O escritor moçambicano esteve em Portugal para apresentar o seu último romance, “Gungunhana”, um relato ficcionado sobre a figura do imperador de Gaza e suas mulheres.
Em entrevista ao Jornal Económico, Ungulani Ba Ka Khosa fala dos desafios do seu país e diz que a defesa da língua portuguesa em Moçambique só é possível mantendo as línguas nacionais. O português moçambicano será mais rico, defende.
Há quem acredite em heróis e quem defenda que é preciso desmistificar “o herói”. Há quem silencie as memórias e quem entenda que é fundamental resgatá-las, ainda que relativizando os factos históricos. Palavra de escritor. Mais concretamente do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, nome tsonga – grupo étnico do Sul de Moçambique – de Francisco Esaú Cossa.
Formado em Direito e em Ensino de História e Geografia, foi cronista em jornais, professor, cofundador da revista literária “Charrua” e director-adjunto do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual de Moçambique. Actualmente é director do Instituto Nacional do Livro e do Disco e secretário-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. A escrita é um modo de estar na vida e de contribuir para a consciencialização cultural do seu país. É o que tem feito nos últimos 30 anos, a começar pela sua obra de estreia, “Ualalapi” (1987), que integra a lista dos cem melhores autores africanos do século XX.
O Jornal Económico falou com Ba Ka Khosa por ocasião da sua passagem por Lisboa, para o lançamento da obra “Gungunhana”, que leva a chancela da Porto Editora. O livro tem menos de 200 páginas, mas é para ler devagar e pensar.
A conversa trilhou vários caminhos, mas sempre com um denominador comum – Moçambique – para percebermos melhor a alma africana na sua multiplicidade de contrastes, num país onde “a passagem do ontem para hoje se faz de uma maneira acrítica e sem o denominador básico que é a cultura”.
Diz que “quando o elemento gregário é a política e não a cultura, o risco de amnésia coletiva é grande. A política, pela sua conveniência, desmemorializa”.
A ideia de memória colectiva na construção de um país é algo fundamental. Passados 43 anos sobre a independência, Moçambique já se ‘encontrou’?
Acho que não. Moçambique ainda está a se encontrar e, acima de tudo, só neste momento é que estamos, de facto, a assumir-nos como um país de grande diversidade. Houve um tempo em que a política quis-nos unir… Ora, é errado pensar que unidade nacional significa uniformidade. Com a independência esperava-se que as várias identidades ganhassem cidadania e contribuíssem, na sua diversidade, para a construção do tecido identitário moçambicano. Mas isso não aconteceu.
O discurso da Frelimo começou por ser “matar a tribo para construir a nação”. Só mais tarde assumiu a importância da “unidade na diversidade”. Podemos falar em moçambicanidade?
Isso mesmo. Só agora é que se começou a pensar e a assumir que temos várias sensibilidades e é com elas que vamos construir este país. É óbvio que, ao nível político, no sentido estrito do termo, os oportunismos existem. Mas, em termos culturais, a diversidade deve ser assumida como ela é e com esta abertura: todos pertencemos a esta grande nação, que é feita de vários tecidos, e o importante é que todos tenham uma cidadania completa. Há um tecido banto composto por vinte e tal etnias; há um tecido branco; há um tecido árabe; há um tecido asiático… Aí tens a parte chinesa e a parte indiana. São vários tecidos que se cruzam. Hoje, mais do que nunca, a moçambicanidade é uma construção que resulta na conjugação desses tecidos. A gente não sabe o que vai ser, mas é muito importante que essas comunidades culturais convivam. Os conflitos que podem surgir não são de índole cultural mas sim política, porque Moçambique tem a particularidade de ter o convívio entre esses tecidos.
São comunidades que estão integradas no tecido social moçambicano ou vivem num ‘mundo paralelo’?
Fazem parte e têm uma marca profunda! E eu sempre digo – e os moçambicanos ficam meio à nora com isto –, que nós precisávamos de ver um indiano pobre,
um branco pobre… Mas a verdade é que essas minorias são uma elite e isso é um fenómeno tipicamente moçambicano. Moçambique situa-se no Índico e nunca teve um fenómeno generalizado de branco pobre, porque era o pequeno funcionário [do Estado] que lá chegava. Recordo-me do meu primeiro choque na vida, aquele que me levou ao mundo, que me fez perceber que sou cidadão do mundo. Devia ter uns 11 anos, os meus pais estavam separados e eu fui do centro de Moçambique, que era uma zona de grande segregação racial, para o sul, para a zona dos colonatos. No dia seguinte, quem me bate à porta? Uma menina branca descalça! Foi um grande susto e corri a chamar a minha mãe: “olha, está ali uma branca a vender tomates e chamou-me ‘menino’. Não posso acreditar!”. Tudo isto foi um choque [sorriso], pois na altura o fulano que lá chegava era funcionário público, tinha um emprego estável… Mas, hoje em dia, são comunidades bem instaladas e convivemos todos naquele grande espaço.
Há miscigenação?
A miscigenação até existe, pese o facto de a vaga chinesa que está a entrar em grande força no país ser diferente. A grande miscigenação em Moçambique tem a ver com a comunidade chinesa que chegou há mais tempo, que vinha sobretudo de Taiwan e de Macau e que resultou naquilo a que chamamos “mistos chinas”. Em Moçambique, mais do que em Angola ou nos outros países lusófonos, encontramos essa par ticularidade. E também o encontro com os muçulmanos, que data do século XVIII, XIX. Além disso, há zonas que são locais por excelência desses ‘encontros’, como é o caso ao longo de todo o Vale do Zambeze. Mas a comunidade branca de origem portuguesa, a nossa, moçambicana, perdeu muita gente. Dantes tinha 150 a 200 mil, agora tem 40 mil pessoas, confinadas nos centros urbanos, e os outros são expatriados – que vão e vêm e estão ligados a empresas, essencialmente. Hoje em dia o poder está nas mãos da maioria, que é negra, e assiste-se, de alguma forma, àquilo a que os sociólogos chamam “racismo sem cor”.
Diria que as elites não olham com desdém, mas sim com algum distanciamento para este grande projeto. Como a questão do ensino bilingue, por exemplo. A ideia é expandir o ensino bilingue. Num conjunto de setecentas e tal escolas, desde 1993 que foram sendo introduzidas políticas nesse sentido a título experimental. Hoje em dia, assume-se que o ensino primário tem de ser bilingue. Mas até que a elite moçambicana assumisse isso levou muito tempo, porque havia receio de que isso afastasse os filhos do ensino… Havia quem falasse em pôr os filhos numa escola privada para aprender inglês para não ter de aprender uma língua nacional. Ora, isso é fruto de uma elite totalmente ignorante e revela não só arrogância, mas também uma grande distância da realidade cultural do país.
O Ungulani sempre foi um acérrimo defensor das línguas nacionais…
Sim, e sempre disse: “meus amigos, se nós queremos que a língua portuguesa sobreviva também temos de defender as línguas nacionais, porque são elas que vão incorporar e agregar na língua portuguesa os vários significados”. A língua portuguesa não pode ser vista como o grande assassino das línguas nacionais. Daqui a 40 anos, não sei o será essa agregação, mas será seguramente um português moçambicano muito rico! [sorriso]
Numa população que ronda os 29 milhões, quantos são os falantes de língua portuguesa?
Hoje diz-se que 60% dos moçambicanos falam português. Mas, em termos de literacia, é um universo bastante reduzido. E dou um exemplo: das cerca de 13 mil escolas secundárias que existem em todo o país, talvez apenas em 100 encontras uma biblioteca digna desse nome. Isso é grave, porque um professor primário que é colocado na zona mais recôndita e que só tem uma capacidade lexical de 4 mil ou 5 mil palavras em português, passados dez anos não evoluiu. Não tem sequer um dicionário, os jornais não chegam lá, não há um convívio quotidiano com a língua, não lê!
Pode dar-nos uma ideia de quantas pessoas leem de facto?
Há quem se queixe de que existem poucas livrarias, mas as livrarias são para a classe média, média-alta, para pessoas com posses. Daí a importância de expandir as bibliotecas escolares, para podermos consolidar a língua portuguesa. Mas quando me perguntas “quantas pessoas leem”, diz-se que, hoje, há umas 100 mil pessoas que leem, mas não é verdade. Se pensarmos que temos umas 40 universidades e uns 40 mil alunos no ensino superior – o que não é muito, uma grande universidade pode chegar a esse número –, muitos não leem porque a circulação do livro é diminuta. Há quem fale no preço do livro, dizem que é proibitivo, e eu sugiro que ponham de lado esse fator e pensem noutro aspeto.
Quais são as iniciativas das universidades para fazerem chegar livros às suas bibliotecas? Qual é o orçamento que existe para as bibliotecas? As pessoas não preocupam muito com esse lado.
Há investimento da parte do Ministério da Educação nessa área?
Não! E grande parte das universidades privadas nem sequer tinha essa autorização [do Ministério], mas agora já começa a haver um alinhamento: a necessidade de cada universidade ter um corpo docente com “x” doutorados, um acervo na ordem dos 10 mil, 15 mil títulos, tudo isso já começa a existir mas leva tempo…
No início deste ano lectivo, entraram para o ensino primário e secundário 7,7 milhões de alunos. O Ministério da Educação admitiu que “há um défice de cerca de 14 mil professores no ensino primário”. Como se resolve esta situação?
O grande problema é que tu tens o Fundo Monetário Internacional a ditar as regras. Até há apoio ao livro escolar gratuito, mas depois perguntas: qual é o apoio em termos de professores? Por exemplo, este ano houve uma redução drástica do número de professores. Isso significa que, para haver algum progresso, teríamos de reduzir os actuais 60 alunos por turma para quarenta e tal, senão voltamos à estaca zero com turmas de 70 alunos! Isto é uma regressão. E depois há também os que não conseguem entrar… Há um desinvestimento do Governo! Costumo dizer que, em Moçambique, há mais escolas que esquadras da polícia. Quer dizer, houve esse lado de popularização do ensino, só que, em contrapartida, não houve investimento. Estamos a falar de 67 milhões que entram na escola, por ano, e pese o facto de o livro ser gratuito no ensino primário, as outras componentes necessárias para dar corpo à Educação numa escola estão ausentes.
Disse numa entrevista que o sistema de educação em Moçambique apaga o espaço rural do currículo escolar. As gerações mais novas valorizam as tradições? Falam a língua dos seus avós?
As gerações mais novas não falam a língua dos avós, tal como não têm uma relação com os provérbios – que são um pilar das línguas não escritas, das tradições orais. Teoricamente, no abstrato, pode dizer-se que é preciso construir currículos escolares locais. E aí a gente pergunta, mas em que moldes, quais são os materiais didácticos? Quais são as histórias tradicionais, os contos populares, as lendas, como vocês também têm aqui em Portugal, que vamos usar? Onde estão? Quem as estuda? Houve investimento nisso?
Alguma vez foi feito um levantamento desse património oral?
Houve um em 1978! E isso ficou no arquivo do Património Cultural, metido em caixas… um desperdício total. Não há uma estratégia por parte do Ministério da Educação e não há pressão por parte do Ministério da Cultura, no sentido de disseminar esses valores. Um mundo onde 70-80% da população é camponesa, é um mundo muito tradicional, muito virado para aquela mundividência. Não é um mundo que se urbaniza de qualquer maneira. Se tu hoje fores a Moçambique, vais encontrar ao longo das vilas muitas crianças que frequentaram o ensino primário e parte do secundário, mas depois não há continuidade, o abandono escolar é um problema grave! Além disso, estiveram no ensino geral e não no ensino técnico, o que eu chamo de ‘saber fazer’, e são pessoas que não voltam à terra [de origem] porque já são assimilados, já estão a outro nível. Ou seja, tens ali uma espécie de lumpen!
E no que respeita à liberdade de imprensa, está de boa saúde?
Em relação a outros países de língua portuguesa, acho que está de boa saúde e recomenda-se, pese embora na legislatura passada ter havido um forcing, digamos assim, da parte do poder no sentido de coartar um pouco a liberdade de imprensa… mas fora isso, que foi pontual, está forte. Mas a imprensa, tal como o livro, não chega a toda a gente. Tu tens um jornal com uma tiragem de cinco exemplares e isso não é nada! Não há jornais bilingues, como no início do século, publicados em língua portu guesa e numa língua nacional. Depois, as pessoas não foram alfabetizadas… de tal modo que o ensino bilingue tem de aproveitar muitas das pessoas das igrejas, porque são alfabetizadas. Aliás, a igreja protestante sempre teve um papel importante a esse nível, pelo menos até aos anos 40 do século passado. Além disso, a língua portuguesa não soube disseminar-se com muita força. Não houve uma política para a língua!
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)_podia ter um papel activo nessa e noutras áreas. O que pensa da actuação da CPLP?
Acho que a CPLP está muito politizada. [sorriso] A vertente cultural da CPLP ainda está por vir! Há algumas iniciativas, como a que está em curso ao nível do cinema dos vários países de língua portuguesa: um concurso para a produção de um filme de ficção e de um documentário. Mas, no que toca à literatura, a coisa não está boa. Nos anos 1980, talvez o Instituto Camões tenha ocupado esse espaço ao apropriar-se do movimento literário, não para dar a conhecer os autores mas as literaturas que se produzem. São coisas diferentes. Infelizmente, os autores só se fazem conhecer através de iniciativas editoriais e não da parte de políticas culturais dos Estados. Mas as editoras, como entidades privadas, só projectam os autores e dificilmente podem projectar as literaturas. A CPLP tem um papel a desempenhar nesse sentido. A gente vai ao Brasil, por exemplo, e não encontramos a literatura portuguesa ou moçambicana, excepto nas universidades, que têm um papel muito importante a esse nível, pois em praticamente todos os estados brasileiros há uma cadeira de Literatura Africana na academia. A CPLP está parada. Aliás, parou no tempo e está muito mais politizada, mais virada para o campo dos negócios. Provavelmente colocaram na CPLP muitos burocratas que não têm vontade de fazer coisas, mas, seja como for, a esperança é a última coisa a morrer! [sorriso] Como vê as negociações de paz em curso? Uma das mais recentes polémicas prende-se com a proposta do presidente de Moçambique e da Frelimo, Filipe Nyusi, em que os governadores das províncias passam a ser indicados por quem ganha as eleições para as respectivas assembleias, em vez de serem nomeados pelo poder central, assim como os presidentes de município, que passam a emanar das assembleias municipais. Nyusi frisou que a proposta faz parte de um acordo com a Renamo para a paz em Moçambique.
Diria que vai haver paz ao nível das duas grandes formações políticas [Frelimo e Renamo], porque há outras. Agora, o que acontece é que essas formações fumaram o cachimbo da paz e eu acho que a tendência, nos próximos 10 a 15 anos, vai ser a bipolarização do país. Vou dar um exemplo. Caso não haja alterações em relação a esta matriz, um fulano de uma pequena formação política não vai ter hipóteses de chegar à presidência de um município, ao poder local. A avançar esta proposta dos presidentes de município, vão eliminar estes pequenos nichos que permitiriam fazer emergir outras personalidades no espectro político.
A ideia é silenciar outras vozes?
Sim, vão arrasar por completo todas as outras vozes. O que essas duas grandes formações políticas fizeram foi repartir lugares: se não ganho eu aqui, ganhas tu ali. Mas vamos esperar para ver. A proposta de revisão da Constituição já foi entregue no parlamento, temos de esperar que os deputados analisem e falem, de perceber se vão alterar alguma coisa…
O Movimento Democrático de Moçambique, terceiro partido no parlamento, já defendeu a necessidade de um referendo.
Tem força para levar por diante essa vontade?
Não vejo como isso possa acontecer. Não tem força para isso. O que me parece é que este consenso [entre Frelimo e Renamo] vai manter-se nos próximos cinco, sete anos. São as forças que dominam o parlamento, por isso não creio que haja alterações tão depressa. Quero acreditar que o consenso vai funcionar e que não haverá conflitos, quando muito pequenos focos no norte de Moçambique, em que nunca sabemos se é um braço de um ou de outro partido… Acredito que haverá um período de paz, porque essas duas forças políticas chegaram a um entendimento e a uma partilha real de poder. * (Entrevista publicada no caderno Et Cetera a 16 de março de 2018) - ANA PINA, compilação - continua na edição de amanhã, quinta-feira, do Expresso da Tarde)
EXPRESSO – 02.05.2018
Sem comentários:
Enviar um comentário