Sérgio Vieira, em “Grande Entrevista”, fala do passado
e do presente
Entrevista conduzida por Jeremias Langa
Foi
o primeiro governador do Banco de Moçambique, mas foi como ministro da Segurança que se
celebrizou. Nesta entrevista, conta que no dia em que Samora Machel
morreu desobedeceu às ordens de segurança, que o proibiam de voar à noite; revela que
foi ele que
fez a instrução do processo que culminou com a execução de Uria Simango, Joana
Simeão, Lázaro Kavandame e outros, mas sublinha que não foi ele que apertou o gatilho.
Também fala da Frelimo,
ontem e hoje, da Revolução Verde; classifica a actuação da banca privada como
"frisando a agiotagem". Sérgio Vieira aborda igualmente o problema da terra e
mostra preocupação com o seu açambarcamento por estrangeiros. Enfim, uma entrevista ao
melhor estilo do homem que comandou a secreta moçambicana com "mão de
ferro", nos tempos áureos de partido único.
Falta-nos saber o que queremos
- O vale do Zambeze tem uma extensão de cerca de 225 mil
km2, é a reserva mais significativa da África Austral, possui a maior reserva
de energia do sub-continente, possui condições para a produção de cereais, etc.
Por que é que ainda não está a acontecer esse desenvolvimento?
- O que não está a acontecer, o que está a
acontecer, é sempre difícil de falar. O acontecimento é o resultado e o
resultado precisa de tempo, pois não é um processo espontâneo, é um processo
que acompanha muitos factores. Há muitas coisas que aconteceram. Eu digo sempre
que Moçambique é um pouco maior que os arredores de Maputo. Muitas vezes, a
comunicação social está longe do desenvolvimento, porque está bastante
concentrada em Maputo. Há
mil juntas que foram treinadas pelos próprios camponeses e que estão a
cultivar: uma junta são 4 hectares, 1600 juntas fazem 6400 hectares, (...);
houve muito trabalho de prospecção que nós fizemos sobre hidráulica-agricola,
produção de energia, etc, isso tudo para ver se aqui se pode fazer uma
barragem; aqui pode fazer-se 500/600 hectares irrigados, não se nota, mas está
a fazer-se.
- Mas a apreciação que há é que lá (no vale do Zambeze)
há um potencial para responder a muito mais do que faz, incluindo produzir
comida para todo o país. O que falta para o take-off?
- O avião sai da placa, chega ao princípio da
pista, começa a rolar e levanta.
- E onde está esse avião?
- Começou a rolar! O vale do Zambeze é uma zona
privilegiada em termos do próprio país. Não é por acaso que o Governo, já em
1995, criou o Gabinete para o Desenvolvimento da Região do Vale do Zambeze,
para além de que o próprio governo colonial tinha feito isso no passado. É uma
zona única, na medida em que, do ponto de vista de solo, subsolo, microclimas,
permite responder às necessidades do país. Em termos de solo, verifica-se que
trigo, arroz, mapira, jatropha, tudo está lá, a água está lá - água em
Moçambique até este momento é uma calamidade. Quando falta é seca, quando há em
excesso há inundação.
Vivemos
num ciclo de calamidade, ao invés de fazermos da água uma riqueza, uma fonte
principal do nosso trabalho. Talvez o que nos falta seja o aperfeiçoamento das
nossas definições, do que queremos.
- E acha que não sabemos o que queremos?
-
Temos muito que
aperfeiçoar. Direi de uma maneira muito mais simples: em termos de país, nós,
por exemplo, já dizemos que as quotas de recursos renováveis estão fixadas.
Agora, quando vamos para o subsolo estamos perante recursos não renováveis.
Então, temos que dizer quanto é que queremos produzir de carvão, urânio, ferro,
e produzir o quê? Carvão ou coque, ferro ou aço, e onde está o valor
acrescentado? Porque se o valor acrescentado está no ferro, estou condenado a
ficar com os restos, os outros com os proveitos e vou comprar o aço lá fora.
- Como é que definimos o vale do Zambeze como estratégico para o
desenvolvimento, enquanto não temos tudo isso claro?
desenvolvimento, enquanto não temos tudo isso claro?
- Tudo é um processo. A própria experiência, aquilo que vamos fazer,
vai orientar-nos. O
vale do Zambeze, neste momento, e com o investimento necessário, é capaz de responder
às necessidades totais da África Austral em arroz. Neste momento, a África Austral está a
usar cerca de 800 a 900 milhões de dólares na importação de arroz.
vale do Zambeze, neste momento, e com o investimento necessário, é capaz de responder
às necessidades totais da África Austral em arroz. Neste momento, a África Austral está a
usar cerca de 800 a 900 milhões de dólares na importação de arroz.
- Está a faltar investimento?
- Sim. Ainda há falta de investimento.
- Ainda há pouco, acompanhámos que três empresas
chinesas iam desenvolver negócios no vale do Zambeze...
-
Até agora, não
tenho conhecimento de nenhuma empresa chinesa que vai entrar através da
Geo-capital. Nós estamos a trabalhar com uma empresa chinesa para o
fornecimento de equipamentos agrícolas e fábricas. É um crédito negociado
entre os presidentes Hu Jintao e Armando Guebuza. Posso dizer que estamos numa
fase adiantada, possivelmente nos finais deste mês, ou no princípio do próximo,
serão assinados acordos nesse sentido. São cerca de 50 milhões de dólares para
maquinaria agrícola e três fábricas: uma fábrica para o processamento de milho
que estará situada em Ulónguè, distrito da Angónia (Tete); uma fábrica para o
processamento de arroz que estará situada em Maganja da Costa, província da
Zambézia; e uma fábrica para o processamento de algodão, que estará no distrito
de Guru, na província de Manica.
Revolução Verde é um guisado
- Qual é o enquadramento do vale do Zambeze na Revolução
Verde?
Nós estamos a trabalhar nisso. Mas a Revolução Verde
é um guisado, porque é a combinação de vários ingredientes. O objectivo é a Revolução Verde, mas é preciso preparar os
diferentes ingredientes.
-
E como é que está a ser esta combinação de elementos
nessa perspectiva?
- Algo
está a fazer-se. Eu direi que daquilo que é ò meu gosto e minha
vontade, ainda se faz lentamente, mas também é preciso saber em que país estamos,
quais são os meios de que este país dispõe. Pode dizer-se investimento, mas o
investimento tem muitos significados. Eu direi, e sobretudo disse isso quando
estive a discutir com os investidores no estrangeiro, que quem sabe muito bem o
que quer somos nós. Eu tenho que saber o que quero para atrair investimento...
-
E será que nós sabemos o que queremos?
-
Tenho a impressão que sim.
-
Por que só é uma impressão?
-
Bom, há certeza de que houve erros que nós
cometemos, mas há coisas boas que fizemos. Houve facilidades que demos, talvez
não sejam as melhores.
-
Está a falar de isenção fiscal?
- Não, isenção fiscal faz parte
de um pacote para o investimento. Refiro-me, por exemplo, ao saber valorizar
devidamente as nossas matérias-primas, das quais a energia. Ela é uma matéria-prima e, segundo o acordo
que foi feito no tempo de Maria Cachucha, Marcelo Caetano, nós temos que dar
energia à Africa do Sul, industrializar a África do Sul. Cahora Bassa não foi
feita com objectivo de industrializar Moçambique.
- Mas há
outros produtos, como o gás, que
podíamos ter controlado de outra
maneira…
- Provavelmente. Eu não conheço bem o dossier.
- Continuamos a exportar o gás como matéria-prima...
- A
conclusão é sua. Eu não conheço bem o dossier do gás.
- Nós exportamos o gás para a África do Sul e vamos
comprar os derivados do mesmo gás à Africa do Sul...
- De alguma maneira, parece-me que, se for
isso, não está correcto, porque o gás é matéria-prima e nós com o gás fazemos
tudo: agro-químicos, produzimos energia, etc.
Sem crédito agrícola não há agricultura
- É possível fazer Revolução Verde sem crédito nem
seguro agrícolas?
- Eu penso que das actividades produtivas, a
agricultura e a pecuária são actividades de alto risco. Em toda a parte do
mundo, há um crédito agrícola e há um seguro agrícola. De algum modo, o
fracasso total que ocorreu em Genebra, nas negociações sobre o crédito, já lá
vão sete ou oito anos, tem a ver com o crédito para a agricultura.
Fala-se muito da agricultura da
Africa do Sul, da agricultura da antiga Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Já
nos anos 30, havia o crédito e seguro agrários; havia cursos por correspondência
para melhorar a tecnologia, não havia faculdade de agricultura neste país,
aliás, a primeira faculdade de agronomia surgiu nos anos 70, portanto, é esta
diferença toda.
Banca privada frisa à agiotagem
- Foi governador do Banco de
Moçambique e tem sensibilidade para estas matérias: como explicar que o ratio
dos lucros bancários em Moçambique seja superior aos dos países da SADC e dos
próprios países onde estão as sedes dos bancos?
-Bom, não sou membro do conselho de administração
de nenhum banco nem sou accionista de nenhum banco, mas eu creio que nós, em
termos de banca privada em Moçambique, estamos a frisar à agiotagem. Em parte,
há uma responsabilidade do próprio Estado.
-Portanto, está a dizer que a maioria dos bancos está a
agir como agiota?
-A frisa à agiotagem. Não disse que são
agiotas. Em parte, há uma responsabilidade do Estado nisso, na medida em que o
ponto de referência das taxas que os bancos aplicam é a taxa que eles têm sobre
os Bilhetes de Tesouro. O que tem acontecido, e neste sentido saúdo o Ministério
dos Recurso Minerais e a empresa ENH, porque, pela primeira vez, emitiram
acções que só moçambicanos podiam comprar, é que a banca monopoliza a compra
dos Bilhetes de Tesouro e das acções e, sem trabalho nenhum, ganha dinheiro. O
moçambicano também tem a sua poupança, também podia comprar o Bilhete de
Tesouro, mas quando o Bilhete de Tesouro fica nas mãos dos bancos, estes ficam
com tudo. Ora, este ponto é que encarece o crédito, porque o banco tem para si
como critério o que lhe rende, que é o Bilhete de Tesouro, sem fazer nada. Por
outro lado, se eu for a levar crédito para a agricultura, começo por dizer que
a Maibor está a 14.5/15.0. Fazer agricultura sem irrigação e sem nenhum seguro
e ter de pagar 18/20 por cento, não garante retorno. Por outro lado, mesmo para
fazer um investimento industrial, o meu retorno ronda nos 20 por cento. Agora,
se eu vou entregar os 20 por cento ao banco, é melhor eu construir a minha
casa. As taxas de juro são altíssimas.
• Acha que
um banco de capitais nacionais teria uma visão mais nacionalista do que bancos
de capitais privados, como temos aqui quase na generalidade?
- É
uma pergunta difícil de responder.
-Ou receia que levemos, de
novo, o banco vá à falência, com empréstimos sem critérios, como sucedeu no
passado?
• O maior esbanjamento que se fez aqui na banca
foi quando ela esteve nas mãos dos malaios. Não estava sob controlo dos
moçambicanos; não vamos fazer, como diz o Presidente Guebuza, auto-flagelação,
vamos ser honestos.
-Então, é defensor de um banco de capitais nacionais?
- Eu defendo que o capital nacional devia fazer
um banco, e seria bom que houvesse um banco de capitais nacionais. Já o tivemos
e não funcionava mal. No tempo em que tínhamos três bancos em Moçambique, os
bancos não estavam a perder dinheiro e eram totalmente nacionais, e os bancos
portugueses que havia na época eram dependência de Portugal, estavam
nacionalizados em Portugal e esses bancos estavam a perder dinheiro.
Empresariado tem que estar organizado!
- Escreveu, uma vez, que “não estamos a explorar os
benefícios a montante e a jusante dos mega-projectos que se instalam no
país". O que queria dizer exactamente?
- Entra alumínio, sai o alumínio e não sei se
temos uma boa fábrica de panelas aqui. O ponto é que também o empresariado
nacional tem que estar organizado e tem que ter a capacidade de responder
àquilo que são os benefícios que existem, e não se pode fazer o discurso do
Estado.
- Acha que o Estado já fez o seu papel?
- Eu conheço muitos moçambicanos que têm
grandes facilidades em juntarem-se a sul-africanos, portugueses ou ingleses,
etc, mas que têm pouca capacidade em dizer "vamos juntar-nos entre
moçambicanos. Nós temos que aprender a trabalhar entre nós moçambicanos e até
fazer empresariado. Há alguns casos positivos que estão a acontecer, mas há
ainda muita hesitação no moçambicano em juntar-se a um outro moçambicano.
-
Hoje em dia, discute-se modelos de desenvolvimento e papel do Estado. Não acha que, no
nosso caso específico, estamos a seguir quase como um catecismo o modelo
neoliberal?
- O neoliberalismo já provou a sua falência e alguns de nós
ainda não aprenderam que faliu. De algum modo. se você paga uma orquestra,
encomenda a música. Mesmo nos países do primeiro mundo, de economia liberal e
neoliberal, há intervenção permanente do Estado. Mesmo agora, o governo dos
Estados Unidos foi buscar 950 biliões de dólares para injectar no mercado e
atenuar a crise financeira, isto significa intervenção do Estado, não é?
Fenómenos negativos com a terra
-
A questão dos biocombustíveis tem sido um assunto polémico
a nível do mundo. Será que não é um dos exemplos em que nos encomendam a música?
- A
questão do biocombustível é complexa. Nós aqui já definimos um princípio essencial: não podemos utilizar terra reservada à produção
de comida para a produção de biocombustível, o que significa que haverá
o que se está a fazer nos países do primeiro mundo. Nós temos uma
grande capacidade de produção de
biodiesel, do sul ao norte de Moçambique. Ao longo da faixa costeira, quantas
dezenas de milhões de coqueiros temos? E qual é o aproveitamento que nós
fazemos do óleo do coco? A jatropha é para terras marginais, muito bem. Vamos
jogar com aquilo que é possível, que não põe em causa a cadeia alimentar do país e da região, para a
produção do combustível.
-
Quando se anda pelo país vê-se quem, de facto, detém a terra; há muitos
estrangeiros a monopolizar descontroladamente a terra. Acha que quando chegar
o momento, não haverá um "assalto"
a estas terras, que até agora mal
controlamos?
- Eu tenho um horror disso! Eu
pertenço à geração que entregou a sua vida para libertar a terra e os homens, e
quando libertámos a terra, não dissemos que estávamos a libertar para entregar
outra vez ao estrangeiro, e creio que estão a acontecer alguns fenómenos negativos
nesse ponto de vista e é preciso que nós moçambicanos digamos que libertámos a
terra para os moçambicanos. Há muitos países onde para fazer um investimento no
solo, no subsolo e mesmo na indústria, é obrigatória a participação do capital
nacional, muitas vezes a custo zero, e não são países comunistas. Nós fizemos
uma transição de uma economia centralmente planificada para uma economia
liberal, sem fazer a salvaguarda necessária por falta de experiência, falta de
conhecimento, e também falta de investimento. Vamos falar a sério, o
investimento começou a discutir-se nos últimos 10 anos.
Há deformação da história do país
- Nos últimos tempos temos ouvido, nós os jovens,
versões da história que nos remetem à dúvida daquilo que é realmente a
verdadeira história de libertação de Moçambique. Sendo um dos actores dessa
mesma história, como é que reage a isto?
Posso reagir na base da experiência e, como
sabe, quando há um acidente de viação e há 10 pessoas que viram, é muito
provável que venha ouvir 10 versões sobre o mesmo acidente, porque cada
espectador tem a sua própria apreciação sobre aquele mesmo acidente, porque
cada espectador, cada participante, tem a sua própria apreciação da história.
Há aquilo que poderei chamar de deformações de boa-fé, depois há versões e
deformações de má -fé. Eu tenho ouvido versões e deformações de má-fé que
obedecem a intentos determinados. Eu digo que a história é feita por
historiadores e investigadores e cada um traz uma parte da verdade, as próprias
testemunhas trazem outra parte da verdade.
- Colocamos-lhe esta questão porque, ainda há bem pouco tempo,
entrevistámos o general Jacinto Veloso, e este dizia que não sabia se Uria
Simango era reaccionário ou não. Tendo aprendido na escola que Simango era
reaccionário, confunde-nos agora ouvir das mesmas pessoas que, afinal, as
coisas não eram como nos disseram...
-Não ouvi e nem li a entrevista, de modo que não
me pronuncio sobre uma entrevista que não vi nem li, pronuncio-me apenas sobre
o que me está a dizer. Parece-me estranha essa declaração. Houve envolvimento
directo de Simango no assassinato de Mondlane; houve envolvimento directo de Simango, mais que
provado, nos eventos de 7 de Setembro. Não foi ele sozinho que foi à Rodésia, à
África do Sul, pedir uma intervenção das forças armadas da Rodésia e da África
do Sul em Moçambique.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
- Quando são os actores do processo a virem agora duvidar de alguns
pressupostos dos quais eles próprios fizeram parte, o que é que nós vamos
pensar?
- Verificar os factos e dizer, olhe, você
enganou-se. Existe o registo da rádio do 7 de Setembro, existem os diálogos da
comunicação social. Eu acompanhei de perto; eles participaram no 7 de Setembro,
foram à Rodésia e à África do Sul pedir a intervenção das forças armadas, mas
que recusaram por razões muito evidentes, então, não houve intervenção militar
em Moçambique.
-E isto justificou a execução destas figuras, que
pagassem pelas suas vidas os seus erros?
- Completamente. Ir pedir a invasão do teu
próprio país... faz favor! Quando Laval foi executado na França; quando o
Marchal Caetano, grande herói da primeira guerra mundial, foi condenado à
prisão perpétua, não foi por coisas menores!
- Recentemente, o jornal "Canal de Moçambique"
veiculou num documento que depois da execução dos ditos reaccionários, ficou
decidido que se nomeasse um comité para preparar uma comunicação pública da
execução destes. Esse documento iria ser assinado por Jacinto Veloso e a tal
comissão integrava várias pessoas, de entre as quais o coronel Sérgio Vieira.
Chegou a ser feita essa comunicação?
- O que posso dizer é que eu fui designado,
quando eles foram presos. Eu dirigi uma comissão de inquérito que continuou o
trabalho com dois objectivos principais: o esclarecimento sobre o assassinato
do presidente Eduardo Mondlane e as questões relativas ao 7 de Setembro. O
relatório foi entregue ao órgão próprio, que era a comissão político-rnilitar,
e sobre isso o presidente Joaquim Chissano, na Assembleia da República, até fez
uma declaração pública, há uns anos, já não me lembro quando.
- Quem foi que executou estes ditos reaccionários?
- É difícil responder sobre quem faz parte do
pelotão de fuzilamento, porque o pelotão de fuzilamento, falo com experiência
própria é uma secção composta por 12 homens, aos quais seis levam balas
verdadeiras e outros seis levam balas não verdadeiras, mas que fazem mesmo
barulho.
- Referimo-nos à execução em si, senhor Sérgio Vieira é
que dirigiu esse processo?
-Eu fiz a instrução.
- E quem mais tarde dirigiu o processo de execução?
- A comissão político-militar decidiu. Não sei
quem deu ordens. Nunca me transmitiram.
- Sobre a execução, os dados são contraditórios. Como e
onde é que ocorreu?
- Eu não tenho dados contraditórios ou não
contraditórios. O que eu tenho é que entreguei o relatório e a partir daí não
tive nada a ver com o assunto. Nem nunca fui informado directa ou
indirectamente sobre a matéria Porque também não tinha nada que ser informado
directa ou indirectamente sobre matéria.
COM A MORTE DE SAMORA MACHEL.
VIRAGEM!
- Jorge Rebelo deu uma entrevista recentemente ao
jornal Savana e disse que quando Samora morreu, o nosso comportamento mudou. O
que estava em nós reprimido veio à superfície. Na sua opinião, a morte de
Samora pôs fim, de facto, a uma era e marcou o princípio de outra?
- Posso dizer que sim, posso dizer que não. Um
dirigente máximo marca sempre as pessoas com quem está. De alguma maneira,
também influencia nos comportamentos. Eu lembro-me do meu amigo, o arquitecto José
Forjaz, ter dito que abandonámos um sistema bom com erros, para um sistema
errado com algumas coisas boas. Bom, posso também dizer que quem paga a
orquestra determina também a música. Houve uma viragem que ocorreu na
organização económica do país que facilitou o surgimento de fenómenos
negativos, nomeadamente, a corrupção, o açambarcamento de bens do Estado, etc.
- A questão é que a Frelimo ensinou os seus quadros a
não usarem as suas influências para tirarem vantagens pessoais e agora parece
ter-se esquecido desses seus ideais...
- Até dizíamos, e para mim ainda continua, ser
um princípio fundamental: primeiro no sacrifício e último no benefício.
- Mas as coisas parecem ser exactamente ao contrário...
- Desde quando os humanos deixaram de ser
humanos? Os humanos sempre foram humanos, têm os seus apetites e certos
condicionamentos. Esses apetites são refreados e são reorientados. Nestas
circunstâncias, o burro é que rebenta a corda.
- Uma das questões que, recorrentemente, algumas
pessoas levantam é que "se Samora estivesse vivo, isto não teria
acontecido". Concorda?
- Há uma coisa que eu sei. Samora Machel não
era um homem de querer bens. Era um homem completamente desinteressado, desse
ponto de vista.
- E acha que as pessoas que o rodeavam também eram
assim?
- Creio que dois meses antes de Samora morrer,
tive uma cópia de um relatório dos embaixadores da União Europeia em que diziam
que é muito difícil fazer certas coisas em Moçambique, que o governo de
Moçambique era incorruptível. Espero ter respondido à tua pergunta.
- Acha que isso seria possível dizer-se actualmente?
- Creio que não!
- Nessa mesma entrevista, Jorge Rebelo disse que não
sabia qual era a ideologia que a Frelimo estava a seguir agora. Ainda faz
sentido falar de socialismo democrático nos dias de hoje, como foi no passado?
- Penso que sim, e como marxista que sou...
- Continua marxista?
- Absolutamente!
Porque os princípios de economia política, os princípios do materialismo
político, do materialismo dialéctico, ainda não foram ultrapassados como instrumentos
científicos. Não estou a falar como Bíblia. Há alguns pontos em que nós todos
errámos. Irei começar pelo próprio Lenine, que foi o salto de uma sociedade
pré-capitalista para uma sociedade avançada como era o socialismo, sem a
criação prévia de toda uma série de camadas médias que são indispensáveis. Esse
erro ocorreu. De alguma maneira, os camaradas chineses, vietnamitas estão a
corrigir isto, estão a tentar estabelecer as camadas médias que permitem que
depois se possa estabelecer os processos. Marx dizia que não se passa de um
modo de produção para o outro por mera boa vontade. Cada era de produção tem
que se esgotar para se passar para a etapa seguinte.
- O que nos surpreende é que aquelas figuras que serviam de valores,
viraram predadores...
- Estás a falar de muita gente ao mesmo tempo.
Diz "algumas das figuras", não sei quais são essas figuras que
viraram ou não. Não é verdade, não são todas as figuras.
-Está a dizer que não se sente parte dessas figuras?
- Dos predadores?
-Sim.
- Vai ver as minhas contas bancárias.
Estou disposto a pôr isso em público, (risos...).
Não há alas na Frelimo
- Jorge Rebelo dizia também que é inegável que haja
grupos dentro da Frelimo. Jacinto Veloso também se referiu a esta questão no
seu livro. Partilha desta ideia?
- Eu digo que há pontos de vista diferentes
entre pessoas e talvez a mesma pessoa possa mudar de posição nesta ou naquela
questão. Eu diria que a Frelimo é uma família constituída há mais de 40 anos. É
normal que nesta família haja pontos de vista diferentes, mas ainda existe boa
vontade de manter esta família unida.
- Mas sente que há grupos localizados com esta e aquela
visão?
- Creio que é exagerada essa afirmação.
- Não concorda que haja alas dentro da Frelimo...
-Não!
-Jacinto Veloso diria que a maior oposição neste país
está dentro na própria Frelimo...
- Eu
direi que dentro da Frelimo há sempre uma discussão forte, e não é de hoje, mas
esta discussão é uma dialéctica da vida.
“5 de Fevereiro" foi orquestrado
- Que avaliação faz do acontecimento de 5 de Fevereiro
deste ano?
- Bom, o 5 de Fevereiro deveu-se, por um lado,
a uma acumulação de erros e, por outro, a uma exploração da situação.
Acumulação de erros, porque foi no mês de Janeiro, acabávamos de sair das
festas e nas festas as pessoas gastam muito dinheiro, à espera do 13o
vencimento. E logo a seguir, é preciso comprar sapatilhas novas para as
crianças, livros, etc E na série de despesas, naquele momento, e, de repente,
sobe o preço do combustível e, consequentemente, o do transporte semi-urbano
aumenta em 50 por cento. 7.50 Mt durante 22 dias representa quase metade do
salário. Toda a gente ficou perturbada.
- Acontece que eu estava, nesse dia 5 de
Fevereiro, em Maputo, e o escritório que tenho aqui em Maputo está no nono
andar. De repente, vejo na praça da OMM, da Av. de Angola até à Rua da
Resistência, um grupo de 20 a
30 crianças e cerca de dois terços de adultos com paus. Chegavam a uma montra e
partiam, diante de um caro e partiam os vidros - isto não foi a população, os
assaltos a lojas não têm nada a ver com o custo de vida. Combinar que no dia “X”
vamos fechar todos os acessos à capital, isto é uma operação organizada. Tu não
fechas o acesso a uma capital sem o mínimo de organização.
- Mas onde é que estava a Inteligência do Estado?
- Não esteve.
-Por que não esteve?
-Porque toda a gente foi apanhada de
surpresa, de alguma maneira.
- Incluindo a Inteligência do Estado?
- De alguma maneira.
- No seu tempo, seriam capazes de serem apanhados de
surpresa com um evento desta envergadura?
- Posso dizer que nunca fui apanhado de
surpresa com um evento desta envergadura. É o que posso dizer. Agora, se seria
ou não, estou a especular.
- Mas isto não será consequência de uma distribuição
desigual e não inclusiva da renda no nosso país?
- Obviamente que a nossa sociedade tem uma
grande disparidade de gente teoricamente influente, digo teoricamente, porque
existe um fosso entre os que têm e os que não têm alguma coisa, e isto,
evidentemente, é um factor que contribui para a instabilidade social. ■
O País - Maputo 15 Agosto 2008 pp 2-5