Os trágicos acontecimentos registados durante o mês de Agosto em Angola haviam sido ansiosamente seguidos
em Moçambique. Recordemos que a par dos distúrbios em Luanda se verificaram um
pouco por toda a parte em Moçambique pequenos incidentes, que no entanto não
se revestiram de grande significado imediato. Das hipotéticas deambulações dos
chamados mercenários de Jorge Jardim pelos distritos da Beira e de Vila Pery,
passando pelas sucessivas paralisações dos
portos de Lourenço Marques, da
Beira e de Nacala, até à crescente actividade de guerrilhas da FRELIMO,
com especial incidência nos distritos de
Vila Pery, Beira e Tete — neste último
com constantes sabotagens da linha férrea abastecedora das obras de
Cabora Bassa — tudo levava a crer que cedo ou tarde a situação poderia agravar-se.
Ainda no mês de Agosto, Samora Machel
tornou pública a intenção da FRELIMO, em prosseguir a luta armada cada vez mais
abertamente até que as autoridades portuguesas se decidissem a reatar negociações à luz das condições que para tanto a
FRELIMO julgava imprescindíveis.
A 2 de Setembro, anuncia-se, por
intermédio de Samora Machel — que em Dar-es-Salam deu uma conferência à
Imprensa internacional — que Portugal aceitava finalmente as condições impostas
pela FRELIMO e que as negociações seriam reatadas em Lusaka, a partir de 5 de
Setembro. Esclarecia-se assim que o Governo Português aceitava o reconhecimento
do direito inalienável à independência moçambicana, com a transferência de
poderes para o povo do território, e reconhecia a FRELIMO como único representante legítimo do povo de
Moçambique.
«Não vamos negociar a independência. O
nosso objectivo é o de estabelecer a forma como o poder será transferido para a
FRELIMO, o que corresponde aos interesses tanto do povo de Moçambique, como do
povo português» — afirmou Machel, nessa conferência de Imprensa.
Também a
provável participação da FRELIMO num governo
provisório em Moçambique foi rejeitada pelo presidente do movimento, que
asseverou a sua certeza de
que o povo moçambicano estava mais do que suficientemente preparado para uma
independência sob a orientação da FRELIMO.
Samora Machel, ao
fazer estas afirmações, baseava-se certamente na colaboração que começara nas últimas semanas a
verificar-se entre as autoridades portuguesas e elementos da FRELIMO, para a manutenção
da ordem nos distritos mais nortenhos do território.
Soube-se,
entretanto, que se registavam movimentos de tropas da FRELIMO junto à cidade da Beira, suspeitando-se de que aquele grupo emancipalista pretenderia
assumir uma posição de força que lhe permitisse
voz mais activa nas conversações a realizar em Lusaka.
Em Lourenço Marques, por outro lado,
cresce a ansiedade face às declarações de
Samora Machel. O Dr. Antero Sobral, secretário de Estado do Trabalho de
Moçambique, e representante do Governo do território às conversações que se
irão travar em Lusaka, afirma
categoricamente que negros e brancos de Moçambique confiam na FRELIMO.
Em Vila Pery,
durante um comício de apoio à FRELIMO, o comandante Inguala faz um violento
ataque a Jorge Jardim, apodando-o de «bandido, lacaio do imperialismo, ladrão dos interesses do povo moçambicano».
Miguel Murupa1, Joana Simeão e Uria Simango são também acusados de traição.
Em Lisboa, é anunciada a constituição
da delegação portuguesa às conversações de Lusaka: ministros Melo Antunes,
adjunto do primeiro-ministro, Mário Soares,
dos Estrangeiros, e Almeida Santos, da Coordenação Interterritorial,
além de representantes das Forças Armadas e
do já citado representante do Governo moçambicano.
A 4 de Setembro, uma quarta-feira,
Lourenço Marques apresenta todo o aspecto de um domingo, na sequência de
pedidos feitos à população para que nesse dia não trabalhasse, numa
manifestação de apoio aos representantes da FRELIMO nas negociações. O Governo
do território, numa atitude «inteligente e diplomática», segundo observadores
na capital moçambicana, anunciou a tolerância de ponto para esse dia. Fechou o
comércio, não trabalhou a indústria, e
apenas as repartições oficiais consideradas de necessidade
imprescindível funcionaram.
E entretanto
feito um convite pela Associação Académica,
pelos sindicatos, pelas direcções dos bancos, pelas associações
comerciais, industriais, agrícolas e de proprietários, e ainda pêlos Democratas de Moçambique,
para que a população se concentre no Estádio da Machava, antigo Estádio
Salazar, que tem capacidade para cerca de sessenta mil pessoas.
Chega nesse dia a Lourenço Marques o
industrial António Champallimaud, para,
segundo afirma, uma visita às
empresas de que é principal accionista — cimentos, nitratos e adubos,
companhias de seguros, Banco Pinto & Sotto Mayor: mais de três milhões de
contos, em resumo.
Em Londres, já a caminho da Zâmbia,
Mário Soares afirma a esperança de que Moçambique se torne independente em
Junho ou Julho de 1975, e revela que será a FRELIMO a escolher o Governo de Transição que até essa data funcionará, nele
sendo obrigatoriamente incluído um
Alto Comissário representante do chefe de Estado português.
Em Lourenço Marques, ainda a 4 de
Setembro, é distribuído um comunicado do
Partido de Coligação Nacional
(formado por Uria Simango, elemento dissidente da FRELIMO e cabecilha
da COREMO; por Joana Simeão, ex-dirigente do extinto GUMO; pelo reverendo
Gwengere), no qual se produz um violento
ataque aos democratas moçambicanos.
A 5, iniciam-se
as negociações em Lusaka, verificando-se
pelas afirmações feitas então por elementos de ambas as delegações que a boa
vontade para um acordo final era mútua.
Em Moçambique, de Norte a Sul,
inicia-se a confraternização entre guerrilheiros e militares do exército
português. Ao Estádio da Machava e à praça de touros de Lourenço Marques,
acorrem milhares de moçambicanos, com esmagadora predominância de negros, mas também com muitos brancos, em comícios
de apoio à FRELIMO. Pelas ruas das cidades sucedem-se as manifestações.
Em Lisboa, paralisam os serviços do
aeroporto, à excepção dos da TAP, por terem entrado em greve geral os
trabalhadores das companhias aéreas estrangeiras; e de Brazzaville chega a
notícia de que Portugal iniciaria em 1975 as negociações para a descolonização
de Angola.
A 6, em Lusaka, é assinado o
cessar-fogo em todo o território, e chega-se a acordo quanto à transferência
de poderes para a FRELIMO. O protocolo é assinado a 7.
Da vizinha África do Sul, surgem logo
notícias de que o governo de Pretória era favorável à independência de
Moçambique sob a égide da FRELIMO. Salisbúria, por seu turno, mantém silêncio,
e estão ainda presentes no espírito de todos as declarações de Ian Smith, bem recentes, segundo as
quais Moçambique correria para «o suicídio
económico e político», caso não mantivesse abertas à Rodésia as vias de
comunicação vitais àquele país para o seu normal abastecimento.
Das conversações em Lusaka, pois, saiu
o acordo total para a transmissão de poderes, e é fixada a data de 25 de Setembro de 1975, aniversário da
FRELIMO, para o empossamento do Governo Transitório.
1 Miguel Murupa: antigo
elemento preponderante da Frelimo. Caído em desgraça, entrega-se às autoridades
portuguesas — e tem uma ascensão meteórica
nas relações públicas oficiais do governo
colonialista.
… E rebenta a
violência!
A notícia posta a circular em Lourenço
Marques, sobre as conclusões a que se havia chegado nas conversações de Lusaka, desencadeia então, na tarde de
6, as primeiras de uma série de acções provocadas por reaccionários brancos,
que iriam cobrir de luto toda a cidade.
Quando um carro passava em plena baixa
citadina, ostentando uma grande bandeira da
FRELIMO1 foi voltado por um grupo de brancos, ao mesmo tempo
que a bandeira da FRELIMO era destruída. As fotografias de Samora Machel que os
ocupantes do veículo distribuíam são rasgadas, e logo se forma uma enorme
multidão com grande predominância de brancos, a qual, incitada por alguns
elementos mais excitados,
se dirige ao edifício onde funciona o matutino Notícias; ali, parte
todas as vidraças do piso térreo; um repórter fotográfico do jornal que
pretendeu tirar fotografias naquele local, foi barbaramente agredido e forçado a fugir. A multidão invade o
rés-do-chão do edifício, põe em fuga o pessoal das oficinas, e destrói parte da
maquinaria.
Na revista Tempo1
acontece o mesmo, depois de a multidão, para ali chegar, ter atravessado quase toda a cidade,
engrossando progressivamente o seu caudal.
Rui Marote,
operador cinematográfico, é agredido, roubam-lhe a máquina, retiram o filme, e
expõem-no ao Sol, a fim de
o inutilizar. Veículos do Notícias e de
A Tribuna são apedrejados, voltados, e incendiados. Estes dois
jornais diários, ambos propriedade do Banco Nacional Ultramarino, haviam
dedicado as respectivas duas últimas edições às conversações de Lusaka,
manifestando-se abertamente partidários de um governo transitório presidido
pela FRELIMO.
A intervenção de forças da Polícia Militar e da PSP, coadjuvadas com o precioso elemento
dissuasor que são os cães-polícias,
permitiu que a multidão não levasse a cabo os seus intentos de destruição total. Mas não desarma.
Sobe a Avenida Castilho, detém-se frente ao edifício onde funciona o Rádio
Clube de Moçambique, e enquanto entoa em uníssono
o hino nacional português, destrói todas as vidraças à pedrada. Ali,
também só a intervenção policial permitiu que o vandalismo não alastrasse.
Enquanto isso, das redacções dos dois diários assaltados, pedem-se chamadas
telefónicas urgentes para Lusaka, e informa-se a delegação da FRELIMO quanto ao
que se está a passar. Ao cair da noite, o edifício é de novo assediado por uma
multidão que empunhava a bandeira nacional e cantava o hino português, numa
tentativa de assalto às instalações. Chovem pedras e insultos, e a força
policial ali postada dificilmente consegue suster os vândalos.
Ainda durante a noite, é forçada a
porta da sede da agremiação política Democratas de Moçambique, na Avenida 24 de
Julho, e é lançado fogo às instalações. A Associação Académica de Moçambique é
também assaltada, mas os energúmenos não conseguem ir além de apedrejamento.
Estava assim desencadeado o processo de «reivindicação» branca, o qual havia tido já os seus
prelúdios, quando semanas antes um comando de racistas brancos assaltara as
oficinas do Notícias e de A Tribuna, fazendo explodir ali duas
bombas.
Mau grado estes
acontecimentos, ambas as delegações ainda presentes em Lusaka manifestam-se optimistas quanto ao
futuro. Mas em Lourenço Marques, a população é subitamente acordada em sobressalto,
à primeira hora do dia 7, por uma violenta explosão, registada num paiol de munições da
Força Aérea, situado à saída da cidade, junto ao aeroporto. Era o prelúdio dos acontecimentos que iriam marcar de
forma inesquecível o dia 7 de Setembro, na capital moçambicana, de onde, entretanto, se conhecem
novos pormenores quanto aos
incidentes que já se haviam verificado na própria quinta-feira, dia 5, e
que só muito mais tarde viriam a ser relatados pela Imprensa.
Assim, nos
distúrbios registados nesse dia, duas figuras características da cidade são
apontadas como cabecilhas dos motins: o «Fonseca maluco», ex-agente da
Polícia de Segurança Pública e graduado da Organização Provincial de Vigilância
e de Defesa Civil (OPVDC), assim a modos que uma milícia branca, e Gonçalo
Mesquitela, filho do antigo deputado à Assembleia Nacional fascista pelo círculo de Moçambique, e membro destacado da ANP
local.
No sábado de manhã
recomeçam os incidentes. Surgem carros por toda a cidade, guiados por brancos, e buzinando
insistentemente. Na estátua de Mouzinho de Albuquerque, frente aos Paços do Concelho, é colocada uma
bandeira nacional e regista-se impressionante manifestação de «nacionalismo» por parte de milhares de brancos. O cortejo automóvel
dirige-se então ao Estádio da Machava, onde se realizava o comício
pró-FRELIMO, engrossando o número de participantes a cada esquina por que
passava. A trezentos metros do estádio são
interceptados por forças policiais e do exército. Desistem dos seus intentos, e
é então que um pouco por toda a parte surgem «milagrosamente»
milhares de bandeiras verde-rubras.
Com a cidade em agitação total, os
manifestantes dirigem-se, cerca das dezasseis horas, para as imediações do Rádio Clube de Moçambique, onde, desde a noite anterior, havia tomado posição um
«comando» armado.
A multidão é imensa, e o trânsito
começa a ser convenientemente desviado para
outros locais, tarefa a que se propuseram improvisados «sinaleiros»
providencialmente saídos da multidão.
Pelas dezoito
horas e vinte minutos, com Sérgio Cardiga
(filho de um importante latifundiário e comerciante, e neto de um
deportado para Moçambique, por crimes de jurisdição comum praticados em Portugal) à frente do grupo de
«comandos» e empunhando uma «Magnun 400», são forçadas as portas do edifício.
No interior, dedicam-se à destruição. E
alguém lhes recorda que a aparelhagem técnica deve ser poupada, uma vez
que sem ela o golpe de mão perderia o seu efeito.
Começa então a série de emissões da
«estação--pirata». Mário Soares, diz a rádio, bem como Almeida Santos, eram
traidores que haviam vendido Moçambique. Sabe-se então que esta acção se deve
ao MOLIMO (Movimento de Libertação de Moçambique), que é dirigido por Gomes
dos Santos, do FICO, ao qual estão associados Hugo Velez, Pires Moreira, Vasco Cardiga, Gonçalo Fevereiro, Uria
Simango, Daniel Roxo (o célebre comandante de milícia acusado de vários
massacres de populações negras no Norte), Segurado (ex-inspector-chefe da PS
P, altamente comprometido com a PIDE), e outros.
Gomes dos Santos utiliza então os microfones para anunciar que o MOLIMO controlava a
situação. Convida a população a concentrar-se junto ao Rádio Clube, e anuncia
ter o MOLIMO tomado conta do Governo. Pede a todos aqueles que se sentissem com
capacidade governativa para se dirigirem aos revoltosos, porquanto «o programa de Lusaka
não será posto em prática, pois agora Moçambique é livre».
Nas emissões da rádio-pirata afirma-se
constantemente que Moçambique inteiro está com os revoltosos, apela-se para
militares com nomes sobejamente conhecidos, afirmando-se estarem eles com os
dissidentes. E diz-se que o presidente da República estaria solidário com a
acção levada a cabo, e proferiria a todo o momento uma proclamação.
Esta é a única voz que se ouve em todo
o Sul de Moçambique. Os jornais estavam paralisados pela selvática destruição das oficinas, uns, enquanto
o matutino Diário, propriedade do Arcebispado, que estava
suspenso há várias semanas, também não sai.
À cadeia da Machava dirige-se um grupo
chefiado por um elemento do MOLIMO, que põe em liberdade oitenta agentes da
ex-PIDE que ali estavam detidos. Os dirigentes dessa polícia política são então
vistos a passear «calmamente» pelas ruas da cidade.
Pelo teor da
propaganda lançada através da Rádio, começa no entanto a perceber-se, ao longo
do dia de domingo, que os revoltosos parece não saberem bem o que querem. Começam por atacar a FRELIMO, chamando-lhe
organização de facínoras, e a Samora Machel
«ex-enfermeiro sem categoria intelectual para governar», que deseja um
governo «uni-racial», etc. Horas
volvidas fazem um apelo aos militantes da FRELIMO, com os quais desejam
dialogar. Ao Governo português tão depressa chamam de colonialista, como,
afirmando-se democratas, informam que esperam orientações de Lisboa.
UM
POUCO DE CRONOLOGIA
Em Lisboa, tem-se conhecimento do que
se passa em Moçambique através de um breve comunicado lido na madrugada de sábado
aos microfones do Rádio Clube Português, e emanado do gabinete do chefe do
Estado-Maior General. Na sequência de uma onda de violência desencadeada a meio
da semana, um grupo de reaccionários havia ocupado pontos estratégicos da
cidade de Lourenço Marques, designadamente o Rádio Clube de Moçambique — a
partir daí apelidado de «Rádio Moçambique Livre» — o aeroporto, os correios e a
refinaria local.
No mesmo dia, o
próprio general Costa Gomes lançou de Lisboa, através da Emissora Nacional, um
apelo à população moçambicana. Seguem-se vários comunicados do gabinete do
primeiro-ministro, e o Movimento das Forças Armadas toma posição, considerando
a acção desenvolvida em Lourenço Marques «alta traição aos superiores interesses dos povos de Portugal e de
Moçambique».
No meio desta efervescência geral, a
Presidência da República distribui um comunicado no qual se declarava que o
chefe do Estado ratificava o protocolo do acordo assinado em Lusaka, no dia 7.
No
domingo, Samora Machel emite de Dar-Es-Salaam uma dramática mensagem que em
Moçambique só viria a ser radiodifundida na quarta-feira seguinte, depois de
os revoltosos se renderem. Nessa mensagem, ouvida em Lisboa, o presidente da
FRELIMO exorta os militares de Moçambique, pretos e brancos, a fazerem
respeitar o acordo assinado em Lusaka, e classifica o que se estava fazendo em
Lourenço Marques como obra de «bando de facínoras, composto por criminosos de
guerra, agentes da PIDE-DGS, e conhecidos representantes das forças
exploradoras que tentam desesperadamente opor-se à vontade de paz do povo
moçambicano e do povo português».
«O desafio desses elementos sem pátria e sem ideal —
acentua Machel — é o de impedirem a independência de Moçambique. Para isso,
procuram provocar um clima de conflito racial, de caos e anarquia, que sirva
de pretexto para uma internacionalização da
opressão contra o nosso povo. Neste quadro, recrutaram forças
mercenárias e buscaram o apoio de forças racistas e reaccionárias.»
A terminar a sua alocução, Samora
Machel, que sublinhara que «a FRELIMO não tolerará uma agressão imperialista»,
afirma:
«Proclamamos solenemente nesta
ocasião histórica para o nosso povo, o cessar-fogo completo em todo o território moçambicano entre
as forças da FRELIMO e do Exército português. As forças populares de libertação
de Moçambique devem cessar imediatamente todas as operações militares
dirigidas contra o Exército português. Devem ao mesmo tempo manter a máxima
vigilância activa e actuar contra todas as actividades das forças
reaccionárias, em colaboração com as Forças Armadas portuguesas, dentro do espírito do acordo de Lusaka.»
Em Lourenço
Marques, o ambiente era, no domingo, cada vez mais escaldante. Uma
manifestação de cerca de cinquenta mil pessoas, entre as quais também grande número
de negros que se recusavam a
sair do centro da cidade e a recolher ao «caniço» 'ghetto' onde habita a
maioria negra), apoia os revoltosos e brande bandeiras nacionais ao mesmo tempo
que o hino nacional é repetidas vezes entoado.
Gomes dos Santos,
o provável cabecilha da revolta, recebe uma chamada telefónica que o vespertino lisboeta Diário Popular conseguiu para o Rádio Clube de
Moçambique, e fornece esta visão da situação:
«A população toda
criou condições para que o presidente da República possa efectivamente colaborar com Moçambique, de maneira
que não seja através de Mário Soares e Almeida Santos, e para que se chegue a uma conclusão.
«Não somos contra a FRELIMO, mas queremos negociações bem definidas e bem esclarecidas,
de maneira que Moçambique possa viver efectivamente em paz, com democracia e
com dignidade. Da maneira como estavam a
conduzir as coisas, com alguns elementos da FRELIMO a mandarem fechar as casas comerciais e fazendo uma greve colectiva até à independência, e não
permitindo sequer o serviço dos Bancos e do comércio, rapidamente se chegaria a
um estado de guerra civil, o que não pretendemos de forma nenhuma.
«O governo até pode ser totalmente
negro, mas tem de ser um governo digno.»
Gomes dos Santos afirmou ainda que só
se aguardava a chegada a Lourenço Marques de representantes do presidente da
República, para se chegar a um acordo através de negociações.
«Acataremos o que o presidente da República
ordenar. O que não podemos é cair num sistema de partido único.»
Gomes dos Santos, esclareça-se, saíra
dos quadros do exército com o posto de sargento, e ultimamente era vendedor de
automóveis de uma firma de Lourenço Marques. Foi um dos fundadores do FICO,
organização constituída na sua maioria por soldados desmobilizados ou expulsos
das Forças Armadas, que logo a seguir ao 25 de Abril pretendeu congregar todos
os brancos de Moçambique, com um programa de acção de combate à independência.
Não veio, porém, a obter o apoio desejado.
O governo de Salisbúria, por intermédio
do seu encarregado de Negócios em Lisboa, transmite ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves o repúdio de Ian Smith quanto à
acção desenvolvida pêlos dissidentes em Lourenço Marques, registando-se
idêntica atitude do governo de Pretória.
Na cidade da
Beira, centro de Moçambique, a propaganda lançada do emissor-pirata instalado no Rádio Clube ganha
adeptos. Milhares de brancos manifestam-se
frente aos quartéis dos pára-quedistas, os quais são forçados a fazer
disparos para o ar. Rebentam duas granadas entre os manifestantes, que
debandam, e no chão ficam vários corpos de feridos, dos quais dois viriam a
morrer.
De Lisboa, o
brigadeiro Vasco Gonçalves faz apelos telefónicos dirigidos a Oscar
Monteiro, elemento preponderante da FRELIMO, no sentido de a FRELIMO não intervir na questão.
O número de ex-agentes da PIDE que
estavam detidos e que são libertados em Lourenço Marques pelos
dissidentes brancos ascende a duzentos. Na rádio-pirata, começa a
falar-se em linguagem codificada com os «Dragões da Morte». E surgem com maior
gravidade os incidentes nos subúrbios, onde, além
das acções levadas a cabo por extremistas brancos, negros solidários com
os rebeldes se dedicam a uma autêntica depuração.
A colónia
portuguesa da África do Sul, que soma cerca de duzentas mil pessoas, toma
partido, e pede ao Governo sul-africano que
seja distribuída gasolina aos seus membros1 a fim de que
estes possam seguir para Moçambique. Pretendem aqueles colonos «socorrer o nosso povo». A atitude
surje na sequência de várias mensagens transmitidas pela «Rádio Moçambique
Livre» aos portugueses de Joanesburgo, para que estes venham em seu socorro.
Em Lisboa, de novo, verifica-se que os
estúdios da Rádiotelevisão Portuguesa são guardados por um forte dispositivo
militar. As estações de rádio, por seu turno, pedem também protecção, e Almeida
Santos declara à Imprensa que «os reaccionários de Moçambique acendem a vela na
campa da era colonial».
No Rádio Clube de Moçambique, e para
evitar que forças militares penetrem no edifício ou dele se aproximem, é
colocada à frente da fachada e nos diversos acessos uma autêntica barreira de
mulheres e de crianças. Circula nessa barreira a afirmação de que as mulheres
estão ali voluntariamente, dispostas a morrer se necessário. Corre a notícia de
que se trata, na sua maioria, de mães de crianças que na madrugada de domingo
haviam sido raptadas e depois devolvidas em pedaços1.
Ao mesmo tempo que se verifica um
autêntico êxodo das populações brancas para a vizinha África do Sul, junto a
cujas fronteiras o governo sul-africano instalou «campos de recepção» aos
refugiados; ao mesmo tempo que se sabe ter a maioria dos ex-agentes da PIDE
fugido para aquele país; ao mesmo tempo que de Lisboa chega a Lourenço Marques
o enviado do presidente Spínola; ao mesmo tempo que nos subúrbios e em toda a
cidade de Lourenço Marques a violência grassa com exageros próximos da barbárie — em Lisboa regista-se a conferência de
Imprensa levada a cabo na Casa de Moçambique, no decurso da qual elementos daquele território afirmam
estar na posse de provas que levam à conclusão de que individualidades do
regime deposto estavam directamente implicadas nos incidentes de Lourenço Marques.
Gita Bernardes, do elenco directivo daquela
Casa de Moçambique, afirmou que desde os
princípios de Agosto havia todas as noites nos subúrbios de Lourenço Marques duas ou três pessoas «mortas
deli-beradamente por elementos da reacção que já andavam à solta». Que em viaturas estrangeiras e de Lourenço
Marques tinham sido descobertas, durante aquele mês, numerosas armas, quando da
realização de operações stop; que em vários barracões situados em pontos diferentes da cidade estava
armazenada grande quantidade de armas.
— A reacção — sublinhou Gita
Bernardes — não actuou face ao acordo de Lusaka. Actuou porque estava organizada, e tempo e oportunidades
para isso não lhe faltaram.
1 Há quem afirme que os ocupantes rasgavam simultaneamente a
bandeira portuguesa. Não nos foi possível obter confirmação.
1 Tradicional lutadora
anti-racista. O governo sul-africano negava «vistos» de entrada aos jornalistas da Tempo.
1Estava-se em plena crise de combustíveis.
1 Negado oficialmente. Na verdade, não há qualquer depoimento que,
até à data, prove a veracidade do boato.
A capitulação
... E, finalmente, na manhã de
terça-feira, 10 de Setembro, ao que se julga por não terem recebido o apoio que
pretendiam do presidente Spínola, os revoltosos rendem-se. Mas não o fizeram
facilmente. Foi primeiro necessário
recuperar o aeroporto de Lourenço Marques, os GTT e a refinaria. Foi
também necessário o cansaço das centenas de manifestantes brancos que se
mantinham frente ao Rádio Clube, pois a situação era de impasse, ao mesmo tempo
que o descalabro violento que se vivia em toda a cidade começava a fazer recair
em si a maioria dos habitantes brancos, que reconheciam finalmente terem sido
empurrados para uma aventura de terríveis consequências, por um grupo de
indivíduos que soubera explorar o estado emocional criado nas horas que
antecederam a assinatura do acordo de Lusaka.
Antes de se
entregarem — alguns deles — à Polícia de Segurança Pública (e fizeram questão de que fosse à
PSP), os rebeldes emitiram um apelo final através da Rádio, para que as Forças
Armadas portuguesas «mantivessem Moçambique
livre». A seguir, ouviram--se os acordes do hino nacional, no fim do
qual o major Tavares, comandante da Polícia,
leu uma proclamação à população, dando-lhe conta da rendição dos
insurrectos.
Segundo os revoltosos comunicaram
também através da Rádio, rendiam-se exclusivamente para evitar «que corresse
mais sangue na cidade e subúrbios».
Saem então os cabecilhas que haviam
dado o rosto, não se sabendo bem para onde, e é a partir daí que os «Dragões da
Morte» surgem nos subúrbios, disparando de dentro de carros,
indiscriminadamente, contra negros
indefesos.
Já ao fim da manhã desse mesmo dia, e
enquanto se desconhecia o paradeiro dos cabecilhas do golpe, vários jornalistas
locais teriam visto indivíduos suspeitos a saírem furtivamente de um hotel da
cidade, indivíduos esses que teriam confessado pertencerem ao comando da
MOLIMO, mas que também pediram aos jornalistas que não divulgassem a notícia
do seu paradeiro antes das duas horas da tarde.
De Lisboa, parte
para Lourenço Marques, no dia 10 à noite, o alto-comissário do Governo Provisório
português junto do Governo de
Transição a nomear pela FRELIMO, contra-almirante Vítor Crespo, que à partida
declara a firme disposição de instalar a ordem em Lourenço Marques e de punir
severamente os incriminados na revolta.
Começa entretanto a falar-se em mais de
uma centena de mortos e quase meio milhar de feridos que se estariam a registar
nos subúrbios da cidade, enquanto no Norte, na linha férrea que liga a cidade
da Beira ao Malawi, um comboio vai pêlos ares ao fazer accionar uma mina, dez
quilómetros ao Norte de Inhaminga e a cento e cinquenta da cidade da Beira. Uma
outra composição ferroviária é atacada a tiro ao entrar na estação de Sena,
localizada a quarenta e quatro quilómetros da fronteira com o Malawi. Isto,
apesar do acordo de Lusaka e apesar do cessar-fogo proclamado por Samora
Machel, que viria a repudiar a responsabilidade da FRELIMO nesses ataques, imputando-os a reaccionários
brancos, ou a negros chefiados por brancos. E de novo voltam aos
espíritos de todos aquelas notícias postas a circular sobre os grupos de
mercenários a soldo de Jorge Jardim, que estariam a actuar em Vila Pery.
Os dias que se seguem em Lourenço
Marques continuam a ser de
certa agitação, se bem que a acção das autoridades militares, em colaboração, já,
com alguns elementos da FRELIMO (estes são apontados como implacáveis na forma como reprimem qualquer acto de
vandalismo praticado por negros ou por
brancos) consiga gradualmente impor a ordem. Nunca se chegará a saber ao
certo qual o número de vítimas que a tragédia provocou. Estatísticas oficiais
falam de menos de uma centena de mortos, e cerca de duzentos e cinquenta
feridos. As agências internacionais de informação, contudo, referem-se a mais
de uma centena de mortos e quase um milhar de feridos.
No campo económico, ficou a desolação. A retaliação dos negros face à
violenta investida dos racistas brancos praticamente nada deixou inteiro na
Avenida do Brasil, onde estava instalado o principal parque industrial da
cidade. Fábricas destruídas e incendiadas,
viaturas danificadas e irrecuperáveis — em resumo: uma economia paralisada. E é esta a herança que o governo chefiado por Joaquim Chissano,
o número três na hierarquia da FRELIMO, recebe a 25 de Setembro.
Até
lá, verificara-se a ponte-aérea entre Dar-es-Salaam e Lourenço Marques, para
transporte de tropas da FRELIMO, que passaram a colaborar directamente com as
tropas portuguesas no controle da situação.
Um caso apenas
Cartas recebidas de Lourenço Marques
por este autor são o melhor testemunho que ele pode emprestar a este
documento, acerca da forma como decorreu a colaboração. Eram militares da
FRELIMO e do Exército Português a ajudar os proprietários rurais na reconstrução dos seus celeiros, das
suas casas, na recuperação do gado e das colheitas quase destruídas pela
onda de violência; era a colaboração muito especial dos elementos da FRELIMO na
repressão ao banditismo que naqueles dias
grassou abertamente. Ao comerciante e agricultor branco de Lourenço
Marques e seus arredores bastava o recurso às gentes da FRELIMO para que a sua segurança, se estivesse ameaçada, fosse
imediatamente assegurada.
Mas talvez que para elucidar sobre a
confusão que inicialmente se espalhou, possamos relatar aqui a «aventura» de
que foram protagonistas dois agricultores da região de Marracuene.
Passada a onda de violência, Jacob,
agricultor de Marracuene, zona vizinha de Lourenço Marques, dirigiu-se às suas
terras na companhia de quatro militares e de um outro agricultor, cujos
terrenos confinavam com os seus.
Ao aproximarem-se da herdade, um
numeroso grupo de
trabalhadores negros que se entregava a um
festim, assando porcos e bebendo lautamente, reconheceu o «jeep» do
agricultor Jacob e correu ao seu encontro, de catanas e varapaus em punho. Ao depararem com os militares armados, porém, recuaram
e atiraram com as armas para o capim. Inspeccionados aqueles terrenos, passaram
à herdade do outro agricultor, onde militares e proprietários se entregaram
então à tarefa de recolher as centenas de
sacos de milho que os trabalhadores negros haviam retirado do armazém e
escondido na mata. Estavam nesta tarefa, quando são abordados por um destacamento
da Polícia Militar de Lourenço Marques — que também os ajuda. Subitamente, é
descoberto o cadáver de um negro, já em decomposição. O sargento da polícia militar quer saber «quem fez
aquilo». Ninguém consegue dar uma resposta. E aos quatro militares (que
pertenciam a um destacamento instalado em Vila Luísa, a 25 quilómetros de Lourenço Marques) bem como aos
dois agricultores, é dada voz de prisão. São levados para a capital e encarcerados
no quartel da Polícia Militar.
Só vinte e quatro horas depois a mulher
do Jacob sabe do paradeiro do marido. Tenta
visitá-lo no quartel da PM mas não lho permitem. O marido estava incomunicável! Acusado de assassínio!
Corre ao
Governo-Geral, e expõe a situação. Dali, com uma carta escrita pelo punho de
um oficial superior,
desloca-se a Vila Luísa e avista-se com o capitão que comandava o destacamento
militar a que pertenciam os soldados presos juntamente com o marido. O capitão
não quer acreditar. «Que é isto? Tropa a prender tropa?»
Na manhã seguinte, Jacob e o outro
agricultor, bem como os quatro militares, são postos em liberdade.
À data em que o
autor escreve estas linhas, decidiu Jacob já, contrariamente àquilo a que estava decidido, não se refugiar na África do Sul. E para Lisboa envia cartas em
que fala da sua esperança no futuro, agora que, com a ajuda de elementos
da FRELIMO e do Exército português,
conseguiu recuperar grande parte das duzentas cabeças de gado que
possuía e tem os seus celeiros e currais em reconstrução.
Menos de
um mês se passou sobre
os acontecimentos de Lourenço Marques. Em Lisboa, vinte e quatro horas depois de a «maioria
silenciosa» ter sido definitivamente silenciada, afirma-se1 que o
acto desesperado levado a efeito pela MOLIMO em Lourenço Marques estaria
programado para 28 de Setembro, em sincronia com a contra-revolução tentada na capital portuguesa. Mais: sugere-se que apesar
do acordo de Lusaka, não seria intenção do comando da MOLIMO levar a efeito o
golpe de posse sobre o Rádio Clube de Moçambique. Que esse «comando» teria sido
«empurrado» pela força da multidão, e que só depois de estar no interior do
edifício onde funcionava o RCM decidiu levar a sua acção para a frente.