O economista e docente universitário João Mosca denuncia que existe esquema de venda de terra, num país em que a Lei (de Terras) o proíbe.
Para o pesquisador do Observatório do Meio Rural, muitas vezes, os agentes do Estado são coniventes nas transacções da terra que se fazem em Moçambique, perpetuando uma ilegalidade que chega a atropelar as comunidades, que vêem as suas terras usurpadas.
Antes de avançarmos para os pontos específicos da problemática do conflito de terra, é importante percebermos quais as implicações, sobretudo para a produção agrícola?
Há um estudo feito em Moatize sobre esse assunto. O estudo revelou claramente que a superfície atribuída é inferior àquela em que as pessoas praticavam anteriormente. A qualidade da terra atribuída é inferior, para uma parte da população reassentada. Em relação à outra parte, se calhar a terra tenha a mesma qualidade. Temos também a qualidade do acesso aos mercados, aos serviços e outros aspectos importantes para as populações e que devem ser considerados. Conflito de terra implica outro tipo de conflitos sociais, indisposição ou impossibilidade das pessoas se deslocarem por causa das mudanças, os trâmites como foram efectuados, questões da habitação e muitas outras que devem ser estudadas cuidadosamente.
Os grandes projectos têm sido apontados como os maiores envolvidos na disputa de terra com as comunidades. Como se explica que a comunidade reclame uma propriedade que depois foi atribuída a um investidor pelo legítimo titular, o Estado?
O Estado pode ser legalmente o proprietário da terra, e é por Lei. Não devemos esquecer a outra faceta: quem são os donos de terra? Neste caso, o proprietário da terra é o Estado, mas os donos reais e tradicionais há décadas e gerações da terra são as pessoas. O Estado pode atribuir terras a qualquer pessoa que queira investir, mas estão lá os donos da terra. Para que o processo seja célere, as pessoas devem ser consultadas, indemnizadas, criar-se alternativas discutidas. O Estado, por ser proprietário da terra, não pode fazer uso sem consultar os usuários da terra. A população deve ser respeitada. Aliás, a própria Lei de Terras prevê todos esses procedimentos e esses cuidados que têm existido. Na realidade, o que tem acontecido é que a Lei de Terras não é devidamente cumprida. Não só a questão dos procedimentos, das auscultações, forma de atribuição de DUAT definitivos; são questões que nem sempre são cumpridas, isso é que é um problema muito sério.
Sente que não se está a seguir esses procedimentos?
Regra geral, as consultas existem. O problema é a efectividade das consultas. As pessoas podem ouvir, saber quais são os objectivos do investidor, saber a mudança de atribuição de DUAT pelo Estado a alguém, seja empresa ou individualmente. De qualquer modo, as pessoas põem os seus pontos de vista. Nem sempre as preocupações das populações são consideradas. Aqui, existe o problema da eficácia e da efectividade das consultas. Consulta-se para discutir, mas, depois, na prática, as coisas não são como deveriam ser, de acordo com as preocupações das populações. Outra questão é que as consultas são feitas pelas autoridades locais, juntamente com os investidores, e existe sempre uma certa pressão à população, para que a vontade dos investidores seja aceite de cima para baixo. Esse poder de autoridade amedronta a população, que não tem a possibilidade de exigir os seus direitos. O caso de Palma, que está documentado em vídeo, revela todos os aspectos que referi.
Como é possível que haja problemas desta natureza, quando o país dispõe de uma Lei que regula a posse de terra em Moçambique?
A Lei não é devidamente cumprida. Regra geral, não é cumprida pelas próprias instituições do Estado. Porque alguns são agentes públicos, ou há pressão dos investidores para que isso se concretize em tempo recorde, para iniciar o investimento. Perante este conjunto de situações, existem evidências e casos muito concretos documentados, em que a Lei não é cumprida. Por outro lado, as comunidades não estão suficientemente instruídas, informadas e organizadas para colectivamente exigirem os seus direitos. Quando existem conflitos, e não são poucos, o Estado e os agentes públicos ficam do lado dos investidores. Existe um conflito de alianças económicas e sociais, em que mesmo com a Lei em mão não se faz uso a favor do povo e das comunidades. Há muitos casos, como de Palma, do reassentamentos em Tete, caso das infra-estruturas da cidade de Maputo, caso do Baixo Limpopo. Agora, estuda-se o Corredor de Nacala e no Alto da Zambézia, em que se presume que teremos casos semelhantes.
Será que o que a Lei estabelece não vai de encontro com a realidade no terreno?
Sim. Porque há muitos DUAT provisórios que implicam a obrigatoriedade do prazo de cinco anos para que o projecto apresentado esteja em implementação. Se isto não acontecer, o Estado tem o direito de recuperar a terra a seu favor, na medida em que o investidor que teve acesso não esta a fazer o uso devido da terra. Há um estudo que brevemente será publicado, que demonstra que há investidores que não estão a usar a terra há cinco ou mais anos.
Sente-se, pelas colocações feitas, que a comunidade fica desprotegida. Quais as possíveis soluções param este dilema?
Primeiro, que a Lei seja realmente cumprida pelo Estado e pelos seus agentes. Todos os estudos de viabilidade e outros devem ser conhecidos e apresentados. Existe um planeamento de território e nós ainda não temos um plano de território, onde antecipadamente, com diferentes níveis de profundidade, se saiba que há zonas reservadas para exploração mineira, assentamentos urbanos, infra-estruturas, exploração agrícola, pastagens, reservas naturais de caça, florestais, de protecção, ambiental e muito mais. É essencialmente fundamental, aquando da concessão de terras - sobretudo a quantidade de grandes superfícies -, que haja um planeamento do território. Esse documento não existe. As comunidades devem ter capacidade de negociação perante o Estado e as instituições, perante as entidades públicas e privadas que venham discutir os terrenos.
Sabe-se que se vende pequenas extensões de terra e que muitas vezes figuras políticas estão envolvidas. Como vê este cenário?
Sobre essa realidade, ninguém tem dúvida. Até mesmo no jornal Notícias, que está ligado ao regime, todos os dias, existem anúncios de venda de terra e alguns casos com preços. Isto revela mesmo que, ilegal ou informal, o negócio de terra existe, embora alguns economistas digam que não exista. Isto tem uma razão de fundo, porque as populações migram para zonas suburbanas. A população urbana cresce sobremaneira e superior à população rural. Significa que há uma migração da cidade para o meio rural. A natureza da cidade é diferente da zona rural. Na cidade existem serviços básicos, tais como saúde, educação, facilidades de acesso à energia e a pequenos negócios, que permitem que as populações façam negócios. Paralelamente a isso, os municípios não têm um ordenamento de território, planeamento da expansão de desenvolvimento das cidades, de forma a que possam acomodar esse crescimento demográfico de uma forma organizada, sistemática, sabendo onde é que as populações terão reservas de terra e de talhão para poderem construir as suas habitações. Se tem esse planeamento, não estão a implementar esse plano. Existe o negócio de terras, a todos níveis, em zonas nobres. Sempre que um terreno esteja coberto por uma rede de estrada, energia e condições favoráveis, os preços desses terrenos aumentam. As pessoas investem na terra, na perspectiva de vender a um preço alto. É difícil travar, porque se sabe que pessoas ligadas ao sistema e ao Estado estão envolvidas em tais negócios. São os próprios que fazem o negócio de terra e, desse modo, o Estado fica de mãos atadas.
Que elementos do Estado estão envolvidos neste negócio?
Não vou dar nomes de pessoas. Mas o Centro de Integridade Pública (CIP) já publicou. Moçambique teve que, obrigatoriamente, publicar, no âmbito da Iniciativa da Transparência da Exploração Mineira. Anos atrás, era obrigada a publicação de DUAT em Boletim da República, mas, actualmente, deixou de ser obrigatório. Significa que se trata de um segredo muito bem guardado e que faz parte do forte défice de transparência que o Estado tem em relação a muitas matérias. E a concessão de terras é uma das áreas onde não existe transparência, onde a informação não é divulgada, mesmo para questões de investigação e de pesquisa. Por isso, há muitos assuntos que não são conhecidos publicamente.
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