CONCERTAÇÃO SOCIAL
Não deve ser salvo
O Governo impôs a subida do salário mínimo, calou os patrões com um mau acordo sobre a TSU e queria que o PSD fosse uma espécie de eunuco de guarda à concertação social. Felizmente tal não acontecerá.
O PSD faz bem em votar contra a descida da TSU? Faz. E faz bem por uma razão muito simples: o acordo a que se chegou na Concertação Social é um mau acordo que não merece ser salvo. Na verdade, nem chega a ser um acordo, antes resulta de uma decisão política do Governo: aumentar o salário mínimo houvesse ou não acordo, como o primeiro-ministro referiu várias vezes. Mas rebobinemos e recapitulemos, pois há muita poeira no ar.
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1. As “negociações” na Concertação Social começaram este ano sob um pano de fundo: em 2017 o salário mínimo seria de 557 euros. Uma decisão política. Uma decisão que implicava um salto de 27 euros no salário mínimo sem qualquer relação com a inflação, o crescimento económico ou o aumento da produtividade, os três parâmetros definidos no acordo de 2014 (no tempo do anterior Governo) como devendo guiar esses aumentos.
Aqui está o primeiro erro. Como o actual ministro das Finanças, Mário Centeno, mostrou na sua anterior encarnação como respeitado economista do Banco de Portugal, este tipo de saltos no valor do salário mínimo têm um impacto negativo que afecta os trabalhadores com salários mais baixos. Num artigo recente no Observador, Luís Aguiar-Conraria reforçou esta argumentação, sublinhando que os efeitos negativos são maiores quando mais elevada for a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo, sendo que em Portugal essa percentagem estará a aproximar-se de 30% quando os valores de referência para a União Europeia se situam nos 10%.
A este primeiro erro o Governo acrescentou um segundo erro: compensar as empresas com um desconto na TSU de 1,25 pontos percentuais, desconto esse mais elevado do que no passado (quando se ficou pelos 0,75 pp) e com carácter mais duradouro. Como explicou de forma cristalina Helena Garrido também aqui no Observador, esta compensação às empresas passou a constituir um estímulo para que estas contratem trabalhadores pagando-lhes apenas o salário mínimo. Ou seja, em vez de estarmos a promover políticas de valorização salarial, implementamos políticas que se traduzem, na prática, num prémio a quem paga salários mais baixos. Não podia haver maior contradição entre o discurso e a prática do Governo de António Costa.
Resumindo: o Governo começou por desrespeitar duplamente a Concertação Social, pois não só violou os critérios de aumento do salário mínimo aprovados em 2014, como nem considerou discutível o montante (557 euros) que antes tinha definido e dado forma de lei; não houve uma verdadeira negociação, antes um regateio para “europeu ver”, e que se resumiu a saber quando iria o Governo sacrificar de TSU para poder exibir um acordo além-fronteiras; a solução final é má para a economia (salário mínimo demasiado elevado), má para os trabalhadores com salários mais baixos e má para as contas da Segurança Social, que deverão perder (pelas contas do Governo) 40 milhões de euros só em 2017.
Face a este desastroso resultado, e a todas as contradições passadas do PS no que se refere quer à TSU, quer ao respeito pela Concertação Social, não há nenhum motivo para “salvar” esta redução da TSU. Pelo contrário.
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2. E a política? Não deveria um PSD que no passado aplicou uma redução da TSU (se bem que menor, se bem que suportada integralmente e de imediato pelo Orçamento de Estado) aceitar este acordo?
É verdade: o PSD tem, na aparência, um problema de coerência (mesmo que existam diferenças de circunstâncias e números que não são pequenas).
É verdade: os parceiros sociais de quem o PSD devia estar mais próximo – a UGT e as associações patronais – desejam manter aquilo que vêem como uma tábua de salvação e estão zangados.
Tudo isto tem custos políticos. Mas tem menos custos políticos que funcionar como uma espécie de eunuco do PS de António Costa e de bengala de geringonça. Ou se simples notário da concertação social, mesmo que violando as suas convicções sobre o que é melhor para o país.
Os portugueses estão muito contentes com a forma como funciona a actual maioria? Se isso for verdade, então é bom que avaliem toda a dimensão dessa aliança, isto é, aquilo que ela parece dar (as famosas “devoluções de rendimentos”) e aquilo que ela também destrói (como acontece neste caso).
Os portugueses (e os jornalistas) estão fascinados com as capacidades de negociador de António Costa? Então é talvez altura de perceberem que esta não só parece estar a ser insuficiente para disciplinar a geringonça, como ostracizar sistematicamente os partidos à sua direita tem um custo. Se o Governo sabia que ia ter um problema com o PCP – como já teve o ano passado com uma redução mais pequena da TSU – então deveria ter cuidado de saber se encontrava apoio noutras bandas. Não encontrou, e mesmo que o Executivo conte com a prestimosa ajuda de Marques Mendes, isso não muda a realidade: a responsabilidade é do Governo que negociou o acordo na Concertação Social, não de quem nunca foi ouvido nem achado porque se deu como adquirido que agiria obediente e docilmente.
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3. O que nos leva a um terceiro ponto, muito ignorado porque vai para além da espuma dos dias. E esse é o problema do financiamento e da reforma da segurança social. A forma como estas reduções da TSU para os salários mais baixos têm vindo a passar de temporárias a definitivas parece indicar que o nosso sistema pode seguir um caminho semelhante ao francês, onde de isenção em isenção se chegou a um regime de TSU altamente progressivo (o salário mínimo não paga nada, e depois a taxa vai aumentando gradualmente). É isso que queremos? Tenho as maiores dúvidas, pois tal representaria uma forma de “subsidiar” os salários mais baixos.
Por outro lado, deve o financiamento da segurança social depender exclusivamente das contribuições de trabalhadores e empregadores, o que penaliza o custo do trabalho e contraria a criação de mais empregos? Ou é necessário começar a diversificar? Utilizamos o IVA, como já chegou a ser discutido em 2011? Ou olhamos antes para as actividades económicas que criam muita riqueza sem criarem muito emprego? E o que vai suceder quando, num futuro já muito não longínquo, cada vez mais funções começarem a ser desempenhadas por robots?
Mais: estamos mesmo satisfeitos com as regras do actual regime, que sacrifica as pensões do futuro em nome das pensões que hoje estão a pagamento, ou achamos que pode ser encontrado um equilíbrio inter-geracional mais justo?
Estas questões são urgentes, deviam estar a ser debatidas com seriedade e já houve vários desafios dos partidos da anterior maioria para que isso sucedesse. Porém, enquanto a geringonça durar, e enquanto prosseguir na sua deriva esquerdista, o PS não só não tem possibilidade, como sobretudo não tem disponibilidade para qualquer discussão séria.
Sendo assim o melhor é ser claro, como o PSD está a ser. Estes remendos não levam a nada nenhum, não resolvem o problema da excessiva carga contributiva que penaliza o trabalho em Portugal, antes agravam as distorções existentes. As linhas são tortas, pelo que ao menos se escreva a direito. Com o chumbo anunciado da do acordo da TSU.
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P.S. Ou o PSD tem um grande coelho para tirar da cartola (e não há aqui nenhum trocadilho, é mesmo só aforismo popular), ou não compreendo porque não quis chegar a um acordo com Assunção Cristas em Lisboa. Não compreendo mesmo, pois há suficientes razões de queixa da gestão (e do estilo de gestão) de Fernando Medina para a oposição ter obrigação de apresentar aos cidadãos da capital uma alternativa real sob a forma de uma candidatura com aspirações e reais possibilidades de vencer. Assinar o ponto não chega.
EDITORIAL
De volta a 2011?
Quando o PSD sublinha que não será muleta do Governo PS, denuncia um objectivo: acentuar a fragilidade de Costa. Mas também assume um risco político, talvez maior do que no passado.
Talvez se lembrem de como foi com o PEC IV: José Sócrates não tinha maioria e precisava do PSD para aprovar as medidas de austeridade, mas só um dia antes de ir para Bruxelas chamou Passos Coelho para lhe pedir esse voto. Sócrates foi, mas Passos roeu-lhe a corda. Sabendo que nem Cavaco Silva, então Presidente da República, tinha sido antes informado do que constava naquele documento - pelo que teria sempre o seu apoio na estrada que iria percorrer.
Foi uma das decisões políticas mais arriscadas da vida política de Passos: decidiu dizer ao país que não aprovaria as medidas de austeridade, sabendo que, com isso, estava a ditar o fim daquele Governo. E assim aconteceu: Sócrates perdeu uma votação na Assembleia, demitiu-se, convocou eleições. O país acabou sem acesso aos mercados, com as agências de rating a declarar-nos equivalentes a lixo, com o FMI a bater à porta. O PSD podia ter esperado, mas assumiu parte de um ónus que não era seu. Acelerar o calendário político tinha, para ele, a vantagem de tirar Sócrates do poder e a desvantagem de partilhar o risco: ao financeiro de Sócrates, juntou-se o político de Passos.
Estamos agora em 2017 – e muitas coisas mudaram desde então. Mas Passos está de novo na oposição e o PS volta a governar sem maioria (pelo menos sem ela em grande parte das decisões estratégicas, que vai tomando ao centro).
Sem saber se o diabo chega mais tarde ou mais cedo (se é que chega), Passos tem sido errático na estratégia de como lidar com esta minoria. Começou por apoiar a venda do Banif, depois virou "do contra" quando chegou o primeiro orçamento". E virou outra vez, para uma posição mais flexível no último Orçamento, quando o discurso oficial do partido parecia querer dar tempo ao tempo.
O ano de 2017 começou mais agitado. Porque Trump somou imprevisibilidade, porque o BCE mudou de política, porque os juros subiram. Porque o PSD se inquietou, a olhar para alternativas. E porque vêm aí as autárquicas, num contexto que parece, à distância, pouco auspicioso para os sociais-democratas.
Foi neste contexto que o PSD anunciou um voto contra a redução da TSU, argumentando à cabeça que não servirá "de muleta" ao Governo de Costa. Podia ter argumentado contra o aumento do salário mínimo, mas não foi esse o argumento que privilegiou. Passos terá medido o gesto, que sabe pôr em risco a Concertação, as empresas, uma parte do eleitorado do partido. Mas arriscou-se a tentar acelerar o calendário outra vez, num momento em que o PS fica sozinho e assumindo parte de um risco que não era o seu – na concertação, na economia e nos mercados. A diferença é que, desta vez, a decisão de Passos não fará deitar abaixo o Governo. Nem tem o apoio de um Presidente.