- Nos últimos tempos temos ouvido, nós os jovens,
versões da história que nos remetem à dúvida daquilo que é realmente a
verdadeira história de libertação de Moçambique. Sendo um dos actores dessa
mesma história, como é que reage a isto?
Posso reagir na base da experiência e, como
sabe, quando há um acidente de viação e há 10 pessoas que viram, é muito
provável que venha ouvir 10 versões sobre o mesmo acidente, porque cada
espectador tem a sua própria apreciação sobre aquele mesmo acidente, porque
cada espectador, cada participante, tem a sua própria apreciação da história.
Há aquilo que poderei chamar de deformações de boa-fé, depois há versões e
deformações de má -fé. Eu tenho ouvido versões e deformações de má-fé que
obedecem a intentos determinados. Eu digo que a história é feita por
historiadores e investigadores e cada um traz uma parte da verdade, as próprias
testemunhas trazem outra parte da verdade.
- Colocamos-lhe esta questão porque, ainda há bem pouco tempo,
entrevistámos o general Jacinto Veloso, e este dizia que não sabia se Uria
Simango era reaccionário ou não. Tendo aprendido na escola que Simango era
reaccionário, confunde-nos agora ouvir das mesmas pessoas que, afinal, as
coisas não eram como nos disseram...
-Não ouvi e nem li a entrevista, de modo que não
me pronuncio sobre uma entrevista que não vi nem li, pronuncio-me apenas sobre
o que me está a dizer. Parece-me estranha essa declaração. Houve envolvimento
directo de Simango no assassinato de Mondlane; houve envolvimento directo de Simango, mais que
provado, nos eventos de 7 de Setembro. Não foi ele sozinho que foi à Rodésia, à
África do Sul, pedir uma intervenção das forças armadas da Rodésia e da África
do Sul em Moçambique.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
Se isso não são crimes de alta traição, é porque na verdade no mundo não existem crimes de alta traição.
- Quando são os actores do processo a virem agora duvidar de alguns
pressupostos dos quais eles próprios fizeram parte, o que é que nós vamos
pensar?
- Verificar os factos e dizer, olhe, você
enganou-se. Existe o registo da rádio do 7 de Setembro, existem os diálogos da
comunicação social. Eu acompanhei de perto; eles participaram no 7 de Setembro,
foram à Rodésia e à África do Sul pedir a intervenção das forças armadas, mas
que recusaram por razões muito evidentes, então, não houve intervenção militar
em Moçambique.
-E isto justificou a execução destas figuras, que
pagassem pelas suas vidas os seus erros?
- Completamente. Ir pedir a invasão do teu
próprio país... faz favor! Quando Laval foi executado na França; quando o
Marchal Caetano, grande herói da primeira guerra mundial, foi condenado à
prisão perpétua, não foi por coisas menores!
- Recentemente, o jornal "Canal de Moçambique"
veiculou num documento que depois da execução dos ditos reaccionários, ficou
decidido que se nomeasse um comité para preparar uma comunicação pública da
execução destes. Esse documento iria ser assinado por Jacinto Veloso e a tal
comissão integrava várias pessoas, de entre as quais o coronel Sérgio Vieira.
Chegou a ser feita essa comunicação?
- O que posso dizer é que eu fui designado,
quando eles foram presos. Eu dirigi uma comissão de inquérito que continuou o
trabalho com dois objectivos principais: o esclarecimento sobre o assassinato
do presidente Eduardo Mondlane e as questões relativas ao 7 de Setembro. O
relatório foi entregue ao órgão próprio, que era a comissão político-rnilitar,
e sobre isso o presidente Joaquim Chissano, na Assembleia da República, até fez
uma declaração pública, há uns anos, já não me lembro quando.
- Quem foi que executou estes ditos reaccionários?
- É difícil responder sobre quem faz parte do
pelotão de fuzilamento, porque o pelotão de fuzilamento, falo com experiência
própria é uma secção composta por 12 homens, aos quais seis levam balas
verdadeiras e outros seis levam balas não verdadeiras, mas que fazem mesmo
barulho.
- Referimo-nos à execução em si, senhor Sérgio Vieira é
que dirigiu esse processo?
-Eu fiz a instrução.
- E quem mais tarde dirigiu o processo de execução?
- A comissão político-militar decidiu. Não sei
quem deu ordens. Nunca me transmitiram.
- Sobre a execução, os dados são contraditórios. Como e
onde é que ocorreu?
- Eu não tenho dados contraditórios ou não
contraditórios. O que eu tenho é que entreguei o relatório e a partir daí não
tive nada a ver com o assunto. Nem nunca fui informado directa ou
indirectamente sobre a matéria Porque também não tinha nada que ser informado
directa ou indirectamente sobre matéria.
COM A MORTE DE SAMORA MACHEL.
VIRAGEM!
- Jorge Rebelo deu uma entrevista recentemente ao
jornal Savana e disse que quando Samora morreu, o nosso comportamento mudou. O
que estava em nós reprimido veio à superfície. Na sua opinião, a morte de
Samora pôs fim, de facto, a uma era e marcou o princípio de outra?
- Posso dizer que sim, posso dizer que não. Um
dirigente máximo marca sempre as pessoas com quem está. De alguma maneira,
também influencia nos comportamentos. Eu lembro-me do meu amigo, o arquitecto José
Forjaz, ter dito que abandonámos um sistema bom com erros, para um sistema
errado com algumas coisas boas. Bom, posso também dizer que quem paga a
orquestra determina também a música. Houve uma viragem que ocorreu na
organização económica do país que facilitou o surgimento de fenómenos
negativos, nomeadamente, a corrupção, o açambarcamento de bens do Estado, etc.
- A questão é que a Frelimo ensinou os seus quadros a
não usarem as suas influências para tirarem vantagens pessoais e agora parece
ter-se esquecido desses seus ideais...
- Até dizíamos, e para mim ainda continua, ser
um princípio fundamental: primeiro no sacrifício e último no benefício.
- Mas as coisas parecem ser exactamente ao contrário...
- Desde quando os humanos deixaram de ser
humanos? Os humanos sempre foram humanos, têm os seus apetites e certos
condicionamentos. Esses apetites são refreados e são reorientados. Nestas
circunstâncias, o burro é que rebenta a corda.
- Uma das questões que, recorrentemente, algumas
pessoas levantam é que "se Samora estivesse vivo, isto não teria
acontecido". Concorda?
- Há uma coisa que eu sei. Samora Machel não
era um homem de querer bens. Era um homem completamente desinteressado, desse
ponto de vista.
- E acha que as pessoas que o rodeavam também eram
assim?
- Creio que dois meses antes de Samora morrer,
tive uma cópia de um relatório dos embaixadores da União Europeia em que diziam
que é muito difícil fazer certas coisas em Moçambique, que o governo de
Moçambique era incorruptível. Espero ter respondido à tua pergunta.
- Acha que isso seria possível dizer-se actualmente?
- Creio que não!
- Nessa mesma entrevista, Jorge Rebelo disse que não
sabia qual era a ideologia que a Frelimo estava a seguir agora. Ainda faz
sentido falar de socialismo democrático nos dias de hoje, como foi no passado?
- Penso que sim, e como marxista que sou...
- Continua marxista?
- Absolutamente!
Porque os princípios de economia política, os princípios do materialismo
político, do materialismo dialéctico, ainda não foram ultrapassados como instrumentos
científicos. Não estou a falar como Bíblia. Há alguns pontos em que nós todos
errámos. Irei começar pelo próprio Lenine, que foi o salto de uma sociedade
pré-capitalista para uma sociedade avançada como era o socialismo, sem a
criação prévia de toda uma série de camadas médias que são indispensáveis. Esse
erro ocorreu. De alguma maneira, os camaradas chineses, vietnamitas estão a
corrigir isto, estão a tentar estabelecer as camadas médias que permitem que
depois se possa estabelecer os processos. Marx dizia que não se passa de um
modo de produção para o outro por mera boa vontade. Cada era de produção tem
que se esgotar para se passar para a etapa seguinte.
- O que nos surpreende é que aquelas figuras que serviam de valores,
viraram predadores...
- Estás a falar de muita gente ao mesmo tempo.
Diz "algumas das figuras", não sei quais são essas figuras que
viraram ou não. Não é verdade, não são todas as figuras.
-Está a dizer que não se sente parte dessas figuras?
- Dos predadores?
-Sim.
- Vai ver as minhas contas bancárias.
Estou disposto a pôr isso em público, (risos...).
Não há alas na Frelimo
- Jorge Rebelo dizia também que é inegável que haja
grupos dentro da Frelimo. Jacinto Veloso também se referiu a esta questão no
seu livro. Partilha desta ideia?
- Eu digo que há pontos de vista diferentes
entre pessoas e talvez a mesma pessoa possa mudar de posição nesta ou naquela
questão. Eu diria que a Frelimo é uma família constituída há mais de 40 anos. É
normal que nesta família haja pontos de vista diferentes, mas ainda existe boa
vontade de manter esta família unida.
- Mas sente que há grupos localizados com esta e aquela
visão?
- Creio que é exagerada essa afirmação.
- Não concorda que haja alas dentro da Frelimo...
-Não!
-Jacinto Veloso diria que a maior oposição neste país
está dentro na própria Frelimo...
- Eu
direi que dentro da Frelimo há sempre uma discussão forte, e não é de hoje, mas
esta discussão é uma dialéctica da vida.
“5 de Fevereiro" foi orquestrado
- Que avaliação faz do acontecimento de 5 de Fevereiro
deste ano?
- Bom, o 5 de Fevereiro deveu-se, por um lado,
a uma acumulação de erros e, por outro, a uma exploração da situação.
Acumulação de erros, porque foi no mês de Janeiro, acabávamos de sair das
festas e nas festas as pessoas gastam muito dinheiro, à espera do 13o
vencimento. E logo a seguir, é preciso comprar sapatilhas novas para as
crianças, livros, etc E na série de despesas, naquele momento, e, de repente,
sobe o preço do combustível e, consequentemente, o do transporte semi-urbano
aumenta em 50 por cento. 7.50 Mt durante 22 dias representa quase metade do
salário. Toda a gente ficou perturbada.
- Acontece que eu estava, nesse dia 5 de
Fevereiro, em Maputo, e o escritório que tenho aqui em Maputo está no nono
andar. De repente, vejo na praça da OMM, da Av. de Angola até à Rua da
Resistência, um grupo de 20 a
30 crianças e cerca de dois terços de adultos com paus. Chegavam a uma montra e
partiam, diante de um caro e partiam os vidros - isto não foi a população, os
assaltos a lojas não têm nada a ver com o custo de vida. Combinar que no dia “X”
vamos fechar todos os acessos à capital, isto é uma operação organizada. Tu não
fechas o acesso a uma capital sem o mínimo de organização.
- Mas onde é que estava a Inteligência do Estado?
- Não esteve.
-Por que não esteve?
-Porque toda a gente foi apanhada de
surpresa, de alguma maneira.
- Incluindo a Inteligência do Estado?
- De alguma maneira.
- No seu tempo, seriam capazes de serem apanhados de
surpresa com um evento desta envergadura?
- Posso dizer que nunca fui apanhado de
surpresa com um evento desta envergadura. É o que posso dizer. Agora, se seria
ou não, estou a especular.
- Mas isto não será consequência de uma distribuição
desigual e não inclusiva da renda no nosso país?
- Obviamente que a nossa sociedade tem uma
grande disparidade de gente teoricamente influente, digo teoricamente, porque
existe um fosso entre os que têm e os que não têm alguma coisa, e isto,
evidentemente, é um factor que contribui para a instabilidade social. ■
O País - Maputo 15 Agosto 2008 pp 2-5