(por cada tampa de "gasosa" que se abre em Luanda há uma garganta que se abre em Lisboa)
João Miguel Tavares
Os angolanos chamam “gasosa” tanto às bebidas gaseificadas como aos subornos. Se um polícia o mandar parar em Luanda por qualquer razão, ainda que absurda, é quase certo que vai ter de pagar “gasosa”. Se precisar de um visto urgente, tem de pagar “gasosa”. E sempre que exista qualquer participação num negócio lucrativo, os angolanos, modo geral, querem “gasosa” pelo esforço. Claro que nós, portugueses impolutos, tendemos a olhar para isto muito sobranceiros, porque não temos de pagar “gasosa” à polícia nem aos funcionários das embaixadas. É verdade, e ainda bem – ao nível da pequena corrupção somos, de facto, um país muito mais sério e decente. Mas será que podemos dizer o mesmo da grande corrupção? Tenho cada vez mais dúvidas. Quando olho para as elites económicas e financeiras dos dois países, o que vejo é muita “gasosa” a borbulhar tanto em Angola como em Portugal.
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Se há algum ponto em que me identifico com as queixas recorrentes de Luanda, sempre que um alto quadro seu é investigado em Portugal, é esse: também a mim me irrita a sobranceria de uma virtude inexistente. Perante as graves suspeitas que incidem sobre o vice-presidente Manuel Vicente lá tivemos de levar com os costumeiros protestos oficiosos e malcriados do regime, via Jornal de Angola. Estamos habituados. Contudo, estou convencido de que aquilo que está subjacente a tais insultos é a convicção por parte da elite angolana de que as práticas da elite portuguesa em nada diferem das suas – por cada tampa de "gasosa" que se abre em Luanda há uma garganta que se abre em Lisboa. A única verdadeira diferença é que nós somos mais dissimulados, e não chamamos “gasosa” à “gasosa”. A corrupção não está instituída em toda a sociedade. Está escondida no seu topo.
Basta olhar para a lista actualizada de arguidos da Operação Marquês. Há dez anos, aqueles eram os homens mais poderosos de Portugal. A nossa mais destacada elite económica. Os jornais faziam vénias à passagem de Zeinal Bava, de Henrique Granadeiro ou de Ricardo Salgado. Havia entrevistas, perfis de sucesso, conferências, influência e a habitual sabujice. Nós engolimos explicações que jamais deveriam ter sido aceites por uma sociedade saudável, atenta e minimamente exigente. Salgado recebia 14 milhões de um cliente do BES, chamava a isso uma “liberalidade”, juntava pareceres de eminentes professores catedráticos a justificar que uma “liberalidade” era coisa perfeitamente aceitável – e o pessoal encolhia os ombros. Bava recebia 18,5 milhões do saco azul do BES, só os devolvia depois de começar a ser investigado, de seguida argumentava tratar-se um valor que lhe havia sido “confiado a título fiduciário, consignado a uma finalidade legítima a concretizar em momento futuro” – e a pátria não queria saber. Enfiavam-nos dois garfos nos olhos, diziam que se tratava de uma operação às cataratas, e no fim ainda pagávamos a conta.
Não admira que os angolanos, que conhecem tão bem o senhor Bataglia, o senhor Salgado ou o senhor Sócrates arranquem os cabelos de raiva quando assistem à velha pátria lusitana de dedinho em riste, a perorar sobre a lastimável cleptocracia angolana. Não é que ela não seja lastimável – com certeza que é. Mas nós andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo tivesse sequer reparado. Não somos melhores. Somos apenas mais hipócritas e mais reservados. A “gasosa” é a bebida favorita das nossas elites – só que é preciso chegar lá para nos abrirem a porta do bar.
Público, 28 de Fevereiro de 2017
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