sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A ousadia do conhecimento


Alguém me recomendou a leitura de Kant para temperar a minha arrogância. A bem intencionada recomendação funda-se na ideia de que talvez eu entenda melhor o que está escrito em alemão porque, decididamente, o que está escrito em Português ultrapassa as minhas capacidades intelectuais. A recomendação é uma espécie de guia de marcha para ir à re-educação. Não li todas as obras de Kant, obviamente, mas o texto que me foi recomendado, sobre a pedagogia, faz parte do pouco que li. E há uma coisa interessante que Kant faz nessa reflexão. Ele propõe uma distinção entre educação (Bildung) e formação (Ausbildung). Educação é o seu grito de guerra, pois para Kant uma pessoa só é verdadeiramente livre quando faz uso da sua razão para recuperar o mundo e para ser um agente moral. O seu apelo “sapere aude!”, isto é ousar o conhecimento, funda-se nesse objetivo. Já a formação ocupa um lugar inferior no seu pensamento, pois ela consiste apenas em encher as pessoas de coisas. Os filósofos ainda estão a discutir se se pode mesmo negar à formação essa capacidade emancipatória ou se Kant queria dizer mesmo isso. Para os meus propósitos aqui não importa resolver esse problema.
O que importa é o que esta distinção nos diz sobre alguma cultura académica no nosso país. Há um número considerável de gente – pelo menos a julgar pelas discussões que tenho acompanhado no Facebook, algumas vezes até como protagonista – que tem uma concepção de cultura académica que me parece mais próxima de formação do que de educação no sentido kantiano. A educação repito, é um acto de disciplina que consiste em cada um de nós se libertar de entraves internos e pessoais ao uso da razão. É a capacidade de pensamento independente e autónimo. A formação é o pensamento sob a direcção de alguém. Há gente que pensa que o que aprende nos bancos universitários, o que os autores das várias disciplinas (sociologia, ciência política, antropologia, filosofia e só para falar das letras e ciências sociais) escrevem e defendem é a revelação da verdade. Essa verdade não pode ser contaminada pelo atrevimento da reflexão individual. Até um certo ponto compreendo que algumas pessoas procedam deste modo. Na verdade, a linha que separa a audácia do conhecimento da parvoíce é fininha, por isso pode ser prudente aceitar o que os outros com maior autoridade dizem ser a verdade. Só que um intelectual que se preze não pode ficar contente com esta situação. Tem que ser seu objectivo ir mais longe. E ir mais longe significa adquirir a capacidade de ler criticamente e não usar o conhecimento científico apenas como um livro de receitas.
Infelizmente, é o que acontece. E isso empobrece a discussão na esfera pública. Noções como Estado, democracia e corrupção, só para citar três, são usadas por algumas pessoas como entidades naturais que só podem ser entendidas duma única maneira. Qualquer reflexão crítica corrompe o seu significado e isso vai incomodar o espírito dos autores que fixaram as definições para todo o sempre. Não se faz, é sacrilégio. Ser intelectual e académico não é interpelar lugares-comuns, mas sim repeti-los; não é domesticar o conhecimento, mas sim imitá-lo; não é usar o debate de ideias para abrir a própria mente, mas sim para a fechar e a proteger do efeito corruptor da objectividade; ser intelectual e académico é prescindir de argumentos, estar na cómoda posição de apenas dizer “esse não sabe nada”, “esse não é intelectual”, “isso não faz sentido”, “isso é falacioso”, “você não leu Hegel”. Lembro-me de dois episódios engraçados aqui no Facebook. Um foi quando reinterpretei Maquiavel e alguém que não reconhecia o Maquiavel que lhe foi ensinado nos bancos da universidade se insurgiu sem dizer porque a minha interpretação estava errada; só dizia que não era verdade. O outro foi quando critiquei os escritos de Rousseau – que muita gente gosta de papaguear sem nunca o ter lido – e alguém me acusou de complexo de inferioridade sem, contudo, dizer o que estava errado com a minha crítica.
Então, está escrito em algum livro de ciência política que o Estado tem como função disponibilizar educação, toca meio mundo a repetir isso como algo sagrado. Está escrito em algum livro de filosofia política que democracia é alternância, toca meio mundo a repetir isso. Aparece um relatório internacional a dizer que Moçambique é corrupto, pobre, criminoso e não sei quanto mais, toca meio mundo a apoiar ou a rejeitar sem contudo interpelar as metodologias, os conceitos, as teorias. E isso até nem é o pior. Muitos que comentam esse tipo de relatórios e estudos nem se dão à maçada de os ler. Não é que os deviam ler. Mas se comentam com tanta propriedade tinham que os ter lido.

O país está a ser nivelado por baixo por gente com formação, mas sem educação, gente, contudo, que apresenta o que não sabe com ar grave e sempre pronto a rejeitar qualquer argumento contraditório com acusações de arrogância ou lambebotismo. Conforme disse numa das pseudodiscussões em que participei se não fosse assim tão grave era caso para rir. Só que consigo me rir.
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  • Yesterday at 13:45 · Like · 1
  • Alexandre Zerinho "a linha que separa a audácia do conhecimento da parvoíce é fininha" muito interessante. Começo a entender o orgulho e autoridade das pessoas.
    Yesterday at 13:55 · Like · 1
  • Alcídes André de Amaral Educação envolve esforço e uma fuga a comodidade! Nao seria um erro dizer que muitos de nós tememos esforço e nos entregamos sorridentemente a o que é cómodo portanto, a repetição a negação da crítica... Se nem mesmo Nietzsche que criticava severamente a filosofia e ciência da sua epoca de uma maneira tal que parecia não deixar muitas dúvidas escreveu no final do seu "Assim falava Zaratustra": "agora ide sozinhos meus disciplos, pode ser que Zaratustra os tenha ludibriado". E Zaratustra era o seu alterego! Mas o pessoal por aqui detesta caminhar sozinho e sempre procura uma pastor para os acompanhar levando consigo "uma verdade" para que a simples máquina de repetição de palavras e ideias de alguém esteja ai a repetir como sendo a última verdade do mundo! Não seria em vão que ouvimose ouvi a dias expressões como estas: "não para conconcordar ou discordar, é para saber e teres a informação". Uma boa parte nós, intelectauis, académicos, estudantes universitários ou não optamos sempre em ser de Deus e nao de Diabo... `E que dizem que o Diabo da trabalho ao ocioso! Os de Deus, não trabalham mais além de somente repetir e seguir o que ja esta escrito e prontos! É só alguém com notoriedade falar e já está... é o nosso senhor! Fazem da palavra deste a sagrada escritura. Entao, nao criticam, simplesmente ou falam mal até aos mais simples argumentos contrários ou se calam de uma vez por todas... Portanto, não debatem! Este texto seu pode ajudar alguma coisa!
  • Romao Kumenya Kumenya isso eh verdade ate quando relatorios sao publicados a dizer que o estado da nacao esta bom. muitos aplaudem e tornam isso seu vade mecum
    Yesterday at 14:30 · Like
  • Josue Matsinhe Interessante conceptualizacao de Educacao. Suponho que seja o "think out of the box" de que sou apologista.
    Yesterday at 14:57 · Like · 1
  • Sergio Left Eye Puita Professor, acho que o canal que conduz-nos das teorias à objectividade, pratica, realidade é o contexto. Pouco ou nada aprendo com sabios que não transpõe o que os diz ser à realidade, muitos são capazes de memorizar toda biblioteca, porem incapazes de aplicar esse conhecimento em pratica. Aceito que os académicos saibam por quem, quando, como, para que foi inventada a roda, lamento a ausência de roda nas suas dinâmicas. Sorri professor, evite as ulceras!!!
  • Mário João Francisco Francisco ainda nao li seu post professor....ainda quero perceber campos de reeducaxao
    Yesterday at 15:24 · Like
  • Luisa Fernando Uachisso Agora sim, Professor Elisio Macamo, parece que estamos a partilhar ideias! Força e não se canse de estimular a educação! Entristece me assistir a situações protagonizadas por alguns dos meus concidadãos que acumulam títulos académicos mas incapazes de trazer alguma contribuição "para recuperar o mundo e ser um agente moral"! Isto remete me ao que aprendi no curso sobre a Teologia Pastoral num módulo sobre o Cristianismo que se resume essencialmente no facto de Jesus Cristo ter sido um Homem livre porque criticou os sacerdores na época que se julgavam mais próximos de Deus, os governantes que tinham o poder politico e os homens da lei, detentores da sabedoria! Apresentou uma nova proposta de vida que é amar o próximo, praticar a justiça por aí em diante! É interessante como esta realidade ainda hoje pode ser observada em todas as sociedades! Todos somos chamados a agir de acordo com a nossa formação e não de acordo com a nossa educação! Muitos de nós preferimos assumir o papel de simples "expectadores, não falamos e nem agimos para não ferir susceptibilidades ou não colocar o "nosso pão" em risco! Outros preferem assumir o papel de corajosos/revolucionários criticando tudo e sem contudo apresentar alternativas! Ou seja, na minha opinião eu julgo que para recuperar o mundo devo apontar os erros e apresentar as propostas para a correcção! Os intelectuais/académicos podem jogar o papel de influenciar a opinião dos Moçambicanos através da partilha dos conhecimentos e experiências a que têm acesso! Durante algum tempo e influenciada também pelos manuais que li na faculdade defendia que a provisão dos serviços de educação era da exclusiva responsabilidade do Estado e aceitava com muita naturalidade o facto de no meu país o maior nº de funcionários provir da Educação seguida da Saúde! Mas depois de entrar em contacto com outras realidades admito que na situação actual é possível delegar esta responsabilidade ao poder local e deixar o Estado com o papel de definição das políticas públicas e a respectiva fiscalização! O argumento da falta de capacidade neste nível pode ser afastado com a transferências dos recursos do Estado para as autarquias locais por exemplo ! Com esta medida reduz-se o tamanho do Estado e criam-se as condições para colocar os serviços públicos mais próximos do cidadão e os servidores mais comprometidos porque não estarão a cumprir ordens superiores!.....O cidadão educado deve pressionar e influenciar a sociedade a seguir o mesmo caminho para que o servidor ganhe a consciência de que recebe um salário porque o cidadão paga imposto! Repito o nº dos governantes incluindo todos os funcionarios do Estado não supera o nº da população! Com persistência pode se conseguir um mundo melhor!
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  • Antonio Zacarias A inclusão do outro
    22 hrs · Like
  • Amilcar Joaquim Inguane Somos preguiçosos por herança ou natureza? De facto tenho dificuldades de perceber se fomos mal educados por sermos passivos ou a passividade tem a ver com a formatação (formação) que recebemos das universidades?

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