quinta-feira, 10 de maio de 2018

Somente um paspalho pode pensar que a morte de Afonso Macacho Marceta Dhlakama constitui vitória

Um nome gravado a letras de ouro

EDITORIAL

AFONSO MACACHO MARCETA DHLAKAMA
Somente um paspalho pode pensar que a morte de Afonso Macacho Marceta Dhlakama constitui vitória. Simbolicamente, para todos nós, constituiu uma grande perda para o povo moçambicano, digam o que disserem os caluniadores da heroicidade. 
A nação moçambicana, como reza uma parte do trecho do Hino Nacional, foi construída pedra a pedra por homens excepcionais, incarnados na unidade nacional. O caminho percorrido foi longo e com obstáculos assustadores, mas estes foram ultrapassados, graças à força inquebrantável, à dedicação a toda a prova e ao patriotismo sem limites dos nossos heróis e de pessoas comuns que souberam resistir e nunca viraram a cara à luta. Moçambique de hoje foi-nos legado pelos nossos heróis, à custa de sacrifícios sem medida. Só uma geração heróica podia ter força para enfrentar tantas adversidades e tantos inimigos. Até os deuses pareciam estar loucos, ao permitirem o holocausto de todo um povo. 
Os melhores filhos de Moçambique sacrificaram as suas vidas no altar da liberdade e na luta pela dignidade. São os nossos heróis e os nossos mártires. Hoje e depois de tantas incertezas temos um horizonte. Um futuro que, apesar de nalguns momentos parecer hipotecado por dívidas e quejandos, ele se vai cimentando cada vez mais. A democracia, ainda que ténue, serve de exemplo. Para aqui chegarmos foi preciso derrubar as barreiras impostas pelo monopartidarismo. Houve necessidade de golpes de coragem e abnegação, para a edificação de uma nova nação. 
Hoje, e repisando as adversidades vigentes, podemos dizer que temos um país abençoado, temos os nossos heróis que conseguiram transformar o inferno do monopartidarismo no paraíso da democracia e da liberdade. Ontem fomos politicamente vilipendiados. Hoje somos cidadãos de corpo inteiro, e temos o respeito do mundo, daí que o mundo nos deve um contributo inestimável na construção da democracia. Foram os nossos heróis em toda a conjuntura nacional que deram sentido à defesa dos direitos humanos em Moçambique.

No dia 3 de Maio passado morreu um HOMEM que se enquadra perfeitamente neste perfil, apesar dos seus restos mortais, à semelhança de outros tantos heróis anónimos (?), não poderem residir no mausoléu da Praça dos Heróis. 

Hoje é um dia especial para os moçambicanos que beijam a democracia. Mais do que um dia qualquer, estamos curvados a homenagear e a nos despedirmos para todo o sempre do construtor da Paz e da democracia. Hoje vão ou foram a enterrar os restos mortais de um combatente pela liberdade, daí que sem qualquer sombra de dúvida, dívida ou pecado, devemos manifestar o orgulho de termos dado ao mundo um ser humano especial que garantiu uma dimensão de heroísmo à Humanidade. 
Hoje é dia especial porque vai a enterrar em Mangunde um HOMEM que derrubou todas as vicissitudes, contribuiu na conservação da soberania nacional e na integridade da pátria. 
O mundo devia acompanhar-nos neste dia que serve de reflexão, respeitando um nome que vai estar gravado a letras de ouro nos anais da (r)evolução moçambicana: Afonso Macacho Marceta Dhlakama.
ZAMBEZE – 10.05.2018


Elisio Macamo
Quando morreu Samora Machel fui convidado a dar uma palestra sobre o assunto na universidade inglesa onde me encontrava a estudar. A notícia tinha-me chocado bastante. Lembro-me que estava a trabalhar como intérprete numa conferência quando o meu colega guineense veio me dar a notícia. Não pude continuar a trabalhar nesse dia. O título que dei à palestra, depois de muita reflexão sobre o significado do acontecimento, foi o mesmo que dou a este post: Há males que vêm por bem. Na altura estava a escrever a minha tese na qual discutia a construção duma nação na base dum sistema monopartidário. Já tinha chegado à conclusão de que esse era um beco sem saída e constituía uma leitura bastante problemática do nacionalismo na base do qual se fizera a luta. Não via Machel como a pessoa que poderia reformar esse sistema, nem o via como o homem capaz de transpor o seu ego e pôr termo à guerra da Renamo através dum processo genuino de reformas políticas.
Os anos subsequentes com Chissano mostraram, creio, a plausibilidade dessa leitura, pois sem aquele fardo de grande marechal, visionário e líder carismático Chissano empreendeu as reformas internas necessárias para que a Renamo não tivesse mais razões para continuar a martirizar as pessoas. E não só. As reformas de Chissano deram uma deixa à Renamo para se refazer como movimento que luta pela democracia. É preciso dizer isto porque há alguns equívocos que andam por aí. Estrictamente falando, a Renamo não trouxe a democracia a Moçambique tanto mais que quando Chissano se abriu ao multi-partidarismo e mudou a constituição, a Renamo se opôs com veemência. A violência da Renamo combinada com as calamidades naturais e a abertura ao Ocidente por via do Programa de Reajustamento Estrutural, entre outros factores, tornaram o modelo mono-partidário inviável. O grande golpe negocial dos mediadores foi convencer a Renamo que ela estava a lutar pela democracia, algo que a Heritage Foundation e a Entreprise Foundation dos EUA haviam já iniciado nos finais da década de oitenta como parte das suas campanhas anti-comunistas pelo mundo. Data dessa altura o discurso pró-democracia da Renamo. Lembro-me duma conversa interessante com um alto funcionário bávaro reformado (que trabalhou com Franz Josef Strauss, na altura primeiro ministro da Baviera) que me contou ter recebido uma vez uma delegação de alto nível da Renamo e ter ficado atónito quando ao perguntar a um membro da delegação que era militar (ele não me disse o nome da pessoa, só disse se tratar dum alto chefe militar) porque lutava ele ter respondido que essas coisas de política não lhe interessavam, o seu trabalho era apenas fazer bang-bang...
O processo negocial de Roma deu maior ímpeto ainda à Renamo para abraçar a democracia como credo. Em 1987, quando a extrema-direita americana procurava obrigar o governo americano a se aproximar à Renamo, e para o efeito, bloqueou a nomeação de Melissa Wells como embaixadora em Moçambique, Chester Crocker, na altura sub-secretário para os Assuntos Africanos, justificou a posição do seu governo dizendo que a Renamo não tinha identidade política credível (os jovens que hoje falam destas coisas sem nenhuma leitura, nem reflexão precisam de se perguntar porque um movimento que lutava pela democracia não recebeu apoio de Reagan e de Thatcher apesar da sua cruzada anti-comunista; precisam de se perguntar porque estes dois países preferiam apoiar o governo marxista de Moçambique, o último até militarmente; propaganda da Frelimo como dizem os apologistas da Renamo?). Crocker respondia a uma pergunta de Jesse Helms, na altura o maior apoiante da Renamo no Congresso americano, que se viu obrigado a levantar o bloqueio quando confrontado com o massacre de Homoíne (que alguns compatriotas querem branquear; num relatório de 1991 da África Watch é entrevistada uma tal Amira Sulemane Issuf que viveu o massacre de perto, foi levada juntamente com outros membros da população para a base de Nhamunge comandada por um tal Comandante Trovoada tendo, no percurso, passado pelas bases de Machavela e Mbenyane; é preciso um alto trabalho de lavagem cerebral para vítimas inventarem coisas desta maneira...). Recorde-se que os EUA tinham interdição de vistos para a Renamo e mesmo depois desta ser levantada o governo americano manteve a interdição para Dhlakama como forma de o forçar a negociar a paz em Roma.
Os principais impulsos para a democratização foram dados por Chissano. A constituição de 1990 permitiu o regresso de alguns exilados (como Máximo Dias), a emancipação de organizações bem como a liberdade de expressão. Na única contribuição significativa que a Renamo fez com a ajuda dos americanos (encorajados por Chissano a ajudarem a Renamo nesse sentido) foi um projecto de constituição cuja única inovação era a exigência de re-introdução da pena capital. Uma boa parte do resto das negociações foi em torno de garantias de segurança, sobretudo porque a Renamo não achava que tivesse apoio significativo em Moçambique e receava uma vitória da Frelimo que a pusesse em situação vulnerável. Ela própria estava ciente do mal que tinha feito. É verdade que em alguns casos ela puniu prevaricadores. O líder interino, por exemplo, em 1988 foi acusado de alcoolismo, roubo (roubou bens de pessoas que vinham da África do Sul e do Zimbabwe) e tribalismo, razão pela qual ele foi transferido para outras funções, mas aqueles que cometeram chacinas não foram punidos pelo simples facto de que isso fazia parte da estratégia militar. Quando leio coisas de pessoas que dizem que esses excessos fazem parte de qualquer guerra fico arrepiado com tanta ignorância consciente. A Renamo começou a prestar atenção a essas coisas precisamente porque estava a deixar mal aqueles que a queriam apoiar, notavelmente nos EUA.
Com a morte do seu líder, grande democrata que nunca conseguiu democratizar o seu próprio partido e, por isso, sofreu ao longo do tempo uma enorme sangria de quadros a começar pelo homem que negociou a paz com Guebuza em Roma, a Renamo tem hoje uma grande oportunidade de ser aquilo que pensa ser, mas nunca foi. Para que isso aconteça, ela precisa de definir essa democracia que diz defender. É interessante notar que até hoje nunca houve uma proposta clara de democracia que não vá para além do ajustar das instituições para acomodar os seus interesses muitas vezes contra os partidos pequenos. A concepção que se tem é demasiado básica assim como é básica a própria crítica que a Renamo sempre fez à Frelimo: comunismo, guias de marcha, aldeias comunais. Relatos de pessoas que fugiram do cativeiro da Renamo durante a guerra reduzem a sua luta à participação nos benefícios da independência. Nós também queremos comer!
Nunca houve, nem no período subsequente aos Acordos de Paz, nenhuma exposição da ideia que a Renamo tem de pessoa humana, seu lugar na sociedade, sua relação com o Estado, o valor da liberdade, etc. A sua ideia de democracia é feita de slógans que até hoje são referidos. Quando alguém tenta explicar a luta pela democracia e o mérito do líder nisso o único que é dito é que acabou com as guias de marcha. Isso não é fortuito. Reflecte as origens da Renamo que são essencialmente de reacção aos excessos da Frelimo gloriosa. No fundo, a paternidade pela democracia atribuída à Renamo é idêntica à paternidade pelo socialismo que se daria a um sindicato que por força de greves e outras manifestações por melhores condições de trabalho de repente levasse o governo a mudar as suas leis laborais...
É claro que neste momento este tipo de análise não vai fazer muito sentido para aqueles que olham para o País sempre na perspectiva do momento presente. A fácil aceitação da paternidade pela democracia mostra até certo ponto quão todos nós ainda estamos distantes dela. Não somos exigentes e, por isso, tudo que alguém faz apelando para a democracia passa facilmente. Isso é reforçado pelos momentos de crise e também pela forma como os detentores do poder o gerem. Tanto quem defende o Governo, quanto quem defende a Renamo em nome da democracia não tem nenhum compromisso com ela, mas sim com o partido que defende. Não usa os princípios que a definem para se relacionar com o seu partido e até ganhar a possibilidade de lhe chamar atenção. Democracia é uma palavra oca que muitos vão repetindo por aí sem, contudo, se comprometerem com ela. Vem daí o à vontade com que multidões passam a ser o critério para determinar se uma causa é justa, esquecendo-se que multidões podem ser o reflexo de outras coisas como por exemplo insatisfação com o Governo, sentimentos regionais e étnicos, ignorância, entre outros factores. Espero viver tempo suficiente para ver a cara daqueles que dizem que a Renamo lutou pela democracia quando ela estiver no poder. Caras sem vergonha que são vão, provavelmente, reagir como reagiram à violação da constituição pelo recurso às armas como forma de mudar o sistema político. Vão dizer que os fins justificam os meios.
Gostaria de pensar que a morte do “pai da democracia” dá à democracia a chance que ela nunca teve. Ficamos menos vulneráveis aos humores dum homem que não hesitava em sacrificar vidas humanas e agia ao sabor do problema em mãos sem grande reflexão sobre as suas implicações. Mantenho a analogia que uma vez fiz com Pablo Escobar, um homem que se tornou grande por conta do acaso.

“Se valeu a pena a guerra?” Afonso Dhlakama responde na sua última grande entrevista


Afonso_Dhlakama_1999
Em 2015, a jornalista portuguesa Tânia Alves Reis embrenhou-se na Gorongosa e conseguiu entrevistar Afonso Dhlakama. Da conversa que ambos tiveram resultou a que terá sido a última grande entrevista do falecido líder histórico da Renamo. Um documento histórico e único.

As palavras, em discurso directo, de Afonso Dhlakama surgem no livro «A Minha Pátria é Moçambique», ´lançado no Verão passado em Portugal, pela jornalista Tânia Alves Reis. Uma colectânea de oito entrevistas a personagens que marcaram o Moçambique pós-independência, do antigo homem forte da Renamo a Joaquim Chissano, da Frelimo, passando por Mia Couto.
Reproduzimos, em seguida, um excerto das palavras, ideias e argumentos que Dhlakama deu numa longa entrevista, sem filtros ou intermediários:
Afonso Dhlakama: “Se valeu a pena ter havido um milhão de mortos e 16 anos de guerra? (pausa) Eu penso que sim. Não estou arrependido que tenham morrido pessoas, porque tudo o que é para melhorar a vida da maioria exige sacrifícios. Não há nada no bem-estar de um povo que se consiga sem que este passe por fases delicadas. Quero acreditar que muitos países europeus, se formos investigar, há 100 ou 150 anos terão tido também coisas horríveis. É o ser humano... Mas claro que o mundo se deve civilizar para que as armas não sejam usadas.
As armas devem existir apenas para defender a soberania em caso de invasão de um vizinho. Mas em África as armas continuam a ser usadas entre irmãos e para intimidar as populações. E por isso eu, Afonso Dhlakama, estou a ir pelo mundo e a juntar a mim as pessoas que têm a tese de que as armas devem ficar nas casernas. Esqueçamos a AK 47, tenhamos capacidade de diálogo, apresentemos aquilo que são as nossas razões. Se o mundo pensasse assim não haveria guerras, não haveria golpes de Estado. Se as pessoas aceitassem que o poder essencial reside nos povos do mundo, nas populações, que são elas que devem governar através de eleições livres e transparentes, o mundo teria paz.
Eu não quero ser pessimista, quero ser realista: estes 40 anos valeram a pena, embora o balanço seja mau. Hoje, em Moçambique, o que existe é uma paz doente. O povo moçambicano merece mais do que isto, do que esta paz adaptada. As pessoas merecem dormir à vontade sem ouvir estrondos de armas. Nunca tivemos paz verdadeira. Isto não é paz, não é a paz que gostaríamos de ter quando, no dia 4 de Outubro, assinámos o Acordo de Roma. Nós queríamos a paz verdadeira, mas infelizmente a FRELIMO tem-nos imposto a paz que ela quer para assim se manter no poder.
A democracia não significa realizar eleições de cinco em cinco anos. Um partido no poder defendido pela polícia e a meter votos nas urnas, isso não é democracia. Para isso ainda falta muito. Mas nós somos a oposição e antes não havia oposição. Nós resistimos e o facto de estarmos a resistir, de continuarmos a lutar pacificamente, de nos podermos encontrar com jornalistas europeus, portugueses e falar à vontade é melhorar a democracia. Não é ainda a verdadeira democracia, para isso falta muito: o país é partidarizado, as instituições, as forças armadas, a polícia, os tribunais, todos obedecem ao partido FRELIMO.
A esperança que eu tenho é que daqui a 10, 15 anos, Moçambique será um país da África Austral com democracia e com desenvolvimento económico e humano. A minha ambição até hoje... eu continuo ao lado do pé descalço, porque o país é o povo, o país sem povo não é país. Qualquer ambição minha, qualquer aventura, o oferecer-me à morte é porque olho por este povo.
Sinto-me muito servidor deste povo. Sinto que consegui desmontar o comunismo em Moçambique, que consegui convencer os radicais comunistas da FRELIMO, porque pouco a pouco eles também já rezam e também já acreditam nos investidores externos. Eles também já acreditam que os privados podem ter o seu carro, podem ter a sua motorizada, podem pagar os seus impostos. Acredito que sou forte, tenho a força que o meu povo me oferece, e que dentro em breve a RENAMO vai poder governar pacificamente e demonstrar as suas políticas sectoriais.
Eu já tenho 63 anos, tornei-me líder da RENAMO aos 22, dentro em breve, se calhar, estarei na reforma, mas estamos a educar jovens dentro do partido para que continuem a trabalhar em prol da democracia para este povo sofredor. Daqui a 10, 15 anos o futuro de Moçambique será brilhante, porque eu acredito muito na juventude.
Sou democrata, o partido está a obrigar-me a ficar, porque pensa que eu sou o mais inteligente, o mais corajoso, o mais determinado. Mas tenho filhos e netos e chegará o tempo em que o partido terá de aceitar e preparar alguém para substituir o Dhlakama, para eu poder conduzir, comprar o meu carro pequeno, beber a minha cerveja e brincar com os meus netos sem chatices de telefonemas, quero ficar na minha aldeia de Mangunde em Chibabava. Sou de Sofala.
Quero agradecer por esta entrevista que irá circular em todo o mundo. Quem sabe se no gabinete do Presidente Obama, do Cavaco Silva, se eles poderão ver na Internet aquilo que o Dhlakama disse. E o que disse não disse como forma de defesa. Não tentei omitir nada. Respondi a todas as perguntas do fundo do coração.”

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