sábado, 6 de dezembro de 2014

Até onde irá Sócrates no uso da liberdade de expressão?

OPINIÃO


A dimensão da liberdade de expressão dos reclusos é uma questão em aberto.
Estávamos em 21 de Abril de 2003, quando Carlos Cruz, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, comunicou à directora do estabelecimento que era sua intenção “responder a uma entrevista solicitada e respondida por escrito, para ser publicada no semanário Expresso”.
O director-geral dos Serviços, no dia seguinte, informou Carlos Cruz que estava “proibido de dar entrevistas ou prestar declarações destinada a fins jornalísticos”. Justificava tal proibição em diversas razões: ser “prática genericamente assumida nos Serviços Prisionais, conhecida dos jornalistas, o ser proibida a concessão de entrevistas por razões ligadas à especial condição em que se encontram, da uniformidade de tratamento dos reclusos nessa situação, e de defesa da manutenção do segredo de justiça, nos casos em que tal se justifica”. E ainda: “o normal funcionamento dos Estabelecimentos Prisionais que pressupõe a existência de um ambiente preservado de agitações...”. De resto, o procurador da República do DIAP pronunciara-se negativamente “por entender existir perturbação do decurso do inquérito e perigo de alarme social e por não advir da proibição qualquer prejuízo para as garantias de defesa do arguido, para além de serem os tribunais o lugar próprio para a realização de julgamentos”.
Carlos Cruz não se conformou e recorreu para Celeste Cardona, ministra da Justiça que pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (CCPGR), que o veio a emitir em 26 de Junho de 2003. O parecer era equilibrado: reconhecia que os direitos, liberdades e garantias dos reclusos podiam ser objecto de restrições desde que estivessem previstas na lei, fossem necessárias para salvaguardar outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos e respeitassem o princípio da proporcionalidade. Nestes termos, a liberdade de expressão dos reclusos em prisão preventiva podia ser restringida, atendendo a interesses processuais, à manutenção da disciplina e da ordem no estabelecimento prisional ou, ainda, ao segredo de justiça. E quanto a entrevistas escritas, o parecer do CCPGR remetia para o regime legal do direito a correspondência então em vigor. Aí se previa que “o recluso tem direito a receber ou a enviar correspondência” mas que o director podia “reter a correspondência escrita pelo recluso ou a este dirigida quando ponha em perigo os fins da execução ou a segurança e ordem do estabelecimento, ou contenha relatos deliberadamente incorrectos ou substancialmente diversos da realidade acerca das condições do estabelecimento”. Esclarecida (?), a ministra da Justiça indeferiu o recurso de Carlos Cruz e manteve o despacho do director-geral dos Serviços Prisionais.
Recorreu, então, Carlos Cruz para o Supremo Tribunal Administrativo (STA). Alegava, no essencial, que a decisão em causa era “uma proibição de forma geral, absoluta e irrestrita” de dar entrevistas ou prestar declarações à comunicação social, o que, por si só, violava o princípio da proporcionalidade que, de resto, era referido no parecer do CCPGR. Já a ministra, na sua resposta, alegava que não tinha decidido “em abstracto ou genericamente” e que os motivos determinantes da sua decisão se reconduziam a “matéria de disciplina, ordem e segurança do estabelecimento”.
O STA considerou que não podia aceitar uma decisão que restringia um direito fundamental com base numa prática ”em geral”, sendo certo que nenhuma distinção era feita entre uma entrevista que implicasse, por exemplo, a entrada de jornalistas e  equipamento na prisão e uma entrevista remetida e respondida por escrito, que dificilmente poderia perturbar o seu funcionamento. O despacho de proibição e a confirmação pela ministra não respondiam à questão essencial: em que é que a entrevista poderia perturbar a disciplina, ordem e segurança da prisão?
Ora, “num caso de restrição de direitos fundamentais, não é o destinatário da medida restritiva que tem de revelar que a restrição é desnecessária, é, antes, a medida que tem de revelar necessária” e, para isso acontecer, têm de ser formuladas as razões que a fundamentam.
E assim, o STA em 7 de Outubro de 2004 –  já as perguntas da entrevista deviam estar um pouco desactualizadas... – anulou, e bem, o despacho da ministra da Justiça por considerar débil e confusa a fundamentação apresentada para a proibição, protegendo a liberdade de expressão do recluso Carlos Cruz
Como todos sabemos, o ex-primeiro-ministro José Sócrates, actualmente o recluso n.º 44 do Estabelecimento Prisional de Évora, decidiu exercer a sua liberdade de expressão e iniciou uma campanha de relações públicas que não vai deixar ninguém indiferente e que anunciam uma escalada de tensão e mesmo, eventuais conflitos. Os portugueses devem recostar-se nas cadeiras para apreciarem melhor o que se vai passar.
 
CORRECÇÃO: Onde se escreveu, erradamente,que a decisão do STA era de Outubro de 2014, passou a estar (correctamente), Outubro de 2004, a data certa.

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