terça-feira, 11 de setembro de 2012

Moçambique: os desesperados

Os trágicos acontecimentos registados durante o mês de Agosto em Angola haviam sido ansiosamente seguidos em Moçambique. Recordemos que a par dos distúrbios em Luanda se verificaram um pouco por toda a parte em Moçambique pequenos inci­dentes, que no entanto não se revestiram de grande significado imediato. Das hipotéticas deambulações dos chamados mercenários de Jorge Jardim pelos distritos da Beira e de Vila Pery, passando pelas sucessivas paralisações dos portos de Lourenço Mar­ques, da Beira e de Nacala, até à crescente actividade de guerrilhas da FRELIMO, com especial incidência nos distritos de Vila Pery, Beira e Tete — neste último com constantes sabotagens da linha férrea abastecedora das obras de Cabora Bassa — tudo le­vava a crer que cedo ou tarde a situação poderia agravar-se.
Ainda no mês de Agosto, Samora Machel tornou pública a intenção da FRELIMO, em prosseguir a luta armada cada vez mais abertamente até que as autoridades portuguesas se decidissem a reatar nego­ciações à luz das condições que para tanto a FRELIMO julgava imprescindíveis.
A 2 de Setembro, anuncia-se, por intermédio de Samora Machel — que em Dar-es-Salam deu uma conferência à Imprensa internacional — que Portu­gal aceitava finalmente as condições impostas pela FRELIMO e que as negociações seriam reatadas em Lusaka, a partir de 5 de Setembro. Esclarecia-se assim que o Governo Português aceitava o reconhe­cimento do direito inalienável à independência mo­çambicana, com a transferência de poderes para o povo do território, e reconhecia a FRELIMO como único representante legítimo do povo de Moçambique.
«Não vamos negociar a independência. O nosso objectivo é o de estabelecer a forma como o poder será transferido para a FRELIMO, o que corres­ponde aos interesses tanto do povo de Moçambique, como do povo português» — afirmou Machel, nessa conferência de Imprensa.
      Também a provável participação da FRELIMO num governo provisório em Moçambique foi rejeitada pelo presidente do movimento, que asseverou a sua certeza de que o povo moçambicano estava mais do que suficientemente preparado para uma indepen­dência sob a orientação da FRELIMO.
Samora Machel, ao fazer estas afirmações, baseava-se certamente na colaboração que começara nas últimas semanas a verificar-se entre as autoridades portuguesas e elementos da FRELIMO, para a ma­nutenção da ordem nos distritos mais nortenhos do território.
Soube-se, entretanto, que se registavam movimentos de tropas da FRELIMO junto à cidade da Beira, suspeitando-se de que aquele grupo emancipalista pretenderia assumir uma posição de força que lhe permitisse voz mais activa nas conversações a realizar em Lusaka.
Em Lourenço Marques, por outro lado, cresce a ansiedade face às declarações de Samora Machel. O Dr. Antero Sobral, secretário de Estado do Tra­balho de Moçambique, e representante do Governo do território às conversações que se irão travar em Lusaka, afirma categoricamente que negros e brancos de Moçambique confiam na FRELIMO.
     Em Vila Pery, durante um comício de apoio à FRELIMO, o comandante Inguala faz um violento ataque a Jorge Jardim, apodando-o de «bandido, lacaio do imperialismo, ladrão dos interesses do povo moçambicano». Miguel Murupa1, Joana Simeão e Uria Simango são também acusados de traição.
Em Lisboa, é anunciada a constituição da delega­ção portuguesa às conversações de Lusaka: ministros Melo Antunes, adjunto do primeiro-ministro, Mário Soares, dos Estrangeiros, e Almeida Santos, da Coor­denação Interterritorial, além de representantes das Forças Armadas e do já citado representante do Governo moçambicano.
A 4 de Setembro, uma quarta-feira, Lourenço Marques apresenta todo o aspecto de um domingo, na sequência de pedidos feitos à população para que nesse dia não trabalhasse, numa manifestação de apoio aos representantes da FRELIMO nas nego­ciações. O Governo do território, numa atitude «inte­ligente e diplomática», segundo observadores na ca­pital moçambicana, anunciou a tolerância de ponto para esse dia. Fechou o comércio, não trabalhou a indústria, e apenas as repartições oficiais consideradas de necessidade imprescindível funcionaram.
     E entretanto feito um convite pela Associação Académica, pelos sindicatos, pelas direcções dos bancos, pelas associações comerciais, industriais, agrícolas e de proprietários, e ainda pêlos Democratas de Mo­çambique, para que a população se concentre no Estádio da Machava, antigo Estádio Salazar, que tem capacidade para cerca de sessenta mil pessoas.
Chega nesse dia a Lourenço Marques o industrial António Champallimaud, para, segundo afirma, uma visita às empresas de que é principal accionista — cimentos, nitratos e adubos, companhias de seguros, Banco Pinto & Sotto Mayor: mais de três milhões de contos, em resumo.
Em Londres, já a caminho da Zâmbia, Mário Soares afirma a esperança de que Moçambique se torne independente em Junho ou Julho de 1975, e revela que será a FRELIMO a escolher o Governo de Transição que até essa data funcionará, nele sendo obrigatoriamente incluído um Alto Comissário repre­sentante do chefe de Estado português.
Em Lourenço Marques, ainda a 4 de Setembro, é distribuído um comunicado do Partido de Coligação Nacional (formado por Uria Simango, elemento dissi­dente da FRELIMO e cabecilha da COREMO; por Joana Simeão, ex-dirigente do extinto GUMO; pelo reverendo Gwengere), no qual se produz um violento ataque aos democratas moçambicanos.
     A 5, iniciam-se as negociações em Lusaka, veri­ficando-se pelas afirmações feitas então por elementos de ambas as delegações que a boa vontade para um acordo final era mútua.
Em Moçambique, de Norte a Sul, inicia-se a con­fraternização entre guerrilheiros e militares do exér­cito português. Ao Estádio da Machava e à praça de touros de Lourenço Marques, acorrem milhares de moçambicanos, com esmagadora predominância de negros, mas também com muitos brancos, em comícios de apoio à FRELIMO. Pelas ruas das cidades sucedem-se as manifestações.
Em Lisboa, paralisam os serviços do aeroporto, à excepção dos da TAP, por terem entrado em greve geral os trabalhadores das companhias aéreas estran­geiras; e de Brazzaville chega a notícia de que Por­tugal iniciaria em 1975 as negociações para a descolonização de Angola.
A 6, em Lusaka, é assinado o cessar-fogo em todo o território, e chega-se a acordo quanto à transfe­rência de poderes para a FRELIMO. O protocolo é assinado a 7.
    Da vizinha África do Sul, surgem logo notícias de que o governo de Pretória era favorável à indepen­dência de Moçambique sob a égide da FRELIMO. Salisbúria, por seu turno, mantém silêncio, e estão ainda presentes no espírito de todos as declarações de Ian Smith, bem recentes, segundo as quais Mo­çambique correria para «o suicídio económico e político», caso não mantivesse abertas à Rodésia as vias de comunicação vitais àquele país para o seu normal abastecimento.
Das conversações em Lusaka, pois, saiu o acordo total para a transmissão de poderes, e é fixada a data de 25 de Setembro de 1975, aniversário da FRELIMO, para o empossamento do Governo Transitório.
1 Miguel Murupa: antigo elemento preponderante da Frelimo. Caído em desgraça, entrega-se às autoridades portuguesas — e tem uma ascensão meteórica nas relações públicas oficiais do governo colonialista.

… E rebenta a violência!
A notícia posta a circular em Lourenço Marques, sobre as conclusões a que se havia chegado nas con­versações de Lusaka, desencadeia então, na tarde de 6, as primeiras de uma série de acções provocadas por reaccionários brancos, que iriam cobrir de luto toda a cidade.
     Quando um carro passava em plena baixa citadina, ostentando uma grande bandeira da FRELIMO1 foi voltado por um grupo de brancos, ao mesmo tempo que a bandeira da FRELIMO era destruída. As fotografias de Samora Machel que os ocupantes do veículo distribuíam são rasgadas, e logo se forma uma enorme multidão com grande predominância de brancos, a qual, incitada por alguns elementos mais excitados, se dirige ao edifício onde funciona o matutino Notícias; ali, parte todas as vidraças do piso térreo; um repórter fotográfico do jornal que pretendeu tirar fotografias naquele local, foi barba­ramente agredido e forçado a fugir. A multidão invade o rés-do-chão do edifício, põe em fuga o pessoal das oficinas, e destrói parte da maquinaria.
Na revista Tempo1 acontece o mesmo, depois de a multidão, para ali chegar, ter atravessado quase toda a cidade, engrossando progressivamente o seu caudal.
Rui Marote, operador cinematográfico, é agredido, roubam-lhe a máquina, retiram o filme, e expõem-no ao Sol, a fim de o inutilizar. Veículos do Notícias e de A Tribuna são apedrejados, voltados, e incendiados. Estes dois jornais diários, ambos propriedade do Banco Nacional Ultramarino, haviam dedicado as respectivas duas últimas edições às conversações de Lusaka, manifestando-se abertamente partidários de um governo transitório presidido pela FRELIMO.
A intervenção de forças da Polícia Militar e da PSP, coadjuvadas com o precioso elemento dissuasor que são os cães-polícias, permitiu que a multidão não levasse a cabo os seus intentos de destruição total. Mas não desarma. Sobe a Avenida Castilho, detém-se frente ao edifício onde funciona o Rádio Clube de Moçambique, e enquanto entoa em unís­sono o hino nacional português, destrói todas as vidraças à pedrada. Ali, também só a intervenção policial permitiu que o vandalismo não alastrasse. Enquanto isso, das redacções dos dois diários assal­tados, pedem-se chamadas telefónicas urgentes para Lusaka, e informa-se a delegação da FRELIMO quanto ao que se está a passar. Ao cair da noite, o edifício é de novo assediado por uma multidão que empunhava a bandeira nacional e cantava o hino português, numa tentativa de assalto às instalações. Chovem pedras e insultos, e a força policial ali pos­tada dificilmente consegue suster os vândalos.
Ainda durante a noite, é forçada a porta da sede da agremiação política Democratas de Moçambique, na Avenida 24 de Julho, e é lançado fogo às insta­lações. A Associação Académica de Moçambique é também assaltada, mas os energúmenos não conse­guem ir além de apedrejamento.
Estava assim desencadeado o processo de «reivin­dicação» branca, o qual havia tido já os seus prelúdios, quando semanas antes um comando de racistas brancos assaltara as oficinas do Notícias e de A Tribuna, fazendo explodir ali duas bombas.
Mau grado estes acontecimentos, ambas as dele­gações ainda presentes em Lusaka manifestam-se opti­mistas quanto ao futuro. Mas em Lourenço Marques, a população é subitamente acordada em sobressalto, à primeira hora do dia 7, por uma violenta explosão, registada num paiol de munições da Força Aérea, situado à saída da cidade, junto ao aeroporto. Era o prelúdio dos acontecimentos que iriam marcar de forma inesquecível o dia 7 de Setembro, na capital moçambicana, de onde, entretanto, se conhecem novos pormenores quanto aos incidentes que já se haviam verificado na própria quinta-feira, dia 5, e que só muito mais tarde viriam a ser relatados pela Imprensa.
Assim, nos distúrbios registados nesse dia, duas figuras características da cidade são apontadas como cabecilhas dos motins: o «Fonseca maluco», ex-agente da Polícia de Segurança Pública e graduado da Organização Provincial de Vigilância e de Defesa Civil (OPVDC), assim a modos que uma milícia branca, e Gonçalo Mesquitela, filho do antigo depu­tado à Assembleia Nacional fascista pelo círculo de Moçambique, e membro destacado da ANP local.
No sábado de manhã recomeçam os incidentes. Surgem carros por toda a cidade, guiados por brancos, e buzinando insistentemente. Na estátua de Mouzinho de Albuquerque, frente aos Paços do Concelho, é colocada uma bandeira nacional e regista-se impres­sionante manifestação de «nacionalismo» por parte de milhares de brancos. O cortejo automóvel dirige-se então ao Estádio da Machava, onde se realizava o comício pró-FRELIMO, engrossando o número de participantes a cada esquina por que passava. A tre­zentos metros do estádio são interceptados por forças policiais e do exército. Desistem dos seus intentos, e é então que um pouco por toda a parte surgem «milagrosamente» milhares de bandeiras verde-rubras.
Com a cidade em agitação total, os manifestantes dirigem-se, cerca das dezasseis horas, para as ime­diações do Rádio Clube de Moçambique, onde, desde a noite anterior, havia tomado posição um «comando» armado.
A multidão é imensa, e o trânsito começa a ser convenientemente desviado para outros locais, tarefa a que se propuseram improvisados «sinaleiros» providencialmente saídos da multidão.
   Pelas dezoito horas e vinte minutos, com Sérgio Cardiga (filho de um importante latifundiário e comerciante, e neto de um deportado para Moçam­bique, por crimes de jurisdição comum praticados em Portugal) à frente do grupo de «comandos» e empunhando uma «Magnun 400», são forçadas as portas do edifício. No interior, dedicam-se à destrui­ção. E alguém lhes recorda que a aparelhagem técnica deve ser poupada, uma vez que sem ela o golpe de mão perderia o seu efeito.
Começa então a série de emissões da «estação--pirata». Mário Soares, diz a rádio, bem como Al­meida Santos, eram traidores que haviam vendido Moçambique. Sabe-se então que esta acção se deve ao MOLIMO (Movimento de Libertação de Mo­çambique), que é dirigido por Gomes dos Santos, do FICO, ao qual estão associados Hugo Velez, Pires Moreira, Vasco Cardiga, Gonçalo Fevereiro, Uria Simango, Daniel Roxo (o célebre comandante de milícia acusado de vários massacres de popula­ções negras no Norte), Segurado (ex-inspector-chefe da PS P, altamente comprometido com a PIDE), e outros.
     Gomes dos Santos utiliza então os microfones para anunciar que o MOLIMO controlava a situação. Convida a população a concentrar-se junto ao Rádio Clube, e anuncia ter o MOLIMO tomado conta do Governo. Pede a todos aqueles que se sentissem com capacidade governativa para se dirigirem aos revoltosos, porquanto «o programa de Lusaka não será posto em prática, pois agora Moçambique é livre».
Nas emissões da rádio-pirata afirma-se constantemente que Moçambique inteiro está com os revolto­sos, apela-se para militares com nomes sobejamente conhecidos, afirmando-se estarem eles com os dissi­dentes. E diz-se que o presidente da República estaria solidário com a acção levada a cabo, e proferiria a todo o momento uma proclamação.
Esta é a única voz que se ouve em todo o Sul de Moçambique. Os jornais estavam paralisados pela selvática destruição das oficinas, uns, enquanto o matutino Diário, propriedade do Arcebispado, que estava suspenso há várias semanas, também não sai.
À cadeia da Machava dirige-se um grupo chefiado por um elemento do MOLIMO, que põe em liber­dade oitenta agentes da ex-PIDE que ali estavam detidos. Os dirigentes dessa polícia política são então vistos a passear «calmamente» pelas ruas da cidade.
    Pelo teor da propaganda lançada através da Rádio, começa no entanto a perceber-se, ao longo do dia de domingo, que os revoltosos parece não saberem bem o que querem. Começam por atacar a FRELIMO, chamando-lhe organização de facínoras, e a Samora Machel «ex-enfermeiro sem categoria intelectual para governar», que deseja um governo «uni-racial», etc. Horas volvidas fazem um apelo aos militantes da FRELIMO, com os quais desejam dialogar. Ao Go­verno português tão depressa chamam de colonia­lista, como, afirmando-se democratas, informam que esperam orientações de Lisboa.
UM POUCO DE CRONOLOGIA
Em Lisboa, tem-se conhecimento do que se passa em Moçambique através de um breve comunicado lido na madrugada de sábado aos microfones do Rádio Clube Português, e emanado do gabinete do chefe do Estado-Maior General. Na sequência de uma onda de violência desencadeada a meio da semana, um grupo de reaccionários havia ocupado pontos estratégicos da cidade de Lourenço Marques, designadamente o Rádio Clube de Moçambique — a partir daí apelidado de «Rádio Moçambique Livre» — o aeroporto, os correios e a refinaria local.
    No mesmo dia, o próprio general Costa Gomes lançou de Lisboa, através da Emissora Nacional, um apelo à população moçambicana. Seguem-se vários comunicados do gabinete do primeiro-ministro, e o Movimento das Forças Armadas toma posição, con­siderando a acção desenvolvida em Lourenço Marques «alta traição aos superiores interesses dos povos de Portugal e de Moçambique».
No meio desta efervescência geral, a Presidência da República distribui um comunicado no qual se declarava que o chefe do Estado ratificava o proto­colo do acordo assinado em Lusaka, no dia 7.
No domingo, Samora Machel emite de Dar-Es-Salaam uma dramática mensagem que em Moçam­bique só viria a ser radiodifundida na quarta-feira seguinte, depois de os revoltosos se renderem. Nessa mensagem, ouvida em Lisboa, o presidente da FRELIMO exorta os militares de Moçambique, pre­tos e brancos, a fazerem respeitar o acordo assinado em Lusaka, e classifica o que se estava fazendo em Lourenço Marques como obra de «bando de fací­noras, composto por criminosos de guerra, agentes da PIDE-DGS, e conhecidos representantes das for­ças exploradoras que tentam desesperadamente opor-se à vontade de paz do povo moçambicano e do povo português».
«O desafio desses elementos sem pátria e sem ideal — acentua Machel — é o de impe­direm a independência de Moçambique. Para isso, procuram provocar um clima de con­flito racial, de caos e anarquia, que sirva de pretexto para uma internacionalização da opres­são contra o nosso povo. Neste quadro, recru­taram forças mercenárias e buscaram o apoio de forças racistas e reaccionárias.»
A terminar a sua alocução, Samora Machel, que sublinhara que «a FRELIMO não tolerará uma agressão imperialista», afirma:
«Proclamamos solenemente nesta ocasião his­tórica para o nosso povo, o cessar-fogo completo em todo o território moçambicano entre as forças da FRELIMO e do Exército português. As forças populares de libertação de Moçam­bique devem cessar imediatamente todas as operações militares dirigidas contra o Exército português. Devem ao mesmo tempo manter a máxima vigilância activa e actuar contra todas as actividades das forças reaccionárias, em colaboração com as Forças Armadas por­tuguesas, dentro do espírito do acordo de Lusaka.»

     Em Lourenço Marques, o ambiente era, no do­mingo, cada vez mais escaldante. Uma manifestação de cerca de cinquenta mil pessoas, entre as quais também grande número de negros que se recusavam a sair do centro da cidade e a recolher ao «caniço» 'ghetto' onde habita a maioria negra), apoia os revoltosos e brande bandeiras nacionais ao mesmo tempo que o hino nacional é repetidas vezes entoado.
Gomes dos Santos, o provável cabecilha da revolta, recebe uma chamada telefónica que o vespertino lisboeta Diário Popular conseguiu para o Rádio Clube de Moçambique, e fornece esta visão da situação:
«A população toda criou condições para que o presidente da República possa efectivamente colaborar com Moçambique, de maneira que não seja através de Mário Soares e Almeida Santos, e para que se chegue a uma conclusão.
«Não somos contra a FRELIMO, mas que­remos negociações bem definidas e bem escla­recidas, de maneira que Moçambique possa viver efectivamente em paz, com democracia e com dignidade. Da maneira como estavam a conduzir as coisas, com alguns elementos da FRELIMO a mandarem fechar as casas comer­ciais e fazendo uma greve colectiva até à inde­pendência, e não permitindo sequer o serviço dos Bancos e do comércio, rapidamente se chegaria a um estado de guerra civil, o que não pretendemos de forma nenhuma.
«O governo até pode ser totalmente negro, mas tem de ser um governo digno.»
Gomes dos Santos afirmou ainda que só se aguar­dava a chegada a Lourenço Marques de represen­tantes do presidente da República, para se chegar a um acordo através de negociações.
«Acataremos o que o presidente da Repú­blica ordenar. O que não podemos é cair num sistema de partido único.»
Gomes dos Santos, esclareça-se, saíra dos quadros do exército com o posto de sargento, e ultimamente era vendedor de automóveis de uma firma de Lou­renço Marques. Foi um dos fundadores do FICO, organização constituída na sua maioria por soldados desmobilizados ou expulsos das Forças Armadas, que logo a seguir ao 25 de Abril pretendeu congregar todos os brancos de Moçambique, com um programa de acção de combate à independência. Não veio, porém, a obter o apoio desejado.
O governo de Salisbúria, por intermédio do seu encarregado de Negócios em Lisboa, transmite ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves o repúdio de Ian Smith quanto à acção desenvolvida pêlos dissi­dentes em Lourenço Marques, registando-se idêntica atitude do governo de Pretória.
Na cidade da Beira, centro de Moçambique, a propaganda lançada do emissor-pirata instalado no Rádio Clube ganha adeptos. Milhares de brancos manifestam-se frente aos quartéis dos pára-quedistas, os quais são forçados a fazer disparos para o ar. Rebentam duas granadas entre os manifestantes, que debandam, e no chão ficam vários corpos de feridos, dos quais dois viriam a morrer.
De Lisboa, o brigadeiro Vasco Gonçalves faz apelos telefónicos dirigidos a Oscar Monteiro, elemento pre­ponderante da FRELIMO, no sentido de a FRELIMO não intervir na questão.
O número de ex-agentes da PIDE que estavam detidos e que são libertados em Lourenço Marques  pelos dissidentes brancos ascende a duzentos. Na rádio-pirata, começa a falar-se em linguagem codi­ficada com os «Dragões da Morte». E surgem com maior gravidade os incidentes nos subúrbios, onde, além das acções levadas a cabo por extremistas brancos, negros solidários com os rebeldes se dedicam a uma autêntica depuração.
    A colónia portuguesa da África do Sul, que soma cerca de duzentas mil pessoas, toma partido, e pede ao Governo sul-africano que seja distribuída gaso­lina aos seus membros1 a fim de que estes possam seguir para Moçambique. Pretendem aqueles colo­nos «socorrer o nosso povo». A atitude surje na se­quência de várias mensagens transmitidas pela «Rá­dio Moçambique Livre» aos portugueses de Joanesburgo, para que estes venham em seu socorro.
Em Lisboa, de novo, verifica-se que os estúdios da Rádiotelevisão Portuguesa são guardados por um forte dispositivo militar. As estações de rádio, por seu turno, pedem também protecção, e Almeida Santos declara à Imprensa que «os reaccionários de Moçambique acendem a vela na campa da era colo­nial».
No Rádio Clube de Moçambique, e para evitar que forças militares penetrem no edifício ou dele se aproximem, é colocada à frente da fachada e nos diversos acessos uma autêntica barreira de mulheres e de crianças. Circula nessa barreira a afirmação de que as mulheres estão ali voluntariamente, dispostas a morrer se necessário. Corre a notícia de que se trata, na sua maioria, de mães de crianças que na madrugada de domingo haviam sido raptadas e depois devolvidas em pedaços1.
Ao mesmo tempo que se verifica um autêntico êxodo das populações brancas para a vizinha África do Sul, junto a cujas fronteiras o governo sul-africano instalou «campos de recepção» aos refugiados; ao mesmo tempo que se sabe ter a maioria dos ex-agentes da PIDE fugido para aquele país; ao mesmo tempo que de Lisboa chega a Lourenço Marques o enviado do presidente Spínola; ao mesmo tempo que nos subúrbios e em toda a cidade de Lourenço Mar­ques a violência grassa com exageros próximos da barbárie — em Lisboa regista-se a conferência de Im­prensa levada a cabo na Casa de Moçambique, no decurso da qual elementos daquele território afir­mam estar na posse de provas que levam à conclusão de que individualidades do regime deposto estavam directamente implicadas nos incidentes de Lourenço Marques.
    Gita Bernardes, do elenco directivo daquela Casa de Moçambique, afirmou que desde os princípios de Agosto havia todas as noites nos subúrbios de Lourenço Marques duas ou três pessoas «mortas deli-beradamente por elementos da reacção que já anda­vam à solta». Que em viaturas estrangeiras e de Lourenço Marques tinham sido descobertas, durante aquele mês, numerosas armas, quando da realização de operações stop; que em vários barracões situados em pontos diferentes da cidade estava armazenada grande quantidade de armas.
— A reacção — sublinhou Gita Bernardes — não actuou face ao acordo de Lusaka. Actuou porque estava organizada, e tempo e oportunidades para isso não lhe faltaram.

1 Há quem afirme que os ocupantes rasgavam simultaneamente a bandeira portuguesa. Não nos foi possível obter confirmação.
1 Tradicional lutadora anti-racista. O governo sul-africano ne­gava «vistos» de entrada aos jornalistas da Tempo.
        1Estava-se em plena crise de combustíveis.
1 Negado oficialmente. Na verdade, não há qualquer depoi­mento que, até à data, prove a veracidade do boato.


A capitulação
... E, finalmente, na manhã de terça-feira, 10 de Setembro, ao que se julga por não terem recebido o apoio que pretendiam do presidente Spínola, os revoltosos rendem-se. Mas não o fizeram facilmente. Foi primeiro necessário recuperar o aeroporto de Lourenço Marques, os GTT e a refinaria. Foi também necessário o cansaço das centenas de manifestantes brancos que se mantinham frente ao Rádio Clube, pois a situação era de impasse, ao mesmo tempo que o descalabro violento que se vivia em toda a cidade começava a fazer recair em si a maioria dos habitantes brancos, que reconheciam finalmente te­rem sido empurrados para uma aventura de terríveis consequências, por um grupo de indivíduos que sou­bera explorar o estado emocional criado nas horas que antecederam a assinatura do acordo de Lusaka.
Antes de se entregarem — alguns deles — à Polícia de Segurança Pública (e fizeram questão de que fosse à PSP), os rebeldes emitiram um apelo final através da Rádio, para que as Forças Armadas portuguesas «mantivessem Moçambique livre». A seguir, ouviram--se os acordes do hino nacional, no fim do qual o major Tavares, comandante da Polícia, leu uma proclamação à população, dando-lhe conta da ren­dição dos insurrectos.
Segundo os revoltosos comunicaram também atra­vés da Rádio, rendiam-se exclusivamente para evitar «que corresse mais sangue na cidade e subúrbios».
Saem então os cabecilhas que haviam dado o rosto, não se sabendo bem para onde, e é a partir daí que os «Dragões da Morte» surgem nos subúrbios, dis­parando de dentro de carros, indiscriminadamente, contra negros indefesos.
Já ao fim da manhã desse mesmo dia, e enquanto se desconhecia o paradeiro dos cabecilhas do golpe, vários jornalistas locais teriam visto indivíduos sus­peitos a saírem furtivamente de um hotel da cidade, indivíduos esses que teriam confessado pertencerem ao comando da MOLIMO, mas que também pedi­ram aos jornalistas que não divulgassem a notícia do seu paradeiro antes das duas horas da tarde.
   De Lisboa, parte para Lourenço Marques, no dia 10 à noite, o alto-comissário do Governo Provisório português junto do Governo de Transição a nomear pela FRELIMO, contra-almirante Vítor Crespo, que à partida declara a firme disposição de instalar a ordem em Lourenço Marques e de punir severamente os incriminados na revolta.
Começa entretanto a falar-se em mais de uma centena de mortos e quase meio milhar de feridos que se estariam a registar nos subúrbios da cidade, enquanto no Norte, na linha férrea que liga a cidade da Beira ao Malawi, um comboio vai pêlos ares ao fazer accionar uma mina, dez quilómetros ao Norte de Inhaminga e a cento e cinquenta da cidade da Beira. Uma outra composição ferroviária é atacada a tiro ao entrar na estação de Sena, localizada a quarenta e quatro quilómetros da fronteira com o Malawi. Isto, apesar do acordo de Lusaka e apesar do cessar-fogo proclamado por Samora Machel, que viria a repudiar a responsabilidade da FRELIMO nesses ataques, imputando-os a reaccionários brancos, ou a negros chefiados por brancos. E de novo voltam aos espíritos de todos aquelas notícias postas a cir­cular sobre os grupos de mercenários a soldo de Jorge Jardim, que estariam a actuar em Vila Pery.
       Os dias que se seguem em Lourenço Marques continuam a ser de certa agitação, se bem que a acção das autoridades militares, em colaboração, já, com alguns elementos da FRELIMO (estes são apontados como implacáveis na forma como reprimem qualquer acto de vandalismo praticado por negros ou por brancos) consiga gradualmente impor a ordem. Nunca se chegará a saber ao certo qual o número de vítimas que a tragédia provocou. Estatísticas ofi­ciais falam de menos de uma centena de mortos, e cerca de duzentos e cinquenta feridos. As agências internacionais de informação, contudo, referem-se a mais de uma centena de mortos e quase um milhar de feridos. No campo económico, ficou a desolação. A re­taliação dos negros face à violenta investida dos ra­cistas brancos praticamente nada deixou inteiro na Avenida do Brasil, onde estava instalado o principal parque industrial da cidade. Fábricas destruídas e incendiadas, viaturas danificadas e irrecuperáveis — em resumo: uma economia paralisada. E é esta a herança que o governo chefiado por Joaquim Chissano, o número três na hierarquia da FRELIMO, recebe a 25 de Setembro.
Até lá,  verificara-se a ponte-aérea  entre Dar-es-Salaam e Lourenço Marques, para transporte de tropas da FRELIMO, que passaram a colaborar di­rectamente com as tropas portuguesas no controle da situação.

Um caso apenas
Cartas recebidas de Lourenço Marques por este autor são o melhor testemunho que ele pode em­prestar a este documento, acerca da forma como de­correu a colaboração. Eram militares da FRELIMO e do Exército Português a ajudar os proprietários rurais na reconstrução dos seus celeiros, das suas casas, na recuperação do gado e das colheitas quase destruídas pela onda de violência; era a colaboração muito especial dos elementos da FRELIMO na re­pressão ao banditismo que naqueles dias grassou abertamente. Ao comerciante e agricultor branco de Lourenço Marques e seus arredores bastava o recurso às gentes da FRELIMO para que a sua segurança, se estivesse ameaçada, fosse imediatamente assegurada.
Mas talvez que para elucidar sobre a confusão que inicialmente se espalhou, possamos relatar aqui a «aventura» de que foram protagonistas dois agri­cultores da região de Marracuene.
Passada a onda de violência, Jacob, agricultor de Marracuene, zona vizinha de Lourenço Marques, dirigiu-se às suas terras na companhia de quatro militares e de um outro agricultor, cujos terrenos confinavam com os seus.
     Ao aproximarem-se da herdade, um numeroso grupo de trabalhadores negros que se entregava a um festim, assando porcos e bebendo lautamente, reconheceu o «jeep» do agricultor Jacob e correu ao seu encontro, de catanas e varapaus em punho. Ao depararem com os militares armados, porém, recuaram e atiraram com as armas para o capim. Inspeccionados aqueles terrenos, passaram à herdade do outro agricultor, onde militares e proprietários se entregaram então à tarefa de recolher as centenas de sacos de milho que os trabalhadores negros haviam retirado do armazém e escondido na mata. Estavam nesta tarefa, quando são abordados por um desta­camento da Polícia Militar de Lourenço Marques — que também os ajuda. Subitamente, é descoberto o cadáver de um negro, já em decomposição. O sar­gento da polícia militar quer saber «quem fez aquilo». Ninguém consegue dar uma resposta. E aos quatro militares (que pertenciam a um destacamento insta­lado em Vila Luísa, a 25 quilómetros de Lourenço Marques) bem como aos dois agricultores, é dada voz de prisão. São levados para a capital e encar­cerados no quartel da Polícia Militar.
Só vinte e quatro horas depois a mulher do Jacob sabe do paradeiro do marido. Tenta visitá-lo no quartel da PM mas não lho permitem. O marido estava incomunicável! Acusado de assassínio!
Corre ao Governo-Geral, e expõe a situação. Dali, com uma carta escrita pelo punho de um oficial superior, desloca-se a Vila Luísa e avista-se com o capitão que comandava o destacamento militar a que pertenciam os soldados presos juntamente com o marido. O capitão não quer acreditar. «Que é isto? Tropa a prender tropa?»
Na manhã seguinte, Jacob e o outro agricultor, bem como os quatro militares, são postos em liber­dade.
À data em que o autor escreve estas linhas, decidiu Jacob já, contrariamente àquilo a que estava deci­dido, não se refugiar na África do Sul. E para Lisboa envia cartas em que fala da sua esperança no futuro, agora que, com a ajuda de elementos da FRELIMO e do Exército português, conseguiu recuperar grande parte das duzentas cabeças de gado que possuía e tem os seus celeiros e currais em reconstrução.
Menos de  um mês  se  passou sobre  os  acontecimentos de Lourenço Marques.  Em Lisboa, vinte e quatro horas depois de a «maioria silenciosa» ter sido definitivamente silenciada, afirma-se1 que o acto desesperado levado a efeito pela MOLIMO em Lourenço Marques estaria programado para 28 de Se­tembro, em sincronia com a contra-revolução ten­tada na capital portuguesa. Mais: sugere-se que apesar do acordo de Lusaka, não seria intenção do comando da MOLIMO levar a efeito o golpe de posse sobre o Rádio Clube de Moçambique. Que esse «comando» teria sido «empurrado» pela força da multidão, e que só depois de estar no interior do edifício onde funcionava o RCM decidiu levar a sua acção para a frente.