sábado, 5 de janeiro de 2019

Meu Querido Neto,

1 de Janeiro de 2019
Meu Querido Neto,
Espero que esta carta te vá encontrar de perfeita saúde na companhia dos pais e titios.
Infelizmente, tenho más notícias para todos vós nesta manhã de Ano Novo. O Prédio da Impunidade tem muitas fissuras e ameaça ruir. A estrutura não inspira confiança. Muitos inquilinos começaram a vagar os andares de cima, pois temem o pior. Não tardará que os outros andares sofram os efeitos de um contágio imparável.
Tudo isto me entristece e faz-me sentir amargurado. Os antidepressivos já de nada valem. Ah, que saudades sinto eu dos tempos áureos da Revolução em que todos, irmanados num mesmo ideal e num pensamento comum, empenhávamo-nos em construir o Prédio. Interrogo-me tantas vezes: como foi possível um Prédio erguido do nada, com tanto sacrifício e dedicação estar neste estado?
Éramos então respeitados e admirados pelos aliados naturais da zona libertada da humanidade e por intelectuais e académicos progressistas dos países ocidentais. Na comunicação social dos países capitalistas souberam exteriorizar a forma sábia e liminar como Samora quebrou a espinha dorsal aos agentes do capitalismo que ensaiavam preencher o espaço antes ocupado pela burguesia colonial. Admirável, a forma como a burguesia patriótica nas zonas inimigas soube consciencializar as largas massas nas redacções de jornais e de estações de rádio.
Sim, com impunidade – impunidade revolucionária, friso eu para que nunca te esqueças, meu Querido Neto - destruímos os vestígios da sociedade feudal-colonial. Desmantelámos chefaturas e regulados, combatemos valores retrógrados e obscurantistas; desmontámos as bases da sociedade colonial-capitalista, privando as classes exploradoras dos seus meios de opressão – as casas de rendimento, as escolas privadas, os consultórios médicos, os cartórios do mercantilismo judicial. Importantes conquistas revolucionárias, estas. Movemos uma guerra sem quartel contra os estandartes do imperialismo, que sob a capa de sotainas e agitando a Bíblia e o Alcorão pretendiam criar uma barreira intransponível entre o povo e a vanguarda revolucionária.
Que nobre e gloriosa, a tarefa executada por intelectuais progressistas do mundo capitalista quando, engajados num ideal comum, criávamos os alicerces do Prédio. O verdadeiro Parlamento do povo soube honrar o papel consequente desses Camaradas. Outros optaram por um reconhecimento póstumo.
Com a mesma impunidade revolucionária em que íamos criando as bases duma sociedade sem classes, soubemos aplicar a justiça nascida nas zonas libertadas durante a dura luta armada de libertação nacional. No momento exacto, com o amparo de juízes e juristas consciencializados, soubemos punir traidores, sabotadores e candongueiros. O chicote na mão de um revolucionário assumiu um significado diferente do chamboco nas mãos de um sipaio.
Tal como noutros processos revolucionários, também fomos vítimas da sanha assassina do imperialismo e dos seus agentes regionais que de forma subtil e ardilosa souberam abrir brechas e fissuras no Prédio, o que permitiu infiltrações. Vergámos a pressões dos neoliberais, fomos enganados por oportunistas de esquerda que trocaram a AKM pelo luxo em quatro rodas, permitimos que a reacção assaltasse as redacções da comunicação social, consentimos que o valioso contributo de organizações democráticas de massas – SNASP, PGR, SISE, CC, entre outras – fosse contestado em plataformas especificamente criadas na Internet pelo capitalismo neoliberal, numa afronta descarada contra os melhores filhos do povo.
É hábito surgirem nestas ocasiões traidores infames e vis, que cedo esquecem os sacrifícios consentidos durante os anos difíceis de luta contra o apartheid. Permitem que o imperialismo tome de assalto o aparelho judicial que não ousaram destruir, tal como havíamos feito logo que derrotado o colonial-fascismo. Em vez disso, macaqueiam o sistema judicial capitalista, envergando os mesmos trajes, esgrimindo os mesmos argumentos. Gente sem princípios que confraterniza com o imperialismo, mesmo depois de ser insultada, mais os povos que deviam defender – querem mesmo fazer da Pátria de Mandela o dito shithole.
Da mesma forma que combateram a socialização do campo e a construção do Estado moderno, os inimigos no nosso povo combatem com vigor projectos que visam a nossa emancipação económica. Violam o sigilo bancário, numa vã tentativa de conspurcar a imagem e a reputação dos melhores filhos do povo. Desrespeitam o principio basilar dos Estados de Direito – o due diligence – , com afinco e destreza defendido por intelectuais progressistas mas principais praças do capital financeiro. Tanto avisei Samora que devíamos resolver as nossas dificuldades no seio da comunidade socialista. Em vez disso, optou-se pela ACP, quando o CAME era a via correcta. Da ACP corremos com ligeireza para a Cláusula de Berlim e depois caímos nos braços da gentalha de Bretton Woods.
Em suma, somos hoje uma família dividida. Deixámos de ser os primeiros nos sacrifícios, embora sejam poucos os primeiros nos benefícios. Sim, poucos, felizmente, pois a maioria consente os mesmos sacrifícios em dumba nengues, chapas, My Loves e agora em bichas de portagens em vez de padarias e cooperativas de consumo.
Hoje, as assimetrias são óbvias, havendo os que entre nós se esforçam por escancarar a opulência, o fausto e o luxo, exibindo a par e passo os mesmos valores decadentes da burguesia compradora que abnegadamente destruímos. Associam-se a empresas de saque, vendem ao desbarato recursos naturais e hipotecam os que ainda estão por extrair do subsolo. Constroem casarões e palacetes em bairros da elite com fundos de proveniência duvidosa. Copiam os valores decadentes dos pequeno-burgueses. Em vez de Marx ou Mao, lêem autores contra-revolucionários que, com pompa e circunstância, lançam livros em lugares obscuros, pondo em causa a dialéctica do nosso processo revolucionário.
Desponta no horizonte um raio de esperança. São as vozes de moçambicanos consequentes como Mavie e Macamo. A eles se juntam vozes lúcidas e purificadas como Comissário, Vaz e Mablinga. Estão ainda longe de assumirem a garra de um Sérgio ou o domínio do verbo de um Jorge. Há um grupo de desnorteados que seria bom fosse conduzido pela via correcta. Há que travar o desperdício de talentos em Cartas divisionistas, mesmo que assessorados por bem intencionadas famílias. Há entre nós alguns internacionalistas que pretendem ter um pé em cada campo. A esses dizemos: corrijam-se ou regressem aos vossos países já que os meios de subsistência que vos proporcionámos aparentemente deixaram de ter préstimo ou valor.
Um beijinho do Vovô.
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