Acidente de
Mbuzini
João
M. Cabrita
O papel de Sérgio Vieira tem sido o de encobrir os
verdadeiros responsáveis pelo acidente de Mbuzini. Em conluio com a Embaixada da
União Soviética em Maputo, tratou de ocultar das comissões de inquérito
nacional e internacional uma testemunha chave – o mecânico de bordo que havia
sobrevivido ao acidente – e depois tentou extrair, com recurso à intimidação, depoimentos
de uma outra testemunha chave que fossem coincidentes com a cabala montada por
círculos influentes em Moscovo e Maputo a qual visava provar, através de órgãos
de comunicação social subservientes, a existência de um VOR falso.
Na recente entrevista
que Sérgio Vieira concedeu à STV, ficou uma vez mais demonstrado que o papel do
antigo ministro da segurança moçambicano, no âmbito de Mbuzini, tem como
objectivo fundamental encobrir os verdadeiros responsáveis pelo acidente de
aviação em que perdeu a vida o Presidente Samora Machel. Não obstante a sua
condição de membro da Comissão Nacional de Inquérito, Sérgio Vieira revelou um profundo
desconhecimento das circunstâncias do fatídico acontecimento, para além de ter
baralhado situações e distorcido factos, o que, à partida, o impede de evocar o
princípio jurídico de prova circunstancial,
e faz dele uma fonte não credível. As teses infundadas por ele defendidas, a
incongruência dos seus pontos de vista, a insustentabilidade dos seus
argumentos e a forma atabalhoada como trata de questões de aviação (veja-se, a
título de exemplo, o ter atribuído à IATA responsabilidades que são da esfera
de competências da ICAO) levam observadores atentos a concluir que as ilações
por ele tiradas a respeito de telefonemas recebidos de missões diplomáticas
acreditadas em Maputo, poucos dias antes do funeral de Samora Machel, mais não
são do que meras especulações, vindas de quem não é capaz de destrinçar entre o
plausível e o inverosímil.
A determinada
altura da entrevista, Sérgio Vieira afirma que “na caixa de voz de cabine, não a dos motores, que é feita na África do
Sul, está registado onde é que estamos. “Estamos fora da rota?” e o navegador
responde: “não”.
A leitura do
gravador de cabine (o CVR, mas que Sérgio Vieira designa de “caixa de voz de
cabine”) não foi feita na África do Sul. Conforme o acordado entre as três
partes (Moçambique, África do Sul e União Soviética), a leitura do CVR teve
lugar em Zurique, Suíça. E a outra componente das caixas negras, o Gravador de
Dados Técnicos do Voo (DFDR, que Vieira descreve como “caixa dos motores”...),
foi aberta e analisada em Moscovo. Da transcrição do conteúdo do CVR não
constam as palavras que Sérgio Vieira atribui aos tripulantes, obviamente numa
tentativa de dar consistência à sua teoria sobre um “aparelho muito mais complexo que estava a ser testado e podia dar
informações falsas de radar e de rota”. É a velha tese do “VOR falso”,
agora apresentada com roupagens diferentes.
A tese do VOR
falso foi de tal modo inconsistente que a União Soviética até tentou fabricar
provas para demonstrar a sua existência. Os peritos soviéticos que vieram a
Maputo no âmbito das investigações, pretendiam que o Comandante Sá Marques, do
voo TM 103 das LAM, admitisse que o Boeing-737 por ele pilotado e que seguia da
Beira em direcção a Maputo quando o Tupolev sofreu o acidente, também havia
sido desviado da rota por acção do famigerado VOR falso. O Comandante Sá
Marques negou terminantemente que a sua aeronave tivesse sido desviada da rota,
pois esteve sempre sintonizada no VOR de Maputo, inclusivamente quando recebeu
ordens da Torre de Controlo do aeroporto da capital moçambicana para regressar
à Beira poucos minutos depois do despenhamento do Tupolev. A recusa do
Comandante Sá Marques em alinhar na cabala soviética, que visava
desculpabilizar os pilotos do Tupolev, lançou por terra toda a encenação montada
em torno do VOR falso, o que não foi do agrado do então ministro da segurança
moçambicano. Quase que de imediato, este tratou de enviar agentes do Snasp à
residência do piloto das LAM, num acto ostensivamente intimidatório, o que
levaria o Comandante Sá Marques a optar por deixar Moçambique.
Uma outra prova da não existência de nenhum VOR falso é a de que o avião, após ter efectuado a volta prematura à direita, deixou de estar sob a influência desse aparelho, pois o co-piloto havia mudado a frequência do VOR para a frequência do ILS (Sistema de Aterragem por Instrumentos). Além do mais, nos últimos minutos do voo ficou registada no CVR esta troca de palavras entre o navegador e o comandante, provando que o avião não se encontrava sob a acção de nenhum VOR:
NAVEGADOR: Não há para onde ir, não há NDB
[Radiofarol Não-Direccional],
não há nada.
COMANDANTE: Nem NDBs, nem ILS.
Se os grandes
defensores da teoria do VOR falso, incluindo Sérgio Vieira, estivessem tão
cientes da sua existência, ele próprio não teria, em conluio com a Embaixada
Soviética em Maputo, tratado de ocultar das comissões de inquérito nacional e
internacional uma testemunha chave – o mecânico de bordo que havia sobrevivido
ao acidente – permitindo antes que ele comparecesse perante ambas a fim de
esclarecer essa e várias outras questões.
O VOR é
instrumento que indica o azimute, isto é, uma direcção no plano horizontal.
O sinal emitido por um VOR por si só
não pode fornecer as informações em função das quais se poderá tentar uma
descida, quer por instrumentos ou ao abrigo das Regras de um Voo Visual. O
avião desceu por decisão do piloto, e fê-lo em desobediência das instruções
dadas pela Torre de Controlo de Maputo e em desrespeito do aviso sonoro do
GPWS. As instruções da Torre de Controlo também ficaram gravadas e são bem
explícitas: quando atingissem os 3,000 pés de altitude, os pilotos deveriam
parar com a descida até avistar as luzes da pista.
Momento em que se
procedia à abertura do CVR do Tupolev presidencial em Zurique. Do lado
esquerdo, em primeiro plano, um membro da Comissão Nacional de Inquérito
moçambicana. (Foto: Des Lynch)
Quando
solicitado a comentar pelo entrevistador da STV o facto dos tripulantes estarem
entretidos em conversas banais e com a encomenda de cerveja, Sérgio Vieira
tenta em vão minimizar essas graves faltas do comandante e dos restantes
membros da tripulação, saindo-se com um argumento que demonstra ser ele a pessoa
menos recomendada para integrar comissões de inquérito mandatadas para
investigar desastres de aviação: “Se
encomendaram cervejas, a autópsia não demonstrou terem bebido cerveja.”
Mas a questão que
se põe não é se os tripulantes beberam ou deixaram de beber cerveja, mas sim o
facto de ao se ocuparem de questões como a encomenda de bebidas, não cumpriram
com os procedimentos obrigatórios, nomeadamente a verificação das listas de
descida e de aproximação à pista. É o que na gíria da aviação se designa de cross-checking, ou contra-prova, em que
o comandante da aeronave pede a cada tripulante que proceda à leitura, em voz
alta, de todos os instrumentos de bordo,
incluindo as frequências dos receptores VOR, e verifique o funcionamento de
outros aparelhos precisamente para garantir a segurança da aeronave nos
derradeiros e cruciais momentos do voo.
Nada disto foi
efectuado no fatídico voo de 19 de Outubro de 1986, em violação dos
regulamentos elementares de aviação. Se o comandante se ocupava da encomenda e
distribuição de cervejas e Coca-Cola entre os restantes membros da tripulação,
o co-piloto escutava, através do rádio de alta-frequência de bordo, uma estação
emissora soviética que transmitia um boletim de notícias seguido de um programa
musical. Para além das bebidas, o comandante comentava sobre os dotes físicos de
uma das hospedeiras de bordo. Tudo isso ficou gravado no tal aparelho a que
Sérgio Vieira chama de “caixa de voz de cabine”.
Sérgio Vieira
também se referiu às horas de voo dos tripulantes, tendo dito “que todos eles, menos um, tinham cerca de
40 mil horas de voo.” E acrescenta: “O
que tinha menos andava à volta de 8 mil horas.”
De acordo com o
Relatório Factual do acidente, compilado e assinado por peritos moçambicanos,
sul-africanos e soviéticos, nenhum dos tripulantes possuía nada que se
parecesse com as “40,000 horas” de voo avançadas por Sérgio Vieira. De acordo
com o referido relatório, as horas de voo dos tripulantes do Tupolev
presidencial estavam distribuídas da seguinte forma:
Tupolev 134-A
C9-CAA
Tripulantes
|
Horas
de Voo
|
Comandante
|
13056
|
Co-piloto
|
3790
|
Navegador
|
12948
|
Operador de Rádio
|
14370
|
Mecânico de Bordo
|
6203
|
A facilidade
com que Sérgio Vieira lança números ao acaso, já havia ficado demonstrada num
artigo de opinião por ele assinado no semanário Domingo, edição de 29 de Junho de 2003, em que afirmou: “Qualquer dos tripulantes beneficiava de uma
folha brilhante, o comandante com mais de duas dezenas de milhar de horas de
voo.”
A aparente dificuldade
de Sérgio Vieira em lidar com questões aritméticas ficou ainda patente na
entrevista concedida ao canal STV, no decurso da qual afirmou que “o comandante, por qualquer razão, levanta o
avião, entra no território sul-africano e cerca de 200 /300 metros bate com a cauda
numa montanha e o avião cai num barranco.”
Ao contrário do
que afirma Sérgio Vieira, o avião apenas entrou 150 metros no território
sul-africano. Em nenhum momento da descida, o comandante “levanta o avião”,
segundo alega Sérgio Vieira, e muito menos ao entrar no espaço aéreo
sul-africano, não obstante o sinal de aviso dado pelo Sistema de Aviso de
Proximidade do Solo (GPWS) e que foi escutado no interior da cabine de comandos
durante 32 segundos. O desrespeito pelo sinal do GPWS por parte de quem comandava
a aeronave foi uma das principais causas do desastre e não o “aparelho muito mais complexo que estava a
ser testado e podia dar informações falsas de radar e de rota”, segundo
especula Vieira. Na realidade, e conforme as três partes deixaram explícito no Relatório
Factual, todos os instrumentos de bordo funcionaram normalmente, não tendo
sofrido qualquer interferência externa.
De referir que
no momento da colisão o trem de aterragem do Tupolev ainda se encontrava
recolhido, indicativo de que o avião não estava em configuração de aterragem, o
que reforça ainda mais a necessidade de uma resposta imediata ao sinal de
alarme do GPWS. Os regulamentos do Tupolev 134-A, são bastante precisos quanto
aos procedimentos a seguir na eventualidade do GPWS ser activado:
Se o aviso do GPWS soar
com a aeronave em voo plano ou a descer sobre colinas ou terreno montanhoso, a
tripulação deve tomar as seguintes medidas:
Fazer a aeronave subir com
uma aceleração decisiva de entre 1,25 a 1,7 nós, mantendo o avião em posição de
subida entre 20 a 30 segundos e com os motores a trabalhar a uma potência
idêntica à da descolagem.
AVISO: Se o tipo de
terreno da área sobrevoada for desconhecido, os
membros da tripulação
devem proceder de acordo com as recomendações para voos sobre colinas ou
terreno montanhoso.
A imagem mostra que o trem de
aterragem do Tupolev presidencial ainda se encontrava recolhido no momento da
colisão. (Foto: Des Lynch)
E quanto ao
avião ter “batido com a cauda numa
montanha” e ter “caído num barranco”
não coincide com o que na realidade se passou no momento da colisão. De acordo
com o Relatório Factual, o primeiro impacto do avião ocorreu quando a ponta da
asa esquerda da aeronave bateu no ramo da única árvore existente a cerca de 100
metros da fronteira entre Moçambique e a África do Sul. Com uma inclinação de
1° e 20’, a asa esquerda do Tupolev actuou depois como se fosse uma lâmina, que
ia cortando os arbustos rasteiros de micaia que se encontravam a seguir à
referida árvore. O primeiro contacto sólido com o terreno, verificou-se
igualmente com a ponta da asa esquerda, o que foi confirmado pelo facto do
vidro de cor encarnada da luz de navegação ter ficado enterrado no solo. Na
zona do impacto, o terreno entrava em declive sobre uma colina, o que permitiu
atenuar o impacto da colisão, fazendo com que a aeronave deslizasse
momentaneamente, o que explica a existência de sobreviventes. Se, como alega
Sérgio Vieira, a cauda do avião tivesse colidido primeiro, os que sobreviveram
ao desastre teriam provavelmente morrido no impacto dado que todos eles seguiam
na parte traseira do Tupolev.
O primeiro ponto de
impacto foi a extremidade da asa esquerda do avião, a qual cortou um ramo a
esta árvore, a cerca de 100 m da fronteira com Moçambique. (Foto: Des Lynch)
O tipo de terreno contra o qual o Tupolev presidencial colidiu era uma
colina, cujo declive permitiu que o avião deslizasse momentaneamente até se desintegrar.O
avião não caiu em nenhum barranco pois este, como a imagem ilustra, não existia.
(Foto: Des Lynch)
Surpreendentemente,
e contrariando o que peritos moçambicanos confirmaram num parecer que consta do
relatório da Comissão de Inquérito, Sérgio Vieira, ao tratar da questão do
combustível da aeronave, afirmou na entrevista, que “tentou-se acusar que o avião não tinha combustível suficiente, mas
viu-se que tinha combustível suficiente”. De facto, conforme vem claramente
enunciado no Relatório Factual, o avião não dispunha de combustível suficiente
para o voo de regresso a Maputo. Na eventualidade de ter de abortar uma
aterragem em Maputo, o avião não conseguiria alcançar o aeroporto alternante,
que era a Beira. E aqui, o erro da tripulação foi não ter cumprido com os
regulamentos de aviação que determinam que uma aeronave deve dispor de
combustível suficiente para poder alcançar o aeroporto de destino, e dirigir-se
deste ao aeroporto alternante, e ainda 45 minutos adicionais em voo de espera
sobre o aeroporto alternante. Se, na noite do dia 19 de Outubro de 1986, o Tupolev
presidencial tivesse de desviar a rota para a Beira quando se encontrava desorientado
nas proximidades de Maputo, não conseguiria ir muito além do Rio Save – caía,
simplesmente, por falta de combustível.
A falta de
combustível verificada no voo em que o Presidente Samora Machel perdeu a vida,
não foi a primeira que ocorreu em voos pilotados pelo mesmo comandante. Meses
antes do desastre de Mbuzini, o Tupolev presidencial efectuou uma aterragem em
Maputo com um dos motores parados por insuficiência de combustível.
Ao longo da sua
carreira, o piloto do Tupolev presidencial efectuou voos na Europa e em outros
países africanos em que as aeronaves sob seu comando não dispunham de
combustível suficiente. E isto foi confirmado por ele próprio durante a
conversa que manteve com os demais tripulantes do voo de 19 de Outubro de 1986,
dentro da cabine de comandos, e que ficou gravada no CVR. A transcrição do CVR,
efectuada em Zurique, prova-o.
Semanas antes
do acidente de Mbuzini, o Tupolev presidencial, com a primeira-dama moçambicana
a bordo, despistou-se ao efectuar uma aterragem no aeroporto de Mocímboa da
Praia. No mesmo voo, o piloto abortou por duas vezes a aterragem no aeroporto
de Pemba, só conseguindo fazê-lo à terceira tentativa, pese embora o facto de
na altura se registar bom tempo em Cabo Delgado. Foi a conjugação destes e
outros factores que levou um membro do então Bureau Político do Partido Frelimo
a comentar, em privado, que a Sra. D. Graça Machel “sabe perfeitamente que os
pilotos só nos causavam problemas”, na sequência das declarações por ela
proferidas perante a Comissão da Verdade e Reconciliação sul-africana de que
oficiais das FAM haviam colaborado com o apartheid no “assassinato” do
Presidente Samora Machel.
_____________________
* Agradeço a Des
Lynch, investigador que integrou a Comissão de Inquérito sul-africana, o uso do
seu manuscrito, não publicado, “Investigating ‘C9-CAA’ – The true events of the
investigation into the aviation accident in which President Samora Machel
died”.
ZAMBEZE – Maputo 21 de Agosto de 2008