quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

“Pessoas investem na terra na perspectiva de vender a um preço alto”


O economista e docente universitário João Mosca denuncia que existe esquema de venda de terra, num país em que a Lei (de Terras) o proíbe.
Para o pesquisador do Observatório do Meio Rural, muitas vezes, os agentes do Estado são coniventes nas transacções da terra que se fazem em Moçambique, perpetuando uma ilegalidade que chega a atropelar as comunidades, que vêem as suas terras usurpadas.
Antes de avançarmos para os pontos específicos da problemática do confli­to de terra, é importante percebermos quais as implicações, sobretudo para a produção agrícola?
Há um estudo feito em Moatize sobre esse assunto. O estudo revelou clara­mente que a superfície atribuída é infe­rior àquela em que as pessoas praticavam anteriormente. A qualidade da terra atri­buída é inferior, para uma parte da po­pulação reassentada. Em relação à outra parte, se calhar a terra tenha a mesma qualidade. Temos também a qualidade do acesso aos mercados, aos serviços e outros aspectos importantes para as po­pulações e que devem ser considerados. Conflito de terra implica outro tipo de conflitos sociais, indisposição ou impos­sibilidade das pessoas se deslocarem por causa das mudanças, os trâmites como foram efectuados, questões da habitação e muitas outras que devem ser estudadas cuidadosamente.
Os grandes projectos têm sido apon­tados como os maiores envolvidos na disputa de terra com as comunidades. Como se explica que a comunidade re­clame uma propriedade que depois foi atribuída a um investidor pelo legíti­mo titular, o Estado?
O Estado pode ser legalmente o proprie­tário da terra, e é por Lei. Não devemos esquecer a outra faceta: quem são os do­nos de terra? Neste caso, o proprietário da terra é o Estado, mas os donos reais e tradicionais há décadas e gerações da terra são as pessoas. O Estado pode atri­buir terras a qualquer pessoa que queira investir, mas estão lá os donos da terra. Para que o processo seja célere, as pes­soas devem ser consultadas, indemniza­das, criar-se alternativas discutidas. O Estado, por ser proprietário da terra, não pode fazer uso sem consultar os usuários da terra. A população deve ser respeita­da. Aliás, a própria Lei de Terras prevê todos esses procedimentos e esses cui­dados que têm existido. Na realidade, o que tem acontecido é que a Lei de Terras não é devidamente cumprida. Não só a questão dos procedimentos, das auscul­tações, forma de atribuição de DUAT de­finitivos; são questões que nem sempre são cumpridas, isso é que é um problema muito sério.
Sente que não se está a seguir esses procedimentos?
Regra geral, as consultas existem. O pro­blema é a efectividade das consultas. As pessoas podem ouvir, saber quais são os objectivos do investidor, saber a mudan­ça de atribuição de DUAT pelo Estado a alguém, seja empresa ou individualmen­te. De qualquer modo, as pessoas põem os seus pontos de vista. Nem sempre as preocupações das populações são con­sideradas. Aqui, existe o problema da eficácia e da efectividade das consultas. Consulta-se para discutir, mas, depois, na prática, as coisas não são como deve­riam ser, de acordo com as preocupações das populações. Outra questão é que as consultas são feitas pelas autoridades lo­cais, juntamente com os investidores, e existe sempre uma certa pressão à popu­lação, para que a vontade dos investidores seja aceite de cima para baixo. Esse poder de autoridade amedronta a população, que não tem a possibilidade de exigir os seus direitos. O caso de Palma, que está documentado em vídeo, revela todos os aspectos que referi.
Como é possível que haja problemas desta natureza, quando o país dispõe de uma Lei que regula a posse de terra em Moçambique?
A Lei não é devidamente cumprida. Re­gra geral, não é cumprida pelas próprias instituições do Estado. Porque alguns são agentes públicos, ou há pressão dos investidores para que isso se concretize em tempo recorde, para iniciar o inves­timento. Perante este conjunto de situ­ações, existem evidências e casos muito concretos documentados, em que a Lei não é cumprida. Por outro lado, as comu­nidades não estão suficientemente ins­truídas, informadas e organizadas para colectivamente exigirem os seus direitos. Quando existem conflitos, e não são pou­cos, o Estado e os agentes públicos ficam do lado dos investidores. Existe um con­flito de alianças económicas e sociais, em que mesmo com a Lei em mão não se faz uso a favor do povo e das comunidades. Há muitos casos, como de Palma, do re­assentamentos em Tete, caso das infra­-estruturas da cidade de Maputo, caso do Baixo Limpopo. Agora, estuda-se o Cor­redor de Nacala e no Alto da Zambézia, em que se presume que teremos casos semelhantes.
Será que o que a Lei estabelece não vai de encontro com a realidade no terre­no?
Sim. Porque há muitos DUAT provisórios que implicam a obrigatoriedade do prazo de cinco anos para que o projecto apre­sentado esteja em implementação. Se isto não acontecer, o Estado tem o direito de recuperar a terra a seu favor, na medida em que o investidor que teve acesso não esta a fazer o uso devido da terra. Há um estudo que brevemente será publicado, que demonstra que há investidores que não estão a usar a terra há cinco ou mais anos.
Sente-se, pelas colocações feitas, que a comunidade fica desprotegida. Quais as possíveis soluções param este dile­ma?
Primeiro, que a Lei seja realmente cum­prida pelo Estado e pelos seus agentes. Todos os estudos de viabilidade e outros devem ser conhecidos e apresentados. Existe um planeamento de território e nós ainda não temos um plano de terri­tório, onde antecipadamente, com dife­rentes níveis de profundidade, se saiba que há zonas reservadas para exploração mineira, assentamentos urbanos, infra­-estruturas, exploração agrícola, pasta­gens, reservas naturais de caça, florestais, de protecção, ambiental e muito mais. É essencialmente fundamental, aquan­do da concessão de terras - sobretudo a quantidade de grandes superfícies -, que haja um planeamento do território. Esse documento não existe. As comunidades devem ter capacidade de negociação pe­rante o Estado e as instituições, perante as entidades públicas e privadas que ve­nham discutir os terrenos.
Sabe-se que se vende pequenas exten­sões de terra e que muitas vezes figu­ras políticas estão envolvidas. Como vê este cenário?
Sobre essa realidade, ninguém tem dú­vida. Até mesmo no jornal Notícias, que está ligado ao regime, todos os dias, existem anúncios de venda de terra e al­guns casos com preços. Isto revela mes­mo que, ilegal ou informal, o negócio de terra existe, embora alguns economistas digam que não exista. Isto tem uma razão de fundo, porque as populações migram para zonas suburbanas. A população urbana cresce sobremaneira e superior à população rural. Significa que há uma migração da cidade para o meio rural. A natureza da cidade é diferente da zona rural. Na cidade existem serviços básicos, tais como saúde, educação, facilidades de acesso à energia e a pequenos negó­cios, que permitem que as populações façam negócios. Paralelamente a isso, os municípios não têm um ordenamento de território, planeamento da expansão de desenvolvimento das cidades, de forma a que possam acomodar esse crescimento demográfico de uma forma organizada, sistemática, sabendo onde é que as popu­lações terão reservas de terra e de talhão para poderem construir as suas habita­ções. Se tem esse planeamento, não estão a implementar esse plano. Existe o ne­gócio de terras, a todos níveis, em zonas nobres. Sempre que um terreno esteja coberto por uma rede de estrada, energia e condições favoráveis, os preços desses terrenos aumentam. As pessoas investem na terra, na perspectiva de vender a um preço alto. É difícil travar, porque se sabe que pessoas ligadas ao sistema e ao Esta­do estão envolvidas em tais negócios. São os próprios que fazem o negócio de ter­ra e, desse modo, o Estado fica de mãos atadas.
Que elementos do Estado estão envol­vidos neste negócio?
Não vou dar nomes de pessoas. Mas o Centro de Integridade Pública (CIP) já publicou. Moçambique teve que, obri­gatoriamente, publicar, no âmbito da Iniciativa da Transparência da Explo­ração Mineira. Anos atrás, era obrigada a publicação de DUAT em Boletim da República, mas, actualmente, deixou de ser obrigatório. Significa que se trata de um segredo muito bem guardado e que faz parte do forte défice de transparência que o Estado tem em relação a muitas matérias. E a concessão de terras é uma das áreas onde não existe transparên­cia, onde a informação não é divulgada, mesmo para questões de investigação e de pesquisa. Por isso, há muitos assuntos que não são conhecidos publicamente.

Sem comentários: