde o reunido é daqueles que tem uma quantidade considerável de frangos. Lamentável.
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  • Manganhe J. Vicente Professor, o que podemos fazer como cidadãos lesados, roubados e magoados por esse grupo.
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    • José Jaime Macuane Uma agenda séria de reforma política e das instituições deste país. Começando pelas eleitorais, passando pela responsabilização pública, como declaração pública de bens, etc, etc. A lista é longa e o trabalho é muito. Mas ideias não faltam.
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    • Aires Cafre É simples. Outubro está à caminho. Derrubá-los por voto e não permitir de forma nenhuma k um punhado de ladrões k compõe o STAE, CNE, CC os declare vencedores.
    • Agast Mandu Aires Cafre eu acho que nem irão se preocupar em roubar votos, estão desnorteados
  • Ndungazwi N'lhanvu Quem fala em combater a pobreza é o primeiro a criar instituições informais que isolam o crescimento económico. Seja como for, conhecemos os inimigos do desenvolvimento, os beijamos como o noivo beija a sua prometida, e nos curvamos aos seus pés num simples acto de reconhecimento da grandeza do “Deus Sol”. Por esta e outra razão, se sentem capazes de nos intimidar, afinal não há Davi para desafiar o Golias.
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  • Remane Abudo Hummmm
  • Enio Jorge Malema Nossos dirigentes são uma máfia
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  • Brazao Catopola Quando saiu o relatório da Kroll ou parte dele eu questionei se os que defendiam acerimamente tanto cientica ou politicamente as dívidas faziam-no por convicção ou medo de a verdade aparecer. Está aqui no Facebook... Agora com este texto vejo dissipar parte das minhas inquietações.
  • Jaime Luis Jemuce As nossas instituições mostraram-se incapazes de resolver este assunto a tempo hábil, pelo fato de estarem acovardadas até ao pescoço. Isso é típico de um país sem rumo, país de desgraçados que não fazem mais nada se não deixar o seu povo mais pobre do que antes. Dirigentes como esses merecem estar na pocilga, prisão perpétua, bloquear todos os seus bens à favor do povo, repatriar estes dinheiros roubado e depositado em bancos no exterior de volta ao nosso país para financiar projetos viáveis.
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  • Yussuf Adam edo, repressao, conivencia e denuncia publica. O Azagaia e um exemplo de denuncia . Nao e o unico... nao somos todos ladrfoes e corruptos...
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    • José Jaime Macuane Claro Prof. Yussuf Adam, o texto identifica quem são os alegados ladrões. O medo ainda é uma realidade na nossa sociedade, apesar de vozes corajosas como do Azagaia e outras, incluindo a sua. Mas não basta. Uma sociedade não pode aceitar que os seus governantes, que devem servi-la, lhe imponham medo e usem isso para tirar benefícios próprios e ainda precisamos caminhar muito para enfrentarmos o medo. Provavelmente porque as pessoas pensam que só podem agir quando não tiverem medo. O medo deve ser enfrentado, porque sempre vai existir.
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    • Jeremias Faustino Nicuamuetane O medo deve acabar para defender a soberania do povo humilde e apesar por ser chefiado por ladrões.
  • Abelarto Eugénio Guambe Muito obrigado pelo texto Dr. Ja agora qual seria a estrategia para Separaçao dos tres poderes antes das gerais de Outubro? Eu em particular estou diaposto a dar o meu contributo como cidadao Mocambicano
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  • Juma De Alzira Paulo A justiça moçambicana é uma farsa, silêncio total, ó meu deus!!!
  • Gilberto Correia A subversão do conceito e dos valores do patriotismo, a negação de outros patriotismos, o medo e intimidação, o G- quarentismo, tudo foi usado para defender um grupo de oportunistas e gananciosos que se acharam no direito de enriquecer ilicitamente à custa da pobreza do seu povo, sem questionamentos e nem contestações. 

    Ainda bem que nesse aspecto nunca estive do lado errado da História. 

    Tu José Jaime Macuane mereces todo o louvor e reconhecimento por teres dado o “ corpo às balas” pelo não à cultura do medo e por um Moçambique com democracia, Direito e boa governação.
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    • José Jaime Macuane Caro Gilberto Correia, o seu engajamento e alinhamento está registado. You never let us down. Obrigado pelo que me toca. A sociedade tem que lutar contra essa intimidação e não enfraquecer, mesmo nos momentos difíceis.
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    • Jaime Luis Jemuce Gilberto Correia agradeço a sua fala, sou seu grande admirador de sempre, desde do futebol que te assistia na Beira, no campo das maristas e palmeira I. Onde fomos vizinhos por muito tempo. Abraços
  • Oliveira Junio O futuro brilhante que os moçambicanos tanto almejavam já está a caminho,foi bastante difícil encarar momentos amargos criados por um grupinho de bandidos lesa-pátria mas temos que ter fé que Deus é soberano e dias melhores se avizinham.
  • Bras Combo O silêncio de um governo mudo e surdo como é o caso do nosso, fortifica a tese de que "a nossa nefasta formatação política nos aconselha a aguardar serenamente".

    Devemos nos reinventar enquanto povo soberano, mas para tal, a ajuda da justiça forasteira é muito bem vinda. Cá dentro os titulares das instituições de justiça estão todos trémulos.
  • Jorge Matine Por isso José Jaime Macuane intimidavam-nos com a "perna da Galinha", sentavas num cafe e bem pertinho sentava outro e as vistas levantava a camisa para olhares tão bem a "perna de galinha", afinal era porque foram milhões de galinha que tinham chegado a capital. abraço.
  • Stiven Ferrao Estado falhado ou Capturado. Ja há muito falava-se nos debates de Gangstarização do Estado. No livro intilulado: "Democratizar a Democracia" da autoria do IESE argumentava-se sobre o risco do Estado se tornar mais opressor em virtude das descobertas dos recursos naturais e na verdade esta acontecer.
  • Ezequiel Marcelino O que mais chateia é saber que ainda apesar das novas evidências, existem pessoas que batem com o pé no chão defendendo o indefensável
  • Evaristo Cumbane Temos destruidores e nao dirigentes. Ou seja temos dirigentes para o abismo. Somos um povo de azar mesmo...condenados ao sofrimento sem fim.

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