RENAMO - O ‘DOSSIER MAKWAKWA’ - 2ª parte: (MOÇAMBIQUE 1988-‘91)
O DESCANSO DO GUERR(ILH)EIRO
Paulo Oliveira – 2003
Ou chamem-lhe, se quiserem, um Novo ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’! doces guerrilhas na cidade... um delírio que escorre em tintaimpressa
Não é isto o que queriam saber? Pois! Quantos não foram os que me perguntaram directamente, ou por e-mail até, ‘E depois? O que é que aconteceu ao Paulo Oliveira, ao Makwakwa, após aquele retorno a Maputo em 1988?...’
Este é o livro que não podia deixar de ser escrito. Cru, puro e duro! Depois não digam que não avisei.
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FÁTINHA – A FADA AZUL
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OPERAÇÃO NOCTURNA
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A LUTA CONTINUA
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DESPERTARES...
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FLASH BACK - E... LE ‘GRAND FINALE’!
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Nota: As marcas [...] indicam os cortes nesta edição ‘soft’, versão curta.
"Shit. I’m still on in Paris.
Every time I think I’m going to wake up back in the jungle. When I was home after my first tour it was worse. I’d wake up and there’d be nothing... When I was here I wanted to be there. When I was there, all I could think of was getting back into the jungle.
I’ve been here a week now. Waiting for a mission, getting softer. Every minute I stay in this room I get weaker. And every minute Renamo squats in the bush they get stronger. Each time I look around the walls move in a little tighter.
Everyone gets everything he wants. I wanted a mission, and for my sins they gave me one. Brought it up to me like room service."
Primeiro foram os dias de duas semanas estonteantes. O contacto inicial na Embaixada, depois os jantares do Mónaco - entre Caxias e Paço d’ Arcos - até à luz verde para Paris. Um sábado cinzento, afinal, marcaria a chegada à ‘Cidade Luz’ e encontra-nos depois na Rive Gauche apontando ao Hotel Cayre. Acompanha-me o 2º Secretário da Embaixada moçambicana na capital portuguesa e que dentro em breve tornar-se-ia conhecido, o Rafael Custódio.
O Rafael era então um sujeito no início da casa dos trinta, alto e magríssimo, um esboço de bigode fino, sobrevivente a um terrível bombardeamento aéreo rodesiano no fim da década de ‘70. Há muito que estava com os ‘serviços’ moçambicanos e era ele que em parte iria manobrar um capítulo decisivo da actual missão.
*
Pela minha parte, era a saída de uma situação que se arrastava desde Outubro de 1987, quando decidira bater com a porta e largar a Renamo. Voltara a estudar, editara uma newsletter própria - o ‘Moçambique Hoje’ - e participara no ‘África Confidencial’ do Xavier de Figueiredo. Não tardaram as ameaças da malta do Dhlakama e, pior ainda, dos próprios sul-africanos que enviam uma equipa para tentar ‘fechar’ o meu dossier. Expectativas goradas! Há algum tempo também que vinha mantendo contactos com gente na Embaixada dos EUA - o assistente político Paul Leach e o adido militar Padget - e quando recebo a proposta de regresso acabo por me despedir deles informalmente.
Há muito também - antes mesmo de Outubro de 1987 e desde a morte de Samora Machel - que as minhas expectativas já não coincidiam com as do movimento. Mais que tudo, o pessoal que me é próximo e tentava moderar posições e desdobrar alianças e suporte, vinha a ser sistematicamente apeado - política ou ‘biologicamente’: o ponto fulcral é a morte no Maláwi do ex-embaixador moçambicano em Lisboa, João da Silva Ataíde, e do ‘enviado’ Mateus Lopes ou José Alfredo da Costa. Um ‘acidente’ rodoviário a mascarar a emboscada, a eliminação. O Peugeot 504 calcinado, incendiado conjuntamente com um camião tanque com o qual ‘haviam chocado’! O Peugeot havia sido varrido a Kalashnikov. E tenho na memória, depois, os depoimentos de José Moreno e de um tal Pegas. E da nova tentativa de assassinato no Maláwi ao Moreno, quando investigava o ‘acidente’ do Peugeot... Okay, então esta gente não brinca, e se era para jogar duro, vamos para esse tabuleiro!
*
Caiu a noite sobre a gigantesca urbe que só agora conheço pela primeira vez, e o Custódio, um ‘habitué’, recomenda o Quartier Latin - isto tem alguma da tipicidade dos bairros históricos de Lisboa mas há algo de diferente nesta cidade cortada ao meio por um rio. E, claro, a noite não se esgota nas comezainas dali de Saint Germain de Prés. Mais tarde seguiu-se a visita à zona quente parisiense, ou uma delas, o famoso Pigalle. O Moulin Rouge e todos aqueles nomes sonantes estavam agora ali a emergir da noite em cores garridas e contrastantes sacudindo o negrume, entremeados por montras e vitrinas em vermelhos e verdes mais discretos convidando a shows triplo X de sexo ao vivo. Empregados turcos e portugueses prolongam o apelo insistente dos anúncios. É assim, parte da Paris nocturna, e de momento o verdadeiro propósito da viagem ficava lá tão longe, tão longe, a mais de dez mil quilómetros, que foi necessária a chegada do Domingo para trazer de volta a Realidade que importa trilhar.
A nova manhã passa-se calma, quebrada apenas por um esticar de pernas até à margem do Sena - do outro lado destaca-se a imensidão do Louvre - ‘e era isto – matutava eu - a verdadeira Europa, cinzentona e velha’: para mim, plataforma de passagem apenas, como nunca deixei de encarar a minha presença cá, criado e crescido que fui na imensidão verde africana. Não, isto nunca seria para mim nenhuma ‘terra prometida’. Nem Lisboa, Madrid, nem esta Paris - apesar da dinâmica do Sena serpenteando por entre o secular casario.
À tarde surge o ‘Aparece-Desaparece’ como eu por brincadeira havia de chamá-lo mais tarde - o João Carlos Esteira. É ele o homem de topo da Contra-Inteligência moçambicana, o nº 1 da D-13 do SNASP - Serviço Nacional de Segurança Popular. O momento e a pergunta decisivos: ‘É mesmo para ir? Não há marcha-atrás...’ Vamos a isto! - retorqui firme - É para isto que cá estamos, não é verdade?!’
O embarque foi nessa mesma noite em Orly no DC-10 das Linhas Aéreas de Moçambique. A aeronave iniciara o voo na Suécia - Paris era uma escala - e trazia a bordo, até, a Graça Machel, viúva do antigo presidente moçambicano. Na aerogare, além do Rafael Custódio - o ‘Alfa’, nome de código, então, em Lisboa, na ‘residentura’, e que não viajará comigo - volto a avistar o Esteira que regressa a Maputo no mesmo voo. Então, não viera ele a Paris de propósito para me levar?! No mesmo avião seguirá outro quadro de destaque da Segurança, um branco, o Luís Filipe Costa. Mais tarde será o Costa o responsável máximo da TCT - uma empresa a ser criada no âmbito do Ministério da Segurança/SNASP.
De Paris a Maputo a viagem é directa. São mais de onze horas de voo. Falta ainda uma hora para a aterragem quando sobrevoamos a savana tocada pelos primeiros raios matinais e apesar do whisky e calmantes não estou muito tempo sentado. Resumindo, ia já com uma cardina considerável! Lá muito em baixo junto ao solo estendiam-se as colunas de fumo de fogueiras da população, queimadas, o que quer que fosse que desprendia aquelas volutas fumarentas para a atmosfera. Não paro de aborrecer o Esteira - ‘Eh pá! Aquilo deve ser o disparo de armas pesadas, estou a ver! Ali à direita!’ - O Esteira muito calmamente pedia-me que regressasse ao lugar. - ‘É uma batalha de artilharia!’ - insistia eu.
Mas bem, Paris perdera-se na distância dos milhares de quilómetros. Agora era Moçambique brindando-nos com um dia quente, um bafo de dragão, neste dia 10 de Março de 1988. Quase tropeço ao descer as escadas do DC-10. Esperam-me cá em baixo uns tipos de fato escuro e ar severo que entrevejo ainda através dessa atmosfera escocesa dos whiskies e num ápice trazem-me para um espaço reservado da aerogare longe das formalidades aduaneiras e de passaportes a que se entregavam entretanto os outros passageiros.
Recolhida por alguém a minha bagagem sou levado para o Hotel Cardoso, na zona da Ponta Vermelha, uma parte nobre da capital onde se situa o palácio presidencial, e não muito longe, portanto, das novas instalações da D-13. Isto!... a vida traz-nos curiosidades e coincidências destas. Quem diria: tinha eu uns cinco, seis anos, frequento antes da entrada na Primária o então Instituto Infantil de Moçambique. Já aí uma coincidência: um dos choferes havia sido um antigo empregado nosso, doméstico. Agora, ao aproximarmo-nos, qual é o meu espanto... Eu nunca mais voltara, em anos recentes, àquela ruazinha, a do Instituto Infantil. Mesmo ao início da rua, o prédio que se destaca, um pouco mais alto que as moradias restantes, é a D-13! Volvidos todos estes anos - vinte e dois! - ao local que o inocente Paulo então apenas com cinco ou seis conhecia como ‘creche’, voltava o Paulo com toda uma imensa e terrível história que emparelhava com a trágica guerra que assola este belo país! Mas nos meados da década de ‘60 não havia ainda preocupações algumas destas na cabeça de um puto de cinco anos. As palavras ‘guerra’, ‘terrorismo’, ‘turras’, ‘tropa’, eram uma realidade muito atenuada que me chega só lá mais para o final da década, juntamente com um interesse pelos mapas, mas ainda algo difuso e distante até aí.
E aqui estou... A D-13. O Instituto Infantil. Duas peças, dois marcos próximos. Ainda resta alguma coisa a ligar os dois ‘Paulos’?... O torpor alcoólico e as recordações esvaem-se depois ao entrar no Hotel Cardoso. Agora o Esteira desaparece e está o vice-director da D-13, Virgílio Cambaza, a fazer de assistente de ligação nas horas iniciais - e continuará a sê-lo ao longo dos dias seguintes. Mas ainda nessa Segunda-feira, horas volvidas, decidem transferir-me para o Hotel Rovuma - junto à Câmara (Concelho Executivo) e à Catedral - o hotel do partido, tido por mais seguro. Um hotel muito sui generis com um calabouçozinho e tudo, na cave, gabinete do SNASP na sub-loja para o que der e vier! Na década de ‘90 o Rovuma seria adquirido pelo grupo português ‘Pestana’. Muitos que estiveram em Moçambique antes conhecê-lo-ão – o edifício – por outro nome: é o antigo Prédio Funchal. Albergava o Arquivo de Identificação além de ser o prédio sede da Força Aérea Portuguesa em terras de Moçambique.
O Rovuma é um hotel cómodo ocupado por quadros superiores do Partido e do Estado, governadores provinciais, generais e brigadeiros destacados para o sul, e de passagem por Maputo. Havia sido inaugurado nos últimos tempos de Samora Machel e encontra-se sob a alçada do Comité Central. O restaurante ‘vip’ do 12º e último andar possui um panorama soberbo sobre toda a cidade e a baía. A comida não é má e existe um conforto razoável e comodidades várias - bebidas, inclusive - apesar da escassez enorme que então aflige todo o país.
Começo por ficar no quinto andar, no 501 - um quarto amplo com WC e uma sala. Mais tarde ocuparei a suite 429, quarto andar, um espaço com um bom quarto com cama dupla, duas casas de banho, sala comum e varanda com vista apontada à baía, Catembe e parte baixa da cidade. Quanto às refeições, tanto posso tomá-las no tal salão ‘vip’ do topo como encomendá-las por telefone para serem servidas na suite, apesar de o aparelho fazer por vezes extremo mau contacto! Mesmo assim funciona, numa terra plena de dificuldades e quase paralisada.
Agora, neste primeiro dia, após o jantar e farto de estar encerrado no hotel - também não tinha ainda segurança pessoal directa apontada e apresentada, nem ninguém com quem falar - aventuro-me até um passeio pela 24 de Julho, uma das principais artérias da cidade e a dois passos dali do hotel.
De novo no Rovuma ligo para os meus pais - umas cervejolas serviram entretanto para tirar a ‘babalaza’ (a ressaca) dos whiskies a bordo - e quando me atendem em Lisboa lá digo onde estou. É a surpresa, claro, enorme. Ninguém esperava isto. A minha irmã não havia ainda consultado o computador do IST onde eu deixara uma mensagem alojada a propósito desta minha ‘viagem a Paris’.
No dia seguinte principia o trabalho a sério que envolve sessões maratona de gravações. O D-13 destaca um elemento, um oficial da Segurança, o Ruque, para trabalhar comigo na recolha de toda a informação pertinente que disponho. Isto para já não falar na mala de viagem repleta de papéis - que analisamos um por um - e que eu entregara ainda em Portugal, ao Rafael Custódio, na estação ferroviária de Paço d’ Arcos: cada um a chegar no seu táxi, vindos de Lisboa. Pois bem, agora enchemos cassetes e cassetes, resultado de dezenas de horas, dias, noites, madrugadas de conversa. Assim se passa toda esta semana de pouco tempo livre para uma (re)descoberta de Maputo, da ex-Lourenço Marques, bem, qualquer que seja o nome, tanto faz, daquela que continuarei a chamar como ‘a minha cidade’.
Segunda-feira seguinte, 19 de Março. O ‘Notícias’ de Maputo reporta o regresso de um ‘cabecilha da ala externa dos bandidos armados’: é a primeira alusão oficial ao meu regresso. Dois dias depois, a 21, seria a célebre conferência de imprensa.
A conferência... Okay! Fora um dos tópicos abordados com o António Pacheco das Neves (cônsul) e o Rafael Custódio no último jantar havido no Restaurante Mónaco, lá em Portugal, semanas atrás. Eu concordara em falar com alguns jornalistas. Alguns!... E de novo é um regresso às origens, um sítio que para mim é outro marco. A conferência teria lugar, afinal, num grande auditório propriedade da EMOSE - Empresa Moçambicana de Seguros - um 1º andar de um prédio na Avenida 25 de Setembro (ex- Av. da República). O edifício era o antigo Prédio Nauticus. Quantas? Quantas vezes eu aí fora, ao segundo andar? Um piso preenchido por consultórios médicos onde ficava o do doutor Silvestre Freitas que era o médico assistente da Sonarep/Petromoc - a refinaria de petróleos - o emprego do meu pai. Quantas vezes não andei eu a traquinar aqueles elevadores para cima e para baixo, a encravá-los, até à hora da consulta?
E agora, conforme desço do veículo da Segurança, é o passeio já repleto de gente com câmaras de TV e fotográficas. A custo abrimos caminho pelas escadas até ao primeiro andar. Escancaram-se as portas do tal salão... Mais de meia centena de jornalistas moçambicanos e estrangeiros estão presentes. Mas há mais... Mais de uma, duas centenas de pessoas juncam aquela sala. Surpresa! Vejo o sorriso e o acenar tímido de uma antiga colega de liceu, a Narry - a Narriman Hassane Puná. Retribuo o cumprimento. Coitada da Narry. Poucos anos mais tarde matar-se-ia na marginal, lança o carro em velocidade terminal contra o muro da Escola de Pesca, vinda do Zambi. Remorsos pelo que fizera ao Ibraímo Remane... – diz-se, um ‘caso’ por fora. O Remane era também, por acaso, um antigo colega meu do paraquedismo. Mas aqui, nada disto havia ainda acontecido e a Narry está ali num cantinho, alta e magrinha, a sorrir e a agitar a mão... E cumprimento ao fundo na assistência o Fernando Chombe - que fizera questão de estar presente - e que anos antes, afinal, havia sido ele mesmo quem fizera de mim o ‘agente Alcino’ do SNASP!
E está quentíssima esta sala. Cheia que nem um ovo, o ar quente e pesado, não obstante estar-se a meio da manhã, meados de Março. Calor e fumo. O ar-condicionado e ventoinhas é em vão que se esforçam por devolver um pouco de frescura e limpidez, por amenizar a atmosfera. Mas, jornalista escreve muito, bebe muito, fuma muito. Muito! E eu também. À minha frente o monólito negro da embalagem de JPS - John Players! Os cigarros que o Evo fumava. Creio que foi a partir daí que experimentei, na África do Sul... Os JPS para mim seriam sempre os ‘cigarros do Evo’! Tinha bons gostos ele, efectivamente. Isso, o Glenfiddich, os Porsches - dizia gostar de ter dinheiro suficiente para fazer de tal viatura um dos seus prazeres. Essa tirada surgiu durante um vídeo a que assistíamos na Base de Comando Recuado ainda lá para os lados de Potgietersrust, em 1983: ‘Os Cães de Guerra’ - com Christopher Walken - a partir de um livro de Frederick Forsyth. Como retemos cada um destes momentos! E como tudo isso se interligava e voltava agora a surgir aqui perante os meus olhos... Evo insistia sempre na explicação da mensagem, no sentido dos filmes. Acabou por ser um autêntico ‘pai político’... E contudo fizera desenvolver-se como que um certo complexo de Édipo! O que era Dhlakama no seio disto tudo? E relembro também 1981, a minha chegada a Cascais, a primeira vez que vou a casa dos Fernandes. A premonição, anos depois, numa festa, a Ivette a dizer que o astrólogo indiano previra que alguém muito próximo iria dar-lhe um golpe terrível... Mas o Evo não previra, isso não, o guião deste filme que se iniciara.
Sou apresentado pelo Director Nacional da Informação. Os homens do SNASP estão agora mais longe e discretos. Da própria entrevista, nada fora ensaiado, combinado previamente, convidando-me antes os homens da D-13 a agir de acordo com o que pensava que fosse melhor no meu interesse... Nenhuma questão me surpreendeu. Havia jornalistas nacionais, estrangeiros estacionados em Moçambique, e os que vinham da África do Sul até e de outros países vizinhos ou mesmo da Europa. A conferência de imprensa chega a produzir ecos em Lisboa (o chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, general Lemos Ferreira, é obrigado a emitir um comunicado - ‘o senhor Paulo Oliveira até pode dizer que a Terra é quadrada...’) e mais longe ainda, na Casa Branca, em Washington, onde o chefe de gabinete de Ronald Reagan tem que admitir encontros que aí manteve com membros da Renamo ‘a título pessoal...!’. Tudo isto para além do brado que faz rebentar em Pretória, como é óbvio.
Mesmo após a conferência de imprensa o trabalho de recolha/análise de informação prossegue conjuntamente com o Ruque. O Ruque, esse jovem oficial de ligação, é praticamente um moço, um oficial jovem mas sabido. Inteligente, olho vivo, não lhe escapanuance alguma. Magríssimo, aí à volta de um metro e setenta e cinco, uma barbicha rala. Um dos tipos mais engajados e militantes que conheci, marxista-leninista ferrenho, saudoso dos tempos do Samora Machel, enfim, um quadro que não sobreviveria depois aos novos ventos no Ministério. Sei mais tarde que será ainda colocado numa universidade zimbabweana mas ouvi que até por lá arranja uma série de conflitos de índole política. Apesar dessa faceta é um bom comunicador, jocoso quando não se trata do dogma, e as nossas sessões de análise/gravação muitas vezes terminam madrugada adentro.
Continuo pois no Hotel Rovuma mais uns quinze dias. No entretanto colocam para minha protecção e a tempo inteiro um elemento operacional da Segurança e que se aloja também no hotel - é ele o Zorro, nome de código, bem se vê. Na realidade ele é o Eusébio Anlaué, de raízes macondes e macuas e que desde jovem integra a ala operativa do Ministério. Reside no bairro da COOP e anos depois irei conhecer a sua casa. Um bom amigo e confidente, além de animado e conversador. Altura média e levemente para o forte, musculoso, era o típico elemento dissuasor para casos destes.
A pé com o Ruque ou o Zorro, ambos até, ou ainda acompanhados pelo Rachid - um outro elemento com a viatura de suporte - vamos diversas vezes à Loja Franca - a Interfranca/Fnac - provisoriamente a funcionar nas instalações da Facim - a Feira Agro-Pecuária Comercial e Industrial de Moçambique. Compras em divisas (dólares, randes ou escudos portugueses) de artigos que dificilmente se encontram nas lojas. No Rovuma também se mata algum do tempo livre - há uma sala de bilhares e um grande e acolhedor ‘lobby’ onde se escoam uns bons e cálidos fins de tarde à volta de umas cervejas.
Depois, fazem questão que eu visite a Matola. Levam-me de carro uma das manhãs para que possa ver as casas do ANC atacadas pelos sul-africanos. Alguns dos alvos haviam sido destruídos por um raid terrestre de comandos no início da década de ‘80, outros - uma fábrica e residências - foram atingidos por um ataque aéreo em Maio de 1983, estava eu na África do Sul e, como relatei em livro anterior, o bombardeamento vem como retaliação a uma explosão em Pretória que fizera mais de vinte mortos.
A falta generalizada de bens de alimentação e outros está contudo a atenuar-se. Não só por via da Fnac com a sua venda em divisas. É a abertura à economia de mercado. Toleram-se os ‘dumba-nengues’ (confia nos pés - em dialecto) os mercados informais, de rua, de passeio, de muro. Era bem pior a situação há poucos meses atrás, afiançam-me. É fácil agora conseguir-se beber um refresco ou cerveja pagos em meticais, a moeda nacional. O que seria impensável antes, fora dos ‘spots’ turísticos.
Ao fim de mais duas semanas, isto é, no dealbar de Abril, conseguem-me transferir para uma flat à conta do Ministério, no PH7 - um prédio de doze andares no bairro da COOP, Avenida Vladimir Lenine 2292. É a flat 3 de um primeiro andar e não é nada má. Uma grande sala comum serve três quartos, há um corredor extenso ligando o conjunto, arrecadação, cozinha e duas casas de banho. Praticamente todo o mês de Abril é aqui passado, com a companhia diurna do Ruque e do Zorro e todo um corrupio de visitas de outros elementos do Ministério e, à noite, apenas a vigilância do Zorro. Amiúde surgia o Generoso - também referenciado como ligado à Embaixada em Lisboa - ‘Betinho’ Wate, o Nyerere e o António Mula – isto como repetições mais notadas. O eterno sorridente e baixotinho Mula era o director financeiro da D-13. Logo, uma necessidade ali. É também no PH7 que me surge pela primeira vez o Mário Ngwenya que anos mais tarde virei a conhecer bem melhor em Lisboa na Embaixada de Moçambique. Seria então o oficial ‘residente’ dos Serviços moçambicanos - e meu aluno de Informática!
São colocadas duas AK-47 na residência, cada uma com dois carregadores e mais uma pistola Walter para o Zorro para o que desse e viesse, e diversas granadas defensivas. É já aqui na COOP que conheço a minha primeira amiga destes novos tempos de retorno, a Tina. Ou antes, a Catarina. É paraquedista, ela, do Aeroclube de Moçambique. O Aeroclube... Onde tudo começara, toda a série de aventuras, e onde eu recebera há anos por brincadeira o tal cognome de Makwakwa! Numa visita breve ás instalações do clube, com o Zorro, avistara uma destas noites a Catarina que volto agora a encontrar de passagem pela COOP.
De vez em quando é o ‘black out’ geral em toda a urbe e arredores, toda a zona sul do país: mais uma acção de sabotagem da Renamo. E à falta de luz segue-se a da água, quase sempre é assim se a quebra de corrente é prolongada: as bombas de água param.
Com o Zorro vou até algumas das tascas locais como o Micael, no prolongamento da Rua da Resistência (ex- Heróis de Marraquene), ou então ao Rodoviário - na Av. 24 de Julho, ao Califórnia - num gaveto da Vladimir Lenine não muito longe do Rovuma, em frente à escola secundária que em tempos o meu irmão frequentara.
*
E então por uma vez, já a noite ia bem entrada, aventurei-me sozinho até ao Topázio, na Rua de Bagamoyo. Nos tempos coloniais era a (má) afamada Rua Major Araújo - ou a ‘Rua das Pretas Bem Vestidas’ como outros lhe chamavam. O Topázio! Este antigo cabaret e agora funcionando mais como bar estava nas mãos de um português, o Teixeirinha, proprietário igualmente do Golfinho Verde e da Pensão Nini, aqui no Maputo, e do Ali-Babá de Nampula - além de ter ganho o concurso para fornecimento de víveres ao projecto do ‘Corredor de Nacala’.
Ainda não tivera tempo para completar a primeira caneca... rápido os homens da Segurança estão ali e é para me levarem. Algum dos agentes vira-me a descer à baixa, sem o Zorro. Pois! Eu partira assim que o guarda-costas adormecera.
Só dou pelo Zorro entrar, a olhar ansioso em todas as direcções, trespassando de repelão porta e porteiro do Topázio, em pijama! E eu descontraído a falar com a Selma uma mistinha de indiana que acabara de conhecer ali. Rebocou-me de seguida. A primeira vez que o vejo com cara de poucos amigos. Lá fora, uma viatura. Espera-nos o Virgílio Cambaza: "Estas aventuras não são nada agradáveis! Mais vale um dia fechado na residência que na B. O. não é?" A B. O.! ‘Brigada Operativa’. Era a parte da cadeia da Machava administrada pela Segurança e de muito má fama e que não dava saúde a ninguém! E havia também a B. O. com os respectivos cárceres nas instalações do SNASP na Av. Ahmed Sekou Touré (ex-Afonso de Albuquerque) no que antes fora o Colégio Irmãos Maristas. Portanto está explicado como a partir daí o Cambaza ganhava a alcunha de ‘B.O.’
No dia 7 de Abril é feriado - Dia da Mulher Moçambicana. Temos uma prova de que ‘eles’ andavam aí, na cidade. ‘Eles’, malta enviada por Pretória. Eu, o Zorro e o Ruque saímos no Lada, a dar uma volta pelas ruas de Maputo, passamos o ‘Piri-Piri’, na 24 de Julho, a batermos já a curva para a Julius Nyerere quando soa uma deflagração - ‘parece um foguete!’ - digo eu. Mas ali em Moçambique não há foguetes em comemorações, quanto muito houve rajadas para o ar e isso só na Independência. Uma bomba! Estamos na Julius Nyerere quando vemos o fumo, as chamas, no mesmo quarteirão em que entramos mas do outro lado da avenida. O carro que ia à nossa frente está atingido, parado em ângulo estranho. Quase a chegar ao prédio da Embaixada portuguesa, a viatura que rebentou, um tipo no chão, ferido, em convulsões, está gente de volta dele. Mais tarde vimos a saber pelas notícias. É Albie Sachs, um conhecido activista do ANC residente em Maputo. Armadilharam-lhe o carro, ia a sair de casa. ‘Eles’ andam aí!
*
O que eu mais sentia então por esses dias era o isolamento. Só a Tina e outra amiga dela apareciam de vez em quando ao almoço ou ao fim da tarde. Não sabia o que é que o Ministério tencionava fazer, nada era dito de sólido quanto ao futuro. Sei contudo que o Ministro da Segurança Mariano Matsinhe tem insistido em reuniões com a explicação já acordada: o meu juramento como membro do Serviço em 15 de Junho de 1979 e as minhas saídas subsequentes para Lisboa em 10 de Julho e 16 de Setembro do mesmo ano.
E o impacto da conferência de imprensa não se esgotara na abertura dos telejornais do próprio dia e seguintes, ou nas primeiras páginas da imprensa local. Ele eram entrevistas atrás de entrevistas - tanto para a imprensa escrita como à AIM - a Agência de Informação de Moçambique por intermédio do seu director de então, o malogrado Carlos Cardoso.
Seria assim por semanas e meses a fio. Entrevistas com TVs da Alemanha Federal e do Leste; para a própria SABC - a estação oficial do país que era o principal mentor da Renamo! Surgiria aqui a própria Nadine Gordimer, futura Nobel da Literatura. Jornalistas americanos do The New Yorker, congressistas dos EUA; etc., etc., um rodopio autêntico quer no HOTEL Rovuma, na residência, no Hotel Polana ou nas próprias casas das agências e correspondentes.
Mas pelo menos este Abril estava a ser pesado em termos de retenção na moradia da COOP. Uma das noites carrego a minha AK, destravada já, culatra accionada - bala na câmara, portanto - e quase alinhada para a posição do Zorro: "Oh amigo, pá! Só tens uma solução se queres ficar aqui a dormir. É ir chamar esse gajo ‘Aparece-Desaparece’!" - o José Carlos Esteira, que se eclipsara quase na totalidade. O Zorro só tremia, a queixar-se: "Sócio, és muito porreiro mas tens um bichinho aí no cérebro... quando morde ou começa a fazer comichão...! É um interruptor que muda de posição."
E surge o Esteira, altura em que lhe coloco as diversas questões. Movimentação, viatura, emprego ou estudo. Dá-me algumas esperanças e recomenda paciência.
Alguns dias depois, mais recatado ainda terei que me manter: acabam de ser descobertas em Maputo duas equipas especiais enviadas pelos sul-africanos com o objectivo único de me localizar e abater. Seriam descobertos por puro acaso, quando um dos veículos provoca um acidente junto ao Tico-Tico e cantina universitária, abalroando e matando um casal que seguia de mota, ela grávida. Diversas armas e outro equipamento - incluindo a minha foto - são encontrados a bordo. (...)
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