Parece ser característico duma sociedade em crise procurar por certezas. Uma das certezas que parece ser fácil de alcançar é a moral, aquela que vem da nossa capacidade de dizer “isto não se faz”, “isto está mal”, “aquela pessoa é má”, etc. Parece ser fácil porque não exige muito de nós. Consiste essencialmente em apontar o dedo acusador contra alguém ou alguma coisa. No processo, dá-nos a sensação de que nós somos virtuosos, que nós somos os defensores da moral que faz falta à sociedade.
Esta procura de certezas é um problema. Ela não é necessariamente a solução que alguns pensam que seja. Historicamente, a procura de certezas esteve quase sempre na origem das maiores atrocidades humanas. A Inquisição católica e a caça às bruxas é um exemplo dos excessos que podem surgir da procura de certezas. Mesmo o colonialismo pode ser visto nessa óptica, pois na base da racialização e consequente humilhação dos que eram diferentes esteve sempre a procura de certezas, a certeza que os europeus precisavam de ter sobre a sua eleição divina.
No nosso país os dois principais momentos de procura de certezas foram aquilo que chamo de “teleologia política” da Frelimo gloriosa bem como a chamada luta pela democracia. Falei sobre o primeiro caso ontem numa palestra proferida na Universidade de Genebra. Estiveram lá alguns compatriotas moçambicanos com destaque para o nosso Embaixador junto das Nações Unidas, Pedro Comissário (o qual, como sempre, me interpelou criticamente duma maneira que até deitava por terra o meu argumento principal, pois ele radicava na crítica que eu fazia a uma postura política intolerante que o interesse por ele revelado no debate de ideias obviamente desconfirma). Essa teleologia política consiste na ideia de que alguns compatriotas organizados em torno do ideal de pôr fim à dominação colonial poderiam ser os “representantes legítimos e únicos” do povo moçambicano e com a prerrogativa de determinar, portanto, o que era bom (ou mau) para esse povo. Essa ideologia conduziu em momentos cruciais à intolerância em relação ao que era diferente e esteve na origem de actos de violência (operação produção, xamboco, fuzilamentos públicos, etc.).
O que motivou a violência foi a procura de certezas quanto a quem era inimigo (ou não), o caminho a seguir, as decisões a tomar, etc. Os combatentes da democracia, por sua vez, não deixaram os seus créditos em mãos alheias. A brutalidade das suas acções não tinha nada a ver com resquícios duma cultura primitiva. Ela era a manifestação do mesmo tipo de procura de certezas suscitada por uma postura ética radicada na teleologia política. O termo “teleologia”, já agora, refere-se ao fim das coisas, neste caso, ao fim da História, ao momento em que a paz e harmonia finais se abatem sobre a humanidade, os conflitos acabam e todos vivemos felizes para todo o sempre como nos contos de fadas.
A ideologia foi-se, mas a postura ética ficou. É dela que nos socorremos ainda hoje quando queremos abordar problemas. O Facebook moçambicano discute desde ontem uma postura divulgada pela Universidade Pedagógica da Beira que estabelece regras de aprumo no campus universitário. É interessante observar como a discussão deste assunto é feita. Os que defendem a postura (e não são poucos) acham que uma instituição de ensino tem a obrigação de impor as regras que toda a sociedade precisa para ser moralmente correcta. A postura, portanto, reafirma valores moçambicanos. Os que condenam a postura deploram o seu “moralismo” e destacam a ausência de correlação entre o aprumo e o aproveitamento académico.
Ambas as posiçãos são nobres, mas também algo sintomáticas do problema. Têm um fundo deontológico na medida em que argumentam a partir da ideia de que a conduta moral pode ser regulada com base na identificação do que é bom e do que é mau. Por essa razão mesmo, nem se preocupam em argumentar. Não sei o que diriam os primeiros se fosse possível lhes mostrar que não existem “valores moçambicanos”. Também não sei o que diriam os últimos se fosse possível demonstrar uma correlação entre o aprumo e o aproveitamento académico. O que sei da qualidade do debate entre nós é que o mais provável seja apenas a reafirmação da conclusão a que cada parte chegou (como, aliás, veremos na discussão que se vai seguir ao post...).
E este é o problema. A procura de certezas é, paradoxalmente, uma atitude profundamente anti-ética. Ela não reconhece a existência do outro a não ser como objecto da sua própria moralização. Ela baseia-se numa virtude falsa. Essa virtude assenta na ideia segundo a qual o único critério que precisamos de satisfazer para sermos virtuosos é saber dizer aos outros quando estão a ser bem comportados, ou não, justamente o contrário do que Aristótele (se me permitem um desvio que manifesta a minha colonialidade...) escrevia na “Ética a Nicómaco”, isto é a ideia de que o comportamento ético correcto começa com a pergunta “o que faria um indivíduo éticamente correcto?” e termina com o cultivo da disposição de fazer o que é correcto, para as pessoas certas, no momento certo e segundo circunstâncias certas, etc.
Para mim o mais grave nesta postura não é o que ela proíbe (ainda que muitas das coisas me façam rir), mas sim o que ela documenta. Ela documenta a perplexidade moral das autoridades e uma certa desorientação ética da sociedade. A perplexidade e a desorientação misturam-se explosivamente num debate que não me parece necessariamente produtivo, pois ele apenas reafirma posições irredutíveis que, curiosamente, descrevem o verdadeiro problema: não existe, por enquanto (e, se calhar, nem nunca) um ponto eticamente privilegiado (tradição? cultura? religião? ideologia?) a partir do qual poderíamos ser capazes de enunciar a postura moral certa.
Pior do que isso, não reconhecemos nesta dificuldade uma oportunidade ímpar para repensar o nosso país em moldes menos essencialistas (que sempre conduzem a um certo autoritarismo), moldes esses que consistiriam em apostar numa ideia de Moçambique como algo que se constitui todos os dias sendo que o desafio seria de encontrar formas de convivência que dessem espaço à experimentação. Infelizmente, nem a filosofia ajuda, pois os poucos filósofos formados nos moldes ocidentais que temos costumam investir mais tempo a tentar mostrar quem é filósofo de verdade (e quem não), a correr atrás de quimeras “negras” ou “africanas” e vender isso como filosofia, ou simplesmente a fazerem apelos a uma maior presença deles no espaço público. Mas abordar estes assuntos prementes que todos os dias se apresentam, nada.
“Fazer rir os mortos” é uma expressão idiomática que vem do tempo de Ngungunyan e suas tentativas vãs de dominar os “Copi”. Diz-se que num dos vários massacres uma mulher “copi” se fez de morta e um soldado de Ngungunyani que passou por ela e queria se certificar se estava ainda em vida ou não (para finalizar o trabalho) usou a artimanha de elogiar a sua beleza lamentando a sua morte insensata e manifestando o desejo de a casar caso ela não tivesse sido morta. A lenda conta que ao ouvir isto a mulher sorriu e disse: “vocês vão-me fazer rir apesar de estar morta” (muta hi hlekisa na hifili). Neste caso, é a moral que estamos a fazer rir, coitada. Morreu de verdade.
Milton Machel coitada!
Mussá Roots Mas professor Elisio Macamo, você escreve, "Sorrilá"...
Boa Monjane Quando
foi a vez das saias curtas, tentei argumentar a minha posição contra a
diretiva. Várias pessoas atacaram-me (incluindo algumas mulheres). Deixo
aqui o que escrevi, na tentativa de contribuir para o debate: https://www.pambazuka.org/.../saias-das-alunas-t%C3%AAm...
Brazao Catopola Prof. Elisio Macamo,
gostaria de ver o texto apresentando sobre a questão da intoleracia,
concordo com muito que disse nesses dois primeiros parágrafos embora
não o ponto Central do texto. É que apresentei um texto no Chile e meu
argumento era que a intolerância
advinha de um problema que passa silenciosamente por nós, a nossa
história. Essa infelizmente é somente analisada e criticada
politicamente. A nossa história não é vista sociologica e
antropológica e diplomacia. Por exemplo, diz-se que os Chairman em
1964 estavam contra a FRELIMO, ate que ponto é verdade atendendo que
esses viviam e eram símbolos dessas sociedades? ate que ponto as
socialidades e socialização devem ser esquecidas a velocidade da vontade
poleitica. Como uma perspectiva de ao invés de luta armada optar-se
pela via diálogo (diplomata ) pode ser considerada de traição. A meu
ver pensar e manter a história sob ponto de vista somente político
garante a manutenção de poder e cria condições de não aceitação do
outro. Gostaria de ver seu texto.
Agora quanto ao traje também questiono a medida. será que ser universitário significa abdicar da identidade? Por exemplo o trajar à rap é uma identidade. mas enfim...
Agora quanto ao traje também questiono a medida. será que ser universitário significa abdicar da identidade? Por exemplo o trajar à rap é uma identidade. mas enfim...
Elisio Macamo esse
assunto é muito bem tratado por joão paulo borges coelho num texto com o
título "Abrir a fábula: Questões da política do passado em Moçambique"
numa edição especial da revista crítica de ciências sociais (nr.106,
2015). alguém levantou a questão na
palestra de ontem. a minha resposta, apoiando-me em borges coelho, foi
de que muito possivelmente não tenha havido o famoso conflito entre a
linha revolucionária e a linha reaccionária, mas sim uma interpretação
pos factum de conflitos banais que mais tarde serviu para justificar e
legitimar o poder.
Pedro Comissario Professor,
a sua palestra, a que assisti, foi brilhante e muito profunda. Estive
presente e adorei. Agora, essa sua abordagem sobre a "fábula", creio que
mereceria ser aprofundada olhando bem para a história. Mesmo Simango
escreveu "Gloomy situation in Frelimo". O conflito não parecia assim tão
banal. Mas concordo que a questão central era o poder.
Benedito Mamidji Os
conflitos dentro da Frelimo por volta de 1967-8 eram tudo menos banais.
Borges Coelho não sugere que o conflito de duas linhas não tenha
existido, mas que o conflito como o conhecemos é produto de uma
narrativa que foi construída de forma simplificada
como uma fábula, uma batalha entre os bons e os maus. A minha pesquisa
sobre este assunto mostra que essa construção não foi posterior aos
acontecimentos, mas foi sendo construída à medida que o conflito (ou os
conflitos) desenrolavam. O primeiro documento que a direção da Frelimo
produziu em que colocava a crise interna em termos de luta de duas
linhas data de princípios de 1968, mesmo antes do II Congresso. A
simplificação aqui consistiu em colocar no mesmo saco todos aqueles que
tinham ou pareciam ter posições diferentes dos dirigentes
político-militares (na sua maioria do sul) que haviam assumido a
direcção do movimento a partir de 1966 e que viam a guerra não apenas
como uma simples luta de libertação mas uma revolução. Uria Simango e
Nkavandame não podiam ser mais diferentes, não só no seu background como
no pensamento político e perspectiva sobre a natureza da luta. Mesmo os
Chairman não tinham uma posição unânime sobre as questões da guerra. O
padre Gwengere tinha ainda uma posição completamente diferente. Esses
são apenas alguns exemplos. Mas foram todos catalogados como
reacionários, membros de uma linha ideológica anti-revolucionária. As
suas posições eram diferentes e conflitantes, e não eram todos sobre
poder político e controlo do movimento
Elisio Macamo o
termo "banal" serve apenas para indicar que os conflitos se referiam ao
tipo de desavenças que qualquer organização tem sem que para tal se
configurem em posições ideológicas sólidas. estas não são palavras de
borges coelho, mas sim as implicações que
tirei da sua abordagem e que não violam o que ele escreveu. sim, houve
lutas pelo poder e se há algum mérito na carta aberta de simango é
justamente o alerta que ele faz para que se não criem pretextos para a
desunião. é bom não esquecer que na altura ele tinha tendências
maoístas, o que torna a acusação de contra-revolucionário muito
problemática.
Benedito Mamidji Concordo.
Gosto da forma como Mariano Matsinha descreveu o Simango: um pastor que
entendia pouco de questões militares. Ele próprio recusava que houvesse
conflitos ideológicos, mas diferenças na forma de conduzir a luta,
diferenças que ele achava que deviam ser toleradas e não demonizadas
(isto é claro na secção da carta em que ele fala dos estudantes).
Brazao Catopola Benedito Mamidji
, concordo com muito, mas retifico que não eram somente pelo poder,
eram ate mesmo pela forma de organização da sociedade Padre Gwengere,
por exemplo, reconhecia a luta mas virava-se mais para o papel das
comunidades. tenho um texto em que ele
citado, diz claramente, não bastava olhar para guerra e lutar contra os
portugueses era necessário entender as comunidades e como elas pensam da
organização de si mesmas em face a guerra
Elisio Macamo nos
anos noventa escrevi um texto sobre aquino de bragança no qual
reflectia sobre uma pergunta que ele colocou a robert mugabe e mondlane
com o mesmo conteúdo e que teve a mesma resposta de ambos, nomeadamente
que a luta que faziam só fazia sentido se
fosse no sentido marxista. utilizei isso para argumentar que, na
verdade, aquilo que ele chamava de doutrina samoriana era a sua própria
interpretação da história. apesar de algumas vezes contraditório,
mondlane foi mais pragmático na interpretação dos conflitos internos.
ele tinha maior sensibilidade para os contextos e culturas locais. os
mais inteligentes entre os que andaram a promover esta história da
tensão entre duas linhas começam a abordar o assunto de forma diferente.
há dois anos ouvi o óscar monteiro em lisboa a falar da incapacidade da
frelimo de ter em conta esses aspectos mais locais.
Pedro Comissario Excelente esclarecimento. Muito obrigado!
Pedro Comissario Conheci
o Padre Mateus Pinho Gwengere em 1966-67, na Missão de Murraça, estava
eu a fazer a 4ª classe, aos 10 anos. Ele tinha um carácter extremamente
messiânico e mobilizador anti-colonialista. Creio que ajustar esse
espírito ao processo de luta de libertação, no quadro duma organização
política que não funcionava de acordo com os cânones da igreja, deve ter
sido um grande desafio para ele.
Elisio Macamo eu,
por exemplo, nunca entendi porque nunca se investiu mais em tentar
perceber os diferentes tipos de nacionalismo que se confrontaram no seio
da frelimo ao invés de insistir nesta história das linhas.
curiosamente, a minha impressão é de que o tipo de nacionalismo
defendido por simango é o que define a actual postura ideológica da
frelimo (mas isto é apenas uma hipótese...) desde a morte de samora.
Pedro Comissario Concordo.
Isso seria extremamente útil. Certamente que os nossos académicos
estariam melhor qualificados para esse tipo de estudo.
Adam Joresse Pessoalmente, gosto quando o Professor Elisio
escreve muito. Julgo que é a melhor forma de o compreendermos de forma
razoável. Os textos curtos parecem-me cheios de enigmas. E, neste texto,
tocou num aspecto crucial da "moral" moçambicana. Discuto com alguma
frequência com os meus companheiros sobre a necessidade de argumentar
as nossas posições. Mas, em muitos casos, esses argumentos ficam-se
pelos "eu sei", "se não queres acreditar, deixa" ou então "não discute
comigo (porque tu não sabes o que eu sei)", entre outros. A falta de
argumentos condiciona a existência de qualquer tipo de debate são e,
regra geral, a culpa é sempre dos outros. Nunca nos preocupamos com a
introspecção. Se eu dormi mal, a culpa é invariavelmente de outrem!
Elisio Macamo por vezes é de facto assim. muita pena.
Aníbal Das Índias Professor
é por vezes assim! Pena mesmo! Muitos de nós, embora estejamos no
século XXI, continuamos com visões distorcidas como se estivéssemos a
viver o século XV!!!!!!!
Nestor Zante Wahou très ébahi par l'interprétation perspicace des faits! J'ai appris beaucoupVer Tradução
Calton Cadeado Prof.
Eu constato que a nossa sociedade de consumo não está para muitas
elaborações argumentativas. Muitas pessoas estão com pressa de dizer o
que pensam e não dedicam tempo exaustivo para pensar criticamente e
elaborar à argumentação.
Quanto às saias, a moral moçambicana, acho que a "perplexidade moral das autoridades e a desorientação ética da sociedade" para justificar a postura moral certa pode ser um facto para justificar o verdadeiro problema. Mas, acho que essa generalização tem mais significado no meio urbano do que no meio rural. Estou aqui a pensar que no meio rural, onde a "modernidade" ainda é um sonho distante de ser realizado, existe problema. Ademais, estou aqui a perguntar-me se devemos ter um ponto "eticamente privilegiado" ou precisamos de vários. Por último, estou a perguntar se a existência desse ponto eticamente privilegiado em outras sociedades para eu fazer uma análise comparativa e perceber o fundo do problema e não ser parte dos actores que fazem rir os mortos!
Quanto às saias, a moral moçambicana, acho que a "perplexidade moral das autoridades e a desorientação ética da sociedade" para justificar a postura moral certa pode ser um facto para justificar o verdadeiro problema. Mas, acho que essa generalização tem mais significado no meio urbano do que no meio rural. Estou aqui a pensar que no meio rural, onde a "modernidade" ainda é um sonho distante de ser realizado, existe problema. Ademais, estou aqui a perguntar-me se devemos ter um ponto "eticamente privilegiado" ou precisamos de vários. Por último, estou a perguntar se a existência desse ponto eticamente privilegiado em outras sociedades para eu fazer uma análise comparativa e perceber o fundo do problema e não ser parte dos actores que fazem rir os mortos!
Elisio Macamo sim,
é isso. mas no fundo temos que aceitar que nem todos os assuntos serão
tratados por todos com a devida seriedade. por vezes só dá mesmo
desabafar. quanto ao ponto eticamente privilegiado a questão é essa
mesmo. não existe. é por isso que acho que a discussão devia ser a um
outro nível. devia ser sobre como resolver estes diferendos éticos.
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