Até amanhã coração
Um
país travado pela burocracia e um poeta que acredita que o amor é capaz
de vencer guerras. Eduardo White é dos poetas que mostra como o lirismo
pode ser uma forma de vida, apesar de ter certeza que fazer cultura é
um acto de loucos.
“Ele
é poeta!” – repetíamos mentalmente antes da entrevista, para não
confundirmos esse lado com tantas outras áreas em que ele se decidiu
meter. No ano passado, escreveu uma ópera juntando stars como Chico
António, Graça Silva, Mário Mabjaia e Adelino Branquinho. Este ano,
voltou a colocar-se o mesmo desafio, mas para a dança. Voltou ao seu
companheiro de longas viagens, Chico António, “entendemo-nos”, diz ele, e
chamou Pérola “Deusa” Jaime por uma velha admiração: “é uma bela
bailarina e coreógrafa. Sempre a admirei”, disse, antes de começarmos a
entrevista para o “Entre Letras”. Mas era uma entrevista sobre
literatura. Era preciso repetir o pensamento “ele é poeta!” e organizar
as ideias com base nos títulos de alguns dos seus livros.
Podia
ter-se contentado em “Amar Sobre o Índico”, mas o massacre de “Homoíne”
fez com que desse uma pausa a versos de amor e contemplasse as
fotografias de Jorge Tomé e chorar pelas mortes. No entanto, diferente
de Knopfli, aqui onde havia dor não era “O País dos Outros”, mas sim “O
País de Mim”, o que obrigava a aprender “Poemas da Ciência de Voar e da
Engenharia de Ser Ave”.
Eduardo White é esse poeta que podia
oferecer-nos “Os Materiais de Amor seguido de Desafio à Tristeza”, para
depois ficar na “Janela para Oriente”, ler pensamentos de Gandhi antes
de “Dormir com Deus” e ouvir “As Falas do Escorpião”. Podíamos falar
longamente dos seus livros enquanto folheávamos “o Manual das Mãos”,
observando “O Homem a Sombra a Flor e Algumas Cartas do Interior” antes de nos despedirmos: “Até Amanhã, Coração”.
Eduardo
White toma uma base romântica. “todos nós somos românticos, ou pelo
menos devíamos ser”, acredita. Mas é sobre a esperança de que fala, ou
melhor, das pessoas que sempre “cantaram sobre a esperança” no período
da luta de libertação, mas que “hoje a retiram” ao povo. Esta
entrevista, mais do que um rítmico caminhar pelos versos deste poeta, é
um olhar à literatura moçambicana e à forma como a burocracia pode
parar um país.
Despedida de um poeta
Como é que um poeta consegue convocar toda a coragem para ir embora? Melhor, por que um poeta decidi ir embora?
“Até
Amanha, Coração” é carta de amor de alguém que está cansado dos
devaneios do seu coração, que pôs sempre o amor em primeiro plano; de
alguém que o seguiu fielmente, e como o dono se cansou. É um pouco a
história de alguém que se despede do seu coração e diz que está cansado
de o ver bater, de tomar as rédeas de sua vida. Ele desiste e diz que
não quer mais esse eterno apaixonado: “já bateste muito na minha vida”.
Provavelmente, se for a fazer a sua contabilidade, será o homem que terá
ficado sempre só entre ele e o coração. Esta carta é um pouco a
história do poeta e o seu coração, uma carta de despedida, mas sempre a
dizer “vou viver com outro coração”.
Isso
leva-nos a Rui Knopfli, no poema “A Despedida”, onde evoca essa questão
do silêncio. Como é que Rui Knopfli entra na sua literatura?
Sou
resultado de muitas leituras(…). Rui Knopfli não é o poeta que me
influencia. Mas acho que o amor tem sempre essa pequena indefinição, se é
com a cabeça que se vive ou se é com coração, e acaba por prevalecer o
coração. Quando acaba o amor, é no coração onde a dor pesa mais, apesar
da cabeça ser esse roteiro de memórias. O amor é diário, mas é sempre
uma memória de ontem, de hoje, com aquele encanto do futuro. Nunca se
sabe o que vai ser, mas sabe-se muito do que já foi. O amor é sempre uma
despedida, mal se começa, já se sonha com a despedida. Principias a
amar, já principias a despedir-te. Lembro-me de um poema do angolano
Almeida Santos, “Meu Amor da Rua 11”, que é uma música lindíssima da
Banda Maravilha, que define esta coisa do amor estar permanentemente a bater.
A sua poesia é marcada por versos de amor, entre a dor e a sua exaltação. É assumidamente um poeta romântico?
Em
princípio todos deveriam ser (…) todos nós somos românticos. O amor é a
melhor maneira com que combato as tristezas e desavenças que tenho com o
presente e que tive com o passado. Quando decidi pela linha do amor,
foi exactamente no período em que prevalecia na nossa condição literária
a questão da guerra e da morte. Acho que muito embora não fôssemos
soldados, todos os dias eu acreditava que as armas se calariam, para se
fazer amor. Acho que as armas acabam sempre por se calar, para se fazer
amor. O coração é uma grande bateria, dá-lhe aquele compasso, acho que
fazes melhor uso a trabalhar apaixonado, do que a despedir-se do grande
amor.
Parar a guerra para fazer amor
Faz
uma referência à guerra, que, curiosamente, vai recuperá-la no livro
“Homoíne”, onde olha para a morte com todo o pesar que se pode
imaginar...
Esse
livro, escrevo depois de ter visto fotografias de Jorge Tomé,
fotojornalista do “O País”, quando trabalhava na revista Tempo. Ele
tinha ido cobrir o resquício do que foi aquele massacre.
Impressionaram-me tanto as capulanas que iam embrulhar os corpos nas
valas comuns. Foi impressionante como ele conseguiu captar a tristeza
profunda, a brutalidade da guerra. Fizemos o acordo de paz com os nossos
vivos, mas nunca o fizemos com os nossos mortos. Este país ainda vive
uma grande dívida para com os seus mortos. Não os enterrámos condignamente nem fizemos um acordo de paz com eles em relação a esta guerra que eu sempre disse que não tinha razão de ser. Depois, levou-se muito tempo para se fazer um acordo. Essa coisa da morte impressionou-me, por isso, que escrevi “Homoíne”, mas
sempre com essa constante de que era preciso retomar as armas do amor. O
amor tem as suas armas que são o beijo, o sexo... tem todas essas armas
que são importantes, que falam melhor, que disparam melhor e têm outra
pólvora.
Creio
que a guerra é um fenómeno que incomoda qualquer pessoa que tenha
sensibilidade. A guerra é atrofiadora. Para além de nos dizimar
fisicamente, também nos dizima em termos de alma e de sentimentos. Há um
poeta, Jorge Rebelo, que durante a luta de libertação nacional escreveu
um poema lindíssimo que se chama “Liberdade Pode Chegar um Dia”. Essa
carga de amor está sempre presente, não pelas razões da guerra, porque
acho que não podemos ter amor por uma coisa que nos pode levar à guerra,
mas pelos objectivos que nós pretendemos atingir. No amor há violência,
há gente que faz guerra por amor e com amor. Não sou de fazer guerra
com amor, acho que o amor tem que fazer guerra à guerra.
Poetas da política
Podemos
falar dos “poetas de combate”, neste caso, Jorge Rebelo, de quem falou,
e podemos acrescentar Kalungano (Marcelino dos Santos), Sérgio Vieira
(…) cujos poemas são mais de esperança. Como podemos, hoje, olhar para
esses poemas e poetas?
A
esperança é um sentimento muito bonito. Com essa mensagem de esperança,
encontramos poesia digna e lá está o amor à terra, amor à liberdade. É
uma fase bonita essa, e há boa literatura. Nem tudo o que se escreveu
nesse período é bom, mas há boa literatura e bons escritores. Penso que
nos países africanos de língua portuguesa a esperança marca esse
percurso histórico da literatura. Agora, gostava de saber como é que
essas pessoas que ainda estão vivas e que escreveram tanto sobre a
esperança vêem hoje essa mesma esperança que cantaram. às vezes, é
engraçado como uma pessoa escreve sobre a esperança e a retira aos
outros. A guerra não devia ser uma aprendizagem para a continuar, mas
sim para não a repetir. Penso que se passou assim no nosso processo
histórico, a guerra veio e continuou, porque, infelizmente, a guerra é
um grande negócio para os que a fazem e os que a patrocinam. Gostaria de
saber como é que esses escritores, hoje, vêem essa esperança que
cantaram, o futuro que foi ontem e que é presente hoje. e seria
interessante, porque hoje eles deixaram de escrever.
É possível um poeta deixar de o ser? Existe um ex-poeta?
Acho
que não. Penso que eles não pararam de escrever, provavelmente pararam
de publicar. Não é nada disso de processo político(...). se
se envolveram muito no processo político, devo dizer que não foi muito
bom, porque poetas a fazerem política não são muito bons, são as
borradas que sabemos. A utopia é boa até onde termina o argumento para
fazer política, mas depois deixa de o ser. A política tem os seus
próprios poetas, que são os políticos, e normalmente são maus poetas
como também maus políticos.
É
normal olhar-se para a sua geração como aquela que veio dar uma outra
viragem à literatura. Vocês têm essa consciência de terem definido a
literatura nacional?
A
literatura moçambicana nunca foi definida, é um processo que está em
construção, é um processo que vai sendo. Evidentemente que esse processo
tem seus altos e baixos. Mas a geração Charrua não marca
definitivamente qual o estilo que a literatura moçambicana vai tomar,
mas marcou uma ruptura com aquilo que se fazia no momento. Foi
importante que a geração Charrua tenha aparecido para demarcar essa
cisão com a literatura que se fazia.
Rompimento e burocracia
O que vai diferenciar a literatura antes de Charrua da que se seguiu?
Era
o lado ficcional, o lado da criatividade e, sobretudo, o rompimento com
o lado temático. A literatura estava muito agarrada à questão da guerra
da libertação, da revolução, não era contestatária. A Charrua veio
contestar muitas coisas que precisavam de ser contestadas.
O
tema guerra de libertação não era só da literatura, dominava igualmente
a música, assim como o teatro e a dança. Como é que a literatura surge a
querer isolar-se?
Acho
que isso aconteceu a nível de todas as artes. Há uma geração que marca
essa cisão com o que se tocava. A nível do teatro, há, e aparece com o
grupo que dá origem ao Mutumbela gogo, em que estavam Calane (da
Silva), Manuela Soeiro, João Manja, Anabela Adrianoupolis. É um processo
que se passa em qualquer sociedade que está em transformação, que está a
nascer e que está a crescer, só que, no caso da literatura, somos muito
menos em relação a outras disciplinas artísticas, e talvez se tenha
notado mais. A nossa confrontação com o poder foi mais frontal. Nós
temos essa tarefa de não concordar que o poder tenha uma governação
quase bíblica, que diga “isto tem que ser isto”. Qualquer artista faz
parte e constrói a memória colectiva de um povo. O que está a passar-se
no nosso país, muito embora haja muita coisa digna de se assinalar como
positiva em relação à grande parte de África, é que há muita coisa má
que não devemos ter a vergonha de dizer isto está mal e não pode
continuar assim. Não podemos vir a cair numa relação
feudal do poder. E foi isso que fizemos, ver um país nas suas múltiplas
visões, nas suas múltiplas maneiras de ser. Um país é feito de gente
diferente, não é feito de gente igual.
No
período a que se refere, o escritor não se resumia simplesmente às suas
produções literárias, eram vozes sociais. Agora, parece que eles se
retiraram para o silencio?
Fazer
cultura neste país é um acto de loucos. Ser sujeito cultural é outro
acto ainda mais louco! Toda a gente patrocina “pernas”, “mamas” e
“dreads”. Nos governos que tivemos, no tempo de Samora de Machel e um
pouco no de Joaquim Alberto Chissano, investiu-se na cultura como uma
coisa séria. A cultura não é para vender imagem, é para mostrar um país.
Em “Navio de Guerra Indiano” faz um trocadilho entre a liberdade e a prisão. Como se pode estar mais livre preso?
Isso
é de Gandhi. (O poema) nasce dessa coisa de ler Ghandi. Do meu ponto de
vista, há muita gente que está livre, mesmo presa. Mas há muitas causas
que têm feito os prisioneiros mais livres do que as pessoas que andam
nas ruas. Nós somos um país que tem muita gente presa nas ruas, fechada
nos limites que somos, sem acesso a tudo o que é essencial. Voltamos
mais uma vez à cultura, que é uma particularidade chave para o
desenvolvimento da cultura. Tem que haver cultura de desenvolvimento.
Parece não ter uma boa relação com a burocracia…
Com
a gravata! A grava não é uma coisa que me fica bem. Mas não gosto da
burocracia e não tenho boa relação com o poder. Assusta-me o seu
aparato, a sua demonstração de força, e a burocracia é uma espada, é
aquilo que pára tudo. A burocracia é aquele polvo enorme
com o qual não me dou muito bem. Acho que pouca gente se dá muito bem, a
não ser os burocratas, que são sempre cinzentos, engravatados, tomam
chá àquela hora, falam ao telefone sempre das mesmas coisas. São sempre
uns senhores que são bem comportadinhos, mas que fazem uma data de
coisas feias.
A
partir daqui, podemos olhar para “O País De Mim”. É o espreitar de um
país dentro de nós mesmos ou vamos descobrindo pedaços de países por
fora deste espaço que somos?
É
aquele país que está dentro de nós. Para ser moçambicano, acho que
nasci com esse Moçambique dentro de mim. Nunca percebi essa coisa de
original. Origem de onde? A nossa primeira pátria é o útero da nossa
mãe. Acho que o nascermos num lugar, crescermos num lugar e gostarmos
desse lugar é nos transmitido por dentro, tenha esse dentro as
referências que tiver. Então, foi revisitar esse país. Cada um de nós
tem um país dentro de si. “O País de mim” é essa história. Muitas vezes,
as pessoas associam-me ao livro de Rui Knopfli “O País dos Outros”.
Acho, também, que existe o país de mim, se há países dos outros. Quase
sempre, a minha escrita é muito interiorizante. Ponho o que vejo cá
dentro e transmito com uma nova roupagem e nova paisagem, de maneira a
que cada livro seja uma rua do país que tenho dentro de mim.
Silêncio solitário
A sua literatura tem uma espécie de solidão permanente. Como se constrói essa imagem de poeta solitário?
A solidão é uma coisa de que tenho pavor enorme, porque sou
uma pessoa que normalmente se recolhe muito interiormente. Dentro de
mim, passam-se muitos tratados e preciso de estar com os outros, gosto
de estar com os outros. A solidão é um facto marcante na minha vida.
Muitas vezes, os amores errados da minha vida, todas as paixões erradas
da minha vida, são desse processo de não saber tratar bem a solidão a
nível pessoal. E gerem uma frustração com essa grande presença de solidão na minha vida.
É desta forma que conclui que o silêncio faz muito barulho?
Exactamente,
o silêncio tem muitos barulhos. Acho que há poucos barulhos que têm
silêncios, mas o silêncio tem muitos barulhos dentro e fora dele. A
solidão é propensa ao silencio interior e exterior, como também é
propensa ao barulho.
Quando
olhamos para si, parece-nos que o Eduardo White poeta não se dissocia
do indivíduo. Como é que permite que essa sua personalidade interfira no
poeta?
O
poeta é que interfere na minha vida. Quase muitas vezes, alguma
reputação que me fazem questão de dar tem que ver com essa
interferência. Não tem nada que ver o poeta com o Eduardo White que sou
eu. Tenho pontos de vista muito diferentes da pessoa que escreve em mim.
Não tem nada que ver com heterónimos, nem com desmultiplicação de
personalidades. na verdade, o eu que escrevo não é muito o que eu vivo, e
muitas vezes sou apanhado a viver o poeta que o poeta a viver o homem.