Alguém me recomendou a leitura de Kant para temperar a minha arrogância. A bem intencionada recomendação funda-se na ideia de que talvez eu entenda melhor o que está escrito em alemão porque, decididamente, o que está escrito em Português ultrapassa as minhas capacidades intelectuais. A recomendação é uma espécie de guia de marcha para ir à re-educação. Não li todas as obras de Kant, obviamente, mas o texto que me foi recomendado, sobre a pedagogia, faz parte do pouco que li. E há uma coisa interessante que Kant faz nessa reflexão. Ele propõe uma distinção entre educação (Bildung) e formação (Ausbildung). Educação é o seu grito de guerra, pois para Kant uma pessoa só é verdadeiramente livre quando faz uso da sua razão para recuperar o mundo e para ser um agente moral. O seu apelo “sapere aude!”, isto é ousar o conhecimento, funda-se nesse objetivo. Já a formação ocupa um lugar inferior no seu pensamento, pois ela consiste apenas em encher as pessoas de coisas. Os filósofos ainda estão a discutir se se pode mesmo negar à formação essa capacidade emancipatória ou se Kant queria dizer mesmo isso. Para os meus propósitos aqui não importa resolver esse problema.
O que importa é o que esta distinção nos diz sobre alguma cultura académica no nosso país. Há um número considerável de gente – pelo menos a julgar pelas discussões que tenho acompanhado no Facebook, algumas vezes até como protagonista – que tem uma concepção de cultura académica que me parece mais próxima de formação do que de educação no sentido kantiano. A educação repito, é um acto de disciplina que consiste em cada um de nós se libertar de entraves internos e pessoais ao uso da razão. É a capacidade de pensamento independente e autónimo. A formação é o pensamento sob a direcção de alguém. Há gente que pensa que o que aprende nos bancos universitários, o que os autores das várias disciplinas (sociologia, ciência política, antropologia, filosofia e só para falar das letras e ciências sociais) escrevem e defendem é a revelação da verdade. Essa verdade não pode ser contaminada pelo atrevimento da reflexão individual. Até um certo ponto compreendo que algumas pessoas procedam deste modo. Na verdade, a linha que separa a audácia do conhecimento da parvoíce é fininha, por isso pode ser prudente aceitar o que os outros com maior autoridade dizem ser a verdade. Só que um intelectual que se preze não pode ficar contente com esta situação. Tem que ser seu objectivo ir mais longe. E ir mais longe significa adquirir a capacidade de ler criticamente e não usar o conhecimento científico apenas como um livro de receitas.
Infelizmente, é o que acontece. E isso empobrece a discussão na esfera pública. Noções como Estado, democracia e corrupção, só para citar três, são usadas por algumas pessoas como entidades naturais que só podem ser entendidas duma única maneira. Qualquer reflexão crítica corrompe o seu significado e isso vai incomodar o espírito dos autores que fixaram as definições para todo o sempre. Não se faz, é sacrilégio. Ser intelectual e académico não é interpelar lugares-comuns, mas sim repeti-los; não é domesticar o conhecimento, mas sim imitá-lo; não é usar o debate de ideias para abrir a própria mente, mas sim para a fechar e a proteger do efeito corruptor da objectividade; ser intelectual e académico é prescindir de argumentos, estar na cómoda posição de apenas dizer “esse não sabe nada”, “esse não é intelectual”, “isso não faz sentido”, “isso é falacioso”, “você não leu Hegel”. Lembro-me de dois episódios engraçados aqui no Facebook. Um foi quando reinterpretei Maquiavel e alguém que não reconhecia o Maquiavel que lhe foi ensinado nos bancos da universidade se insurgiu sem dizer porque a minha interpretação estava errada; só dizia que não era verdade. O outro foi quando critiquei os escritos de Rousseau – que muita gente gosta de papaguear sem nunca o ter lido – e alguém me acusou de complexo de inferioridade sem, contudo, dizer o que estava errado com a minha crítica.
Então, está escrito em algum livro de ciência política que o Estado tem como função disponibilizar educação, toca meio mundo a repetir isso como algo sagrado. Está escrito em algum livro de filosofia política que democracia é alternância, toca meio mundo a repetir isso. Aparece um relatório internacional a dizer que Moçambique é corrupto, pobre, criminoso e não sei quanto mais, toca meio mundo a apoiar ou a rejeitar sem contudo interpelar as metodologias, os conceitos, as teorias. E isso até nem é o pior. Muitos que comentam esse tipo de relatórios e estudos nem se dão à maçada de os ler. Não é que os deviam ler. Mas se comentam com tanta propriedade tinham que os ter lido.
O país está a ser nivelado por baixo por gente com formação, mas sem educação, gente, contudo, que apresenta o que não sabe com ar grave e sempre pronto a rejeitar qualquer argumento contraditório com acusações de arrogância ou lambebotismo. Conforme disse numa das pseudodiscussões em que participei se não fosse assim tão grave era caso para rir. Só que consigo me rir.
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