domingo, 7 de dezembro de 2014

A GUERRA DOS QUINZE ANOS


Irmãos inimigos
A RENAMO nasce, no terreno, em princípios de 1977. E nasce de um
conjunto de razões, circunstâncias, vontades, sentimentos e ressentimentos.
Nasce da nova conjuntura geopolítica regional, com a Rodésia da UDI
desejosa de exercer represálias e de contrabalançar santuários e apoios para
a ZANU-PF no território moçambicano. Nasce também do
descontentamento de uma parte substancial da população rural, sobretudo do
centro norte do país, em relação às políticas socialistas da FRELIMO e ao
seu modo de execução. Nasce ainda da resistência às perseguições contra os
antigos soldados moçambicanos do exército português, especialmente aos
GEs (Grupos Especiais) e GEPs (Grupos Especiais Para-quedistas), forçados
a esconderem-se e a fugir para as matas. E nasce por fim do desejo de
retaliação e de mudança de uma parte dos colonos, entretanto refugiados na
África do Sul.
A rapidez dos acontecimentos depois do 25 de Abril e do 7 de Setembro
seria também decisiva. O vazio brusco deixado pelas estruturas militares,
políticas e administrativas portuguesas, que a partir de Lu-saka e da
constituição do governo de transição se evaporaram, foi ocupado à pressa
pelos guerrilheiros da FRELIMO. E o movimento
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armado, formado, a nível de cúpula, por intelectuais e quadros académicos
híbridos ou mestiços e por uma forte ala de combatentes e de operacionais
negros, com predominância de shanganes e macondes, não teve tempo nem
condições para criar o Estado ou, sobretudo, para enquadrar o país. Foi desta
FRELIMO, que em Abril de 1974 não passara para sul do Zambeze, que
saíram o partido, a administração civil e os quadros que vieram substituir os
250 000 portugueses em êxodo forçado e acelerado - num país de cerca de
dez milhões de habitantes, com 2700 quilómetros de costa e mais de 700
000 quilómetros quadrados de superfície. Um dos mais belos e variados
países do mundo, em termos de paisagem e de regiões naturais.
O descontentamento com as políticas da FRELIMO, sobretudo no meio
rural, conservador e tradicional, teve um saldo favorável para a oposição. A
Flower e ao CIO bastou-lhes juntar as peças e armar e treinar quadros.
O primeiro chefe da RENAMO, André Matsangaíssa, era um dissidente
da FRELIMO. Como punição pela dissidência, é levado, no dia 15 de
Setembro de 1976, para o campo de reclusão do Sakuzi, na Gorongosa, de
onde se consegue evadir. Depois da fuga, organiza uma expedição contra o
mesmo campo e resgata 400 prisioneiros, que o seguem para a então
Rodésia. Destes 400, só pouco mais de 25 acabam por lá chegar.
São estes os primeiros guerrilheiros da RENAMO e é aqui que nasce a
resistência em Moçambique. Afonso Dhlakama conta assim os primórdios
da RENAMO e da sua luta:
«Éramos todos militares da FRELIMO: eu, chefe provincial da
intendência, o André, comandante de um destacamento de engenharia.
Formávamos um grupo de descontentes que entenderam rapidamente que o
rumo político que o país seguia era muito errado. A FRELIMO já nos tinha
identificado e andava em cima de nós. Faltava apenas motivo para nos
prender. O André foi preso por alegarem que tinha roubado um motor —
mas na realidade as razões eram políticas.
Ora nós tínhamos combinado que tínhamos que arranjar armas para
fugirmos do exército e começarmos a disparar. Tínhamos também
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combinado que, se um do grupo fosse preso, os outros continuariam até
conseguirem as armas necessárias para iniciarem a resistência e ir libertálo.
Como o André tinha sido preso há já algum tempo e nós estávamos
vigiados e não conseguíamos arranjar armas suficientes, fizemos chegar a
mensagem para que ele fugisse com a ajuda de alguns familiares que eram
da zona de Sakuzi, onde estava o campo de reeducação.
O André nasceu na zona da fronteira da província de Manica com a
Rodésia, falava o shona e conhecia muito bem a zona fronteiriça. Alguns
familiares nossos da zona da Gorongosa ajudaram o André a fugir, isto em
Dezembro de 76, e o plano era ele fugir para a Rodésia. O André fugiu para
a casa de familiares seus, na província de Manica, localidade de Chirara,
que se situa a cerca de 500 metros da fronteira. Esteve em Chirara 10 dias
a fazer o reconhecimento do terreno e a ver qual seria a melhor rota para ir
para a Rodésia.
Quando saiu de Moçambique e entrou na Rodésia foi preso pelas
autoridades rodesianas e ficou 15 dias detido a ser interrogado. Queriam
saber se ele era um espião ao serviço do Mugabe e da FRELIMO.
O André, que era um jovem forte e determinado, informou-os que não
era nada disso e foi insistindo em dizer que tinha um grupo de jovens
militares das FPLM que estavam na Beira e que precisavam de armas para
lutar contra a FRELIMO.
Numa primeira fase, os rodesianos recusaram apoiar porque diziam que
não tinham essa política, que isso para eles não era nada. Depois de algum
tempo, em que o André, depois de solto, ficou na Rodésia e era vigiado, os
rodesianos pediram-lhe que trabalhasse para eles. O André primeiro
recusou e nunca disse os nossos nomes. Mas depois entendeu que era uma
forma de o testarem e acabou por aceitar. Começou a trabalhar para os
rodesianos na área das informações e entrava em Moçambique com muita
frequência para identificar bases e apoios da ZANU. Também não tinha
muitas alternativas, porque era jovem, queria começar a luta contra a
FRELIMO e precisava de apoios. Aqui o André já fala em alguns dos
nossos nomes e diz que era preciso trazer o Afonso (eu) para a Rodésia,
para treinamento.
Tudo isto ocorre no primeiro trimestre de 77 e eu, nessa altura,
continuava na Beira, mas tinha comunicação com o André. Era eu que,
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por causa do cargo que ocupava, fornecia armamento aos guerrilheiros do
Zimbabué.
Só nos finais do mês de Abril de 77 é que a Rodésia aceita apoiar a
criação de um movimento de resistência ao comunismo em Moçambique,
que viria a ser a RENAMO. Nos finais do mês de Abril de 77, a Rodésia dá
duas armas ao André, duas AK-47.
O André recrutou dois rapazes moçambicanos, antigos militares da
FRELIMO que tinham fugido de Moçambique e estavam na Rodésia a
trabalhar nas 'farmas'. Era o Manuel Matumbura Labssone, natural do
Dondo, de etnia Sena, e o Marcos Amade, de Catandica, distrito do Báruè.
No dia 6 de Maio de 1977, o André Matsangaíssa e os dois recrutas
entraram em Moçambique, dirigiram-se ao campo de reeducação de Sakuzi,
na Gorongosa, onde o André tinha estado e por isso conhecia bem, e
tomaram de assalto o campo. Queimaram todas as instalações, que eram de
material tradicional, e trouxeram mais de 400 pessoas com destino à
Rodésia.
Destas 400 pessoas, o André conseguiu chegar à Rodésia com pouco
mais de 25, porque muitas delas não quiseram ir, preferiram arriscar e
voltar para as suas aldeias.
Este grupo de pouco mais de 25 pessoas, com mais alguns moçambicanos,
muito poucos, que foram recrutados na Rodésia, foi o primeiro
grupo de recrutas da RENAMO.
Na madrugada de 6 para 7 de Maio, eu sou preso na Beira. Fiquei 4 dias
preso e fui interrogado várias vezes.
Logo que saí, dirigi-me a casa dos meus pais, em Magunde, Chi-babava,
para me despedir e informar que ia para o mato combater a FRELIMO. A
minha mãe reagiu muito mal, chorou muito e disse que ia perder um filho,
mas o meu pai encorajou-me muito.
Em Julho de 77, deixei a cidade da Beira e comecei a minha viagem
para me juntar ao André, na Rodésia. Estive primeiro 17 dias na vila de
Manica, no Hotel Guida, para reconhecer o terreno e ver qual a melhor
forma e o melhor local para atravessar a fronteira.
No dia 1 de Agosto de 77, saí da vila de Manica e entrei na Rodésia, na
madrugada de 1 para 2 de Agosto, levando comigo dois jovens militares das
FPLM: o João Gaspar, de Sofala, de etnia Ndau, e o Alexandre Vida, de
Tete, de etnia Nhungué. Levamos connosco 4
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pistolas e atravessamos a fronteira na zona de Cbimesa, Penbalonga.
Pouco depois de entrarmos na Rodésia fomos presos, para investigações,
porque o André tinha informado os rodesianos que eu estava a caminho.
Estive detido na cidade de Mutare para investigações durante cerca de
duas semanas, sem que o André tivesse conhecimento. Eles queriam testar e
ver quem era o tal Afonso de quem o André falava tanto.
Entretanto o André estava a treinar o grupo que tinha libertado do
centro de reeducação da Gorongosa, mas em muito fracas condições.
Quando, depois de os rodesianos terem verificado que eu era mesmo o
tal Afonso, me encontrei com o André, foi um momento muito emocionante,
e ele nem queria acreditar que eu estava ali com ele.
Depois de algumas reuniões do André e minhas com os rodesianos, eles
concordaram em arranjar um campo de treino permanente, na zona de
Hozi, para treino dos futuros guerrilheiros da luta pela democracia em
Moçambique.»
Treinados na Rodésia e armados e assistidos pelo CIO e pelas forças
especiais, os guerrilheiros da RENAMO têm o seu QG no sopé da
Gorongosa e a sua homeland na província de Manica, a oeste, enclavada
entre Sofala e o Zimbabué.
Este complexo logístico-militar, na periferia do maciço da Gorongosa,
cerca de 50 quilómetros a norte do curso do rio Pungué e no coração das
montanhas de Sofala, foi montado pela RNM, com o apoio dos SAS
(Special Air Service) rodesianos, a partir de 1979. Com os seus picos a mais
de 2000 metros de altitude, a Gorongosa é uma zona de florestas, colinas e
vales, cortada por numerosos cursos de água, bem coberta pela vegetação de
qualquer observação aérea. E de difícil acesso. Às vezes, o topo do planalto
emerge algumas centenas de metros acima das nuvens, assumindo uma aura
mágica e mística aos olhos dos habitantes da região. E aos de qualquer
mortal.
Foi desta base que, em Outubro de 1979, partiu André Matsangaíssa para
combater as tropas da FRELIMO e não mais voltar. A sucessão do líder
morto em combate veio recair no seu número dois, Afonso Dhlakama.
Enquanto Matsangaíssa era um operacional com o carisma de chefe à flor da
pele, a ponto dos populares identificarem com
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ele o movimento (e chamarem aos homens da RNM «os Andrés» ou «os
Matsangas»), Dhlakama é um homem baixo de estatura, com óculos e com a
capacidade de comando mais baseada na persuasão e na palavra.
«Na altura, o movimento, dentro da sua orgânica, tinha um conselho
militar, composto pelos comandantes das bases e dos grupos de
guerrilheiros, que reuniu de emergência na Gorongosa no dia 21 de
Outubro. Como era natural num movimento ainda muito jovem, composto
por militares também muito jovens, eu, como adjunto do comandante André
Matsangaíssa, fui escolhido para o suceder.» Conta Dlhakama. E continua:
«Logo nos meus primeiros tempos como comandante da RENAMO, tive de
enfrentar a maior crise do movimento porque, logo a seguir à morte do
André, o desânimo foi grande entre os guerrilheiros e tivemos cerca de 70%
de deserções. Fiquei praticamente só com os recrutas e tivemos que
começar tudo praticamente do zero.
Quando o André morre, a RENAMO tem quase 2000 guerrilheiros, já
bem implantados nas províncias de Manica e Sofala, mas com a morte em
combate do comandante, o moral ficou de rastos.»
Mas, em pouco tempo, Dhlakama ganha a luta pelo poder.
«Logo no mês de Outubro», diz ainda o Presidente da RENAMO,
«concebi e comecei a implementar um plano muito agressivo de recrutamento
de guerrilheiros. Na base desse plano, que eu sabia ser de
importância vital para a sobrevivência do movimento e para honrar a
memória do André, estava uma política de alianças com os régulos.
Como o meu pai, que ainda é vivo, é régulo, eu tinha a noção que os
régulos eram, em 79, as pessoas que mais sofriam com as políticas comunistas
da FRELIMO de perseguição às autoridades tradicionais. E eu
conhecia bem o poder que os régulos tinham junto das populações.
Mas a grande dificuldade era um jovem com vinte e poucos anos
conseguir impor-se junto de autoridades tradicionais e ganhar-lhes a
confiança. Tinha a vantagem de ser filho de régulo. Notei também que, na
altura, os régulos estavam fartos do poder da FRELIMO... e eles acabaram
por depositar confiança em mim.
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Até ao final do ano de 79, com um grande apoio do poder tradicional,
consegui recrutar quase 1000 novos guerrilheiros, porque mouse um
ambiente propício, onde os recrutados iam arranjar novos recrutas.
Algumas vezes chegavam grupos de jovens que tinham sido mandados pelos
régulos para vir ajudar a libertar Moçambique do poder opressor da
FREL1MO.»
Na fase seguinte, as equipas dos SAS rodesianos, encarregadas de
acompanhar a reinstalação da RENAMO em Maringue, são o C Squadron,
do capitão Bob McKenna (um veterano norte-americano do Vietname) e o B
Squadron, do tenente Peter Cole. Os SAS treinaram os guerrilheiros no tiro
com as AK-47 (Kalash) e no uso do lança--foguetes RPG-7, as armas
universais da guerrilha. A montagem de bases - com hospitais, trilhos de
acesso, defesas, escapes para longe e para a montanha, depósitos
subterrâneos para armas e munições - foi também executada na altura.
Com os régulos e os camponeses da área hostis à FRELIMO, a parte
política - a propaganda, o recrutamento, o enquadramento e a formação dos
guerrilheiros e das populações, que eram a base humana dos rebeldes — não
foi difícil. Mesmo na penúria, os rebeldes foram criando formas de manter a
disciplina e a identidade: tinham os seus «comissários políticos» e a sua
bandeira (com as cinco flechas) que diariamente içavam e conservavam nos
acampamentos.
Contrastando com as tropas da UNITA, que a partir de 1980 possuíam os
recursos dos «bons» rebeldes (uniformes e equipamento militar regular), os
grupos de combate da RENAMO ofereciam mais o aspecto de uma tropa
improvisada. Os registos fotográficos mostram--nos de t-shirt branca ou
publicitária, àejeans ou de calças militares. São raros os camuflados. Aqui e
ali, um capacete de mineiro ou uma boina, mas, de resto, quase todos de
cabeça descoberta. Uns de botas, outros de sandálias, outros descalços.
Mas revelaram-se bons combatentes, e os seus formadores rodesianos,
também habituados à escassez e à improvisação, treinaram-nos bem na arte
da sobrevivência na escassez e na improvisação. Rapidamente, com raids a
bases da FRELIMO e às povoações nos vales circundantes, foram-se
abastecendo e reequipando em armas e munições.
222 JOGOS AFRICANOS
Na retaguarda, a partir de Gwelo na Rodésia, a Rádio África Livre emitia
para Moçambique propaganda contra a FRELIMO e divulgava os êxitos da
resistência. Os corredores de abastecimento entre Umtali, na fronteira, e a
base principal da Gorongosa estavam estabelecidos e funcionavam com
facilidade.
Afonso Dhlakama descreve o modus operandi da guerrilha de então:
«O armamento que a FRELIMO utilizava era muito potente: BI Is e
BlOs, canhões 75, carros BM 21 de 40 canos, de fabrico soviético, que
disparavam 40 obuses ao mesmo tempo. O material era todo de origem
soviética.
Muitas vezes fui obrigado, eu mesmo, a entrar em combate directo,
quase corpo a corpo, e até nos socorremos de pedras grandes que
empurrávamos encosta abaixo para fazer recuar o inimigo. Nós conhecíamos
muito bem a serra e tínhamos a população do nosso lado, que
nos levava informações e alimentos. Montávamos emboscadas nas zonas
mais íngremes da serra e quando eles paravam para descansar nós íamos lá
atacá-los para os desmoralizar.
Actuávamos em grupos muito pequenos, dispersos pela serra e com
grande conhecimento do terreno, e eles pensavam que nós éramos como que
espíritos da serra da Gorongosa, que estávamos em todo o lado ao mesmo
tempo. Um só homem nosso podia fazer muitos estragos no inimigo naquele
teatro de operações!»
Sobrevivência e escalada
Quando a situação mudou na Rodésia-Zimbabué, com os acordos de
Lancaster House e a tomada do poder por Mugabe, nos princípios de 1980, a
RNM correu o maior risco da sua história. As transições são sempre incertas
para quem deixa de ser útil e ainda não é perigoso. Mas o negócio concluído
por Flower com os sul-africanos avançou a partir de Fevereiro de 1980.
Nesse aspecto, 1980 foi um ano ambíguo: por um lado, as FAM (Forças
Armadas de Moçambique), na sequência do ataque em que Matsangaíssa foi
morto e várias bases da RNM ocupadas e destruídas,
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conseguiram uma série de êxitos contra os rebeldes que tinham perdido os
seus apoios na Rodésia. Com alguma razão mas também com algum wishful
tbinking, o governo de Maputo pensou que sem o apoio da Rodésia se
acabava a rebelião. Baseada na consideração ideológica de que os seus
oponentes tinham sempre que ser «maus» (logo, instrumentos do exterior) e
confiada na amizade de Mugabe e da ZANU--FP, os novos detentores do
poder no Estado vizinho, a FRELIMO convenceu-se que o extermínio da
guerrilha eram favas contadas. De resto, alguns sucessos no terreno
pareciam confirmar esta teoria, como o ataque a uma importante base da
RNM, em Sitatongo, em Julho de 1980, com 272 rebeldes mortos e 300
feitos prisioneiros. Na fuga precipitada, os dirigentes da RENAMO
abandonam documentação importante e Dhlakama perde os seus preciosos
óculos.
Mas logo em 1981, veio o início do apoio militar sul-africano e os
guerrilheiros estavam de volta e em força. Os seus formadores eram agora
os homens do 5th Reconnaissance Regiment, da SADF, na base de
Phalaborwa, no Transvaal oriental. Desta vez, dados os novos pontos de
apoio, bem mais a sul, começavam a actuar na Frelimoland, nas províncias
de Inhambane, Gaza e Maputo. Aí não contavam com o apoio das
populações, como a norte do Zambeze, mas, mesmo assim, rapidamente
criaram uma infra-estrutura logística. Por esta época, os guerrilheiros seriam
entre 5000 a 7000 por todo o país, contando a FRELIMO com um exército
de cerca de 20 000 a 25 000 homens, basicamente formado pela velha
estrutura da guerrilha e apetrechado com a doutrina e o equipamento
soviéticos, que não seriam os mais indicados para inspirar e servir a contraguerrilha.
Isto levou, a partir de Março de 1982, a uma reorganização das
FAM (Forças Armadas Moçambicanas) de modo a poder responder à
mudança táctica dos guerrilheiros. Antigos combatentes da FRELIMO
foram chamados às fileiras para organizar e enquadrar uma milícia
territorial. A RNM, que por esta altura passou a RENAMO, deixava os
ataques a aldeias e as emboscadas e começava a atacar povoações maiores
com crescente eficácia e violência, com os quadros e os responsáveis
políticos partidários do Governo executados sumariamente.
No sul, onde as populações eram tradicionalmente mais ligadas à
FRELIMO por razões históricas e étnico-políticas, a intimidação era
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necessária aos rebeldes. Por vezes, faziam transferências forçadas de
populações ou recrutavam-nas, também à força, para os servirem. A guerra
assumia aspectos ancestrais, primitivos, chocantes para os parâmetros
civilizados.
Na nossa forma ocidental de olhar estes conflitos, acabamos sempre por
ter um certo preconceito a favor do lado da lei e da ordem - ou do lado que
usa os meios mais modernos, cirúrgicos e assépticos de matar.
Independentemente até da nossa posição ideológica. O piloto de um jacto ou
bombardeiro que sai de manhã, de uma base moderna, que é da nossa nação,
da nossa cor, da nossa nacionalidade, para bombardear um acampamento
guerrilheiro ou uma aldeia numa zona rebelde, em terra de ninguém, é mais
decente, mais limpo, mais militar, que o guerrilheiro que matou à catanada
ou metralhou de perto gente de uma outra aldeia. E contudo, o «nosso»
piloto também mata, mutila, fere e inutiliza à distância civis inocentes. A
distância, o não ver as vítimas, absolve, parece desligar a causa da
consequência, tornar a guerra melhor...
Também por isso a guerra de Moçambique, até pela sua baixa
intensidade tecnológica, pela sua fragmentação em pequenas unidades, pelos
poucos recursos dos seus combatentes, nos pareceu mais sangrenta e
primitiva que a de Angola.
Brest-Litovsk no Incomati
Os anos 80 mostram a linha de um conflito intermitente. Como em
Angola, é a componente externa - aqui sobretudo regional - que vai
marcando e definindo os ciclos da guerra. A partir de 1982, a RENAMO
escalou e foi alargando o terreno das suas operações a quase todas as
províncias do país. Na primeira parte deste período, o apoio sul-africano foi
claro e sem grandes disfarces. Em 1984, sob grande pressão da guerrilha,
Machel decide avançar para o seu Brest--Litovsk: os Acordos de Incomati.
Nestes, os governos de Pretória e de Maputo comprometem-se a não apoiar
acções armadas dirigidas contra o outro e a não permitir a permanência nos
respectivos territórios de elementos ou movimentos hostis. O que queria
dizer que a
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 225
Defense Force ia ter que deixar de apoiar e treinar a RENAMO e que o
ANC teria de ser expulso de Maputo.
O acordo foi assinado em 16 de Março de 1984. Desencadeou-se então
alguma polémica no campo socialista, com acusações de traição vindas de
todo o mundo e dirigidas ao governo de Maputo pelos ze-lotas do marxismo
ortodoxo. Também na Africa do Sul, a nível do núcleo no poder, as coisas
não foram fáceis. Os militares da Defense Force, com o general Viljoen à
frente, consideraram que este acordo, no momento em que foi assinado, ia
roubar-lhes a oportunidade de uma importante vitória. Estavam certos de
que os seus protegidos da RENAMO, com mais algum tempo e esforço,
poderiam asfixiar as cidades, incluindo a capital, e tomar o poder. Para os
compensar, o presidente P. W. Botha fechou os olhos a uma remessa maciça
de armas e munições que precedeu a assinatura dos Acordos. Em poucas
semanas, os rebeldes receberam um forte reabastecimento.
Na verdade, Incomati acabou por aproveitar mais a Maputo que a
Pretória. A sobrevivência do regime de Machel estava em risco e a
RENAMO representava, ao tempo, um perigo muito maior para o governo
da FRELIMO que o ANC em Maputo para o governo branco da Africa do
Sul.
Assim, Samora Machel controlou sem dificuldades os seus bard--liners
mais obtusos e conseguiu sobreviver. Tal como Lenine em Brest-Litovsk,
Samora tivera que ceder para sobreviver. Entalado entre os alemães e os
«brancos» Lenine cedera aos primeiros, ignorando pressões internas. E
também com os militares alemães, com Hindem-burg e Ludendorff à frente,
a pressionarem o Kaiser para liquidar os bolcheviques, enquanto os
diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros sustentavam a sua
sobrevivência. Pelas mesmas razões que Pik Botha iria sustentar a
sobrevivência da FRELIMO.
Mas se Incomati impediu um desfecho trágico para o governo de
Moçambique, não lhe resolveu o problema. Na verdade, na época, a
RENAMO já tinha uma massa crítica de guerrilheiros e militantes e uma
base de apoio nas populações do Centro e Centro-Norte de Moçambique
que a tornavam auto-suficiente. Já estendera as suas operações para sul do
Zambeze e até Gaza e aos arredores de Maputo e, para norte, para a
Zambézia, Quelimane, Nampula e até às fronteiras
226 JOGOS AFRICANOS
do Niassa e de Cabo Delgado. E tinha mais de 12000 guerrilheiros com
experiência de vários anos de luta armada.
Um cobertor curto
A estrutura logística do movimento rebelde não fora atingida. Na
Gorongosa mantinha-se um núcleo central de bases militares - a principal, a
Casa Banana, ficava no sopé da montanha e albergava um milhar de
guerrilheiros. Nesta base havia um pequeno aeródromo com uma pista de
800 metros bem camuflada que podia receber pequenos aviões de transporte,
uma central de telecomunicações para o exterior, com um emissor
suficientemente potente para Dhlakama contactar com o seu pessoal em todo
o país, e até uma pequena tipografia para imprimir panfletos. E
aparentemente, quer por via das dirty operations, quer a partir de apoios
civis, continuavam a chegar apoios da Africa do Sul.
Nesta altura, quem reequilibra a situação é o Zimbabué, ao reforçar o seu
contingente dentro de Moçambique de 8000 para 12 000 homens, quase uma
quinta parte das suas tropas. As tropas zimba-bueanas não só defendem o
corredor da Beira como participam activamente em operações conjuntas
com as FAM, contra a RENAMO.
Em Agosto-Setembro de 1985, uma destas operações alcança um sucesso
inesperado e simbólico, tomando de assalto a Casa Banana, matando
algumas centenas de guerrilheiros e ocupando a área, incluindo a pista.
Sucesso relativo, argumenta Dhlakama, embora outras bases da RENAMO,
nas províncias de Sofala, Maputo, Zambézia e Inhambane tivessem sido
depois atacadas e destruídas: Indoro, Vuru-ca, Xichocoxa, esta última, a
principal base da RENAMO no sul.
Comenta o líder da RENAMO:
«A Casa Banana tornou-se mítica para história da guerra civil em
Moçambique porque foi a primeira base em que tínhamos já vários cordões
de segurança que a tornavam inacessível ao inimigo. Situava--se a cerca de
30 quilómetros a leste da montanha, nas margens do rio Nhadué, na zona
de Zongóruè. Foi cuidadosamente planeada, inclusive para ter a sua parte
civil, com escolas, postos de saúde, adminisA
GUERRA DOS QUINZE ANOS 227
tração pública e — o que foi um dos nossos orgulhos enquanto combatentes
um moderníssimo sistema de comunicações.
A propaganda comunista da FRELIMO que refere o famoso ataque bem
sucedido a Casa Banana foi, em parte, uma invenção!
O que na realidade existiu foi que, em Agosto de 85, houve um ataque da
FRELIMO a Casa Banana, mas muito mal preparado e mal sucedido.
A grande referência de Casa Banana era a pista de aviação de Canganitore,
no Parque da Gorongosa, que ficava a cerca de 10 km da base.
Era aqui que muitos jornalistas estrangeiros aterravam para estarem
connosco alguns dias, viviam connosco, comiam connosco, dormiam
connosco, sem nenhum problema.
A pista de Canganitore era visível do ar e a FRELIMO preparou um
ataque tendo como referência as coordenadas da pista para os primeiros
bombardeamentos aéreos. Por isso quando identificaram a localização de
Casa Banana e começaram a bombardear a base, nós já estávamos muito
longe. Mais uma vez gastaram bombas só para destruir palhotas. Foi neste
contexto que a FRELIMO pôs a circular que o Dhlakama tinha fugido de
Casa Banana montado numa motorizada, o que, para quem saiba o que é
uma guerrilha, até dá vontade de rir! Ir de moto para fazer barulho, deitar
fumo e deixar um rasto no chão?!... Seria fatal para um líder se pensasse
assim!
Nós saímos de Casa Banana, sim senhor! Seria suicídio não o fazer
quando somos guerrilheiros e estamos a ser bombardeados por aviões. Mas
foi a pé, como sempre fizemos, e fomos para um local chamado
Nhamadjambué, que fica a 25 km de distância.
Esta foi sempre a nossa estratégia: em caso de bombardeamento
deixávamos a base e íamos ficar a alguns quilómetros de distância.
Depois desta nossa retirada estratégica de Casa Banana, a FRELIMO
mandou pára-quedistas zimbabueanos para fazerem o reconhecimento da
área e confirmarem a nossa saída. E até o Samora Machel veio de Maputo
de avião para se sentar na varanda da minha casa e tirar fotografias. Nessa
altura ele afirmou que tinha «partido a espinha aos bandidos armados!».
Ele devia ser muito mal aconselhado ou não tinha noção do que era uma
guerra de guerrilha! Já quando fomos forçados a fugir da base de Sitatonga
2, em 80, e que um dos meus
228 JOGOS AFRICANOS
secretários deixou ficar um par de óculos meus para trás e alguns
documentos referentes ao movimento, isso foi aproveitado pela FRE-LIMO
para fazer propaganda e afirmar pública e internacionalmente que o
Dhlakama tinha sido morto na ofensiva. Depois disso 'mataram--me' muitas
mais vezes! Mas, muitos dos que me 'mataram' já lá estão, e eu, mesmo que
eles não gostem, ainda aqui estou!
Enquanto Samora estava a festejar em Casa Banana, nós estávamos a
poucos quilómetros a reorganizar a nossa estratégia.
Foi a partir da base central de Casa Banana que atacámos e conquistámos
a vila de Maringué. Em resposta, as forças da FRELIMO
concentraram muitas tropas zimbabueanas em vila Paiva de Andrade
(Gorongosa).
A partir dessa data, Maringué passou a ser uma das nossas zonas
libertadas, onde tínhamos duas bases, uma perto da povoação e outra mais
afastada. A partir de 85, vou instalar-me na base presidencial de Maringué,
que passou a ser o nosso quartel-general.
Eles estavam sempre a 'atacar com sucesso', sempre a apresentar
guerrilheiros presos, armas recuperadas, matavam o Dhlakama quase todos
os meses, mas na realidade, no terreno, levavam pancada em todo o
território nacional e foram obrigados a vir negociar com aqueles que
gostavam de chamar de 'bandidos armados', os 'matsangas'. E quando
vieram negociar não podiam sair dessas cidades deles, e mesmo nas cidades
dormiam com medo. Alguns diplomatas que estavam em Maputo chegaram
a ir de helicóptero dormir à Africa do Sul, porque o governo estava a
tremer, não garantia protecção, e a RENAMO estava na Catembe, nas
outras entradas de Maputo, ás portas da capital!»
Como é clássico neste tipo de conflitos - e como os exércitos europeus,
americanos e soviéticos aprenderam à própria custa noutras contraguerrilhas
—, muitas vezes a concentração de esforços num lado leva ao
desguarnecimento e vulnerabilidade noutros pontos estratégicos.
É a história do cobertor curto, que ou bem que tapa os ombros ou bem
que tapa os pés. Enquanto a ZANLA ou as FAM marcavam pontos com
estas operações, a RENAMO atacava noutras províncias e noutros locais,
como no Caia e em Marromeu. E assim, em pequeA
GUERRA DOS QUINZE ANOS 229
nos grupos, os homens da RENAMO passaram à contra-ofensiva na «sua»
Gorongosa, a partir das alturas para onde tinham refluído. O tempo que se
seguiu seria de toma, retoma, conquista e reconquista de posições.
Num esforço militar para conter a RENAMO, Samora Machel negociou
e pressionou os seus homólogos da Tanzânia e do Malawi para que se
juntassem aos zimbabueanos. Os tanzanianos enviaram tropas para o Norte
e o velho presidente do Malawi, Hastings Banda, a contra-gosto, acabou por
mandar também um batalhão para apoiar a protecção da linha de Nacala,
que ligava o seu país ao mar.
Em Outubro de 1986, Samora Machel e um número importante de
membros do Governo e quadros da FRELIMO morriam num acidente aéreo,
cujas causas são, ainda hoje, tema de discussão. Machel foi substituído,
quase sem hesitação, por Joaquim Chissano, ministro dos Estrangeiros e
considerado mais pragmático que o populista e carismático primeiro
presidente.
Corriam, também, na época, internacionalmente e no Bloco de Leste,
grandes mudanças determinadas pelas reformas de Gorbachev. Ou melhor,
determinadas pelos efeitos não previstos e perversos dessas reformas, que
iriam causar o desmantelamento do comunismo e sobretudo, e ainda antes,
uma atitude diferente em relação ao campo socialista mundial, onde
prevaleceria a «doutrina Sinatra» — cada um por si e todos por nenhum.
O envolvimento dos soviéticos em Moçambique, embora significativo,
nunca tivera nada a ver com o grau de cometimento político--militar em
Angola. Tinham fornecido e equipado materialmente o exército mas teriam,
no país, cerca de 700 conselheiros junto das FAM e praticamente não
intervinham em operações. Outros cooperantes político-militares incluíam
alemães, romenos, búlgaros, cubanos, etc.
Outros ventos
Chissano vinha decidido a mudar as políticas da FRELIMO, quer em
relação ao exterior, quer, em termos ideológicos, a nível interno.
230 JOGOS AFRICANOS
Quanto à política doméstica, abandonou o rigor socialista de Machel e
iniciou a liberalização, não só da economia, como daqueles aspectos
doutrinários e práticos mais repudiados pelas populações - como as «aldeias
comunais», a deslocação forçada de populações, as medidas anti-religiosas e
hostis aos chefes tradicionais, tudo factores que a RENAMO soubera usar
para angariar apoios entre os descontentes. O General Alberto Joaquim
Chipande fala desta mudança interna:
«Aí, depois de Incomati, dissemos: 'Os sul-africanos assinaram o
acordo, mas as coisas continuam difíceis... tem que haver mais cúmplices na
região! Qual é o posicionamento de outros países da região aqui?' E
tivemos então que jogar com essa política toda. Os nossos inimigos estavam
também aqui, no país, agora quem eram esses? Fomos ver que eram os
moçambicanos subestimados. Tivemos que começar a rever o nosso próprio
partido FRELIMO. A definição filosófica do nosso partido. O partido
FRELIMO é de quem? Se é do povo, nós temos que ver as definições. Se
realmente estamos a incluir todo o povo ou estamos excluindo. Na
FRELIMO discutimos e concluímos que certas definições no nosso partido
tinham que ser claras. Um partido marxista-leninista... que tipo de
marxismo? Que tipo de leninismo? O que é isto? Forque não à maneira
moçambicana, em conformidade com a relação social no nosso país, com os
estratos do país? Então começámos a mexer o programa do nosso partido e
a eliminar tendências divisionistas. Era tão rígido! Membro do partido: n.°l,
o sacrifício, n.° 2, o benefício. Membro do partido não pode ser religioso,
não pode não sei o quê, não pode ter uma loja... Era muito duro! Sentámos
na FRELIMO e começámos a ver: então esses membros que são religiosos,
vão ficar de fora? Esse que tem uma loja, esse que tem carro, fica fora?
Começámos a pensar em rever a nossa Constituição, a primeira com o
Samora, a rever tudo aquilo para alterar a Lei Mãe. Só alterámos a
Constituição depois, em 99, mas já tínhamos começado esse processo, já
tínhamos começado a mudar algumas coisas para que o partido fosse um
partido de todos, partido do povo. Começámos dali, e dali então
encontrámos o campo. Definição de quem é moçambicano, de quem é
membro do partido. E definimos também quem eram os aliados, quais os
importantes, começámos já a rever as coisas de uma forma real dentro do
esquema do sistema
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 231
moçambicano, na diversidade e complexidade da sociedade moçambicana,
para abarcarmos todos. Somos muitos estratos sociais, de estratos sociais
diferentes, com hábitos diferentes, cada qual tinha que encontrar, se
acomodar lá na Lei Mãe.»
Entretanto a RENAMO também caíra em excessos de violência,
nomeadamente no Sul, nos casos de Homoine, Manjacaze e Taninga, todos
na segunda metade de 1987, que tiveram uma repercussão internacional
muito negativa, sobretudo entre os norte-americanos.
Graças a estas políticas internas e a uma acção externa dirigida aos
europeus e americanos, com vista a isolar a RENAMO e a demonstrar aos
países estrangeiros que a evolução do regime iria no sentido de uma
progressiva liberalização económica e política, Chis-sano conseguiu tornarse
popular no mundo ocidental, e Moçambique passou a ser um dos países
predilectos das ONGs. Na época, 75% do PNB do país vinha da ajuda
externa. E subsistia também a ideia de desarmar a oposição armada,
realizando o programa do Governo, de Junho de 1989, que consagrava estas
medidas.
E era também o fim da Guerra Fria, com o novo vento dominante a
querer agora varrer os conflitos periféricos. Só que, ao contrário de Angola,
em Moçambique não havia soviéticos e americanos envolvidos como irmãos
mais velhos dos contendores, irmãos que pudessem, na hora, ser os
impulsionadores do processo de reconciliação e os mentores da paz interna.
Militarmente, caminhava-se para a exaustão e para o beco sem saída. As
forças em presença equilibravam-se, com a RENAMO com mais de 15 000
guerrilheiros por todo o país e a FRELIMO com mais de 30 000, num
exército que agora recebia também formação de países ocidentais como a
Grã-Bretanha e Portugal. E a estes devem ainda juntar-se os mais de 10 000
zimbabueanos e os contingentes de tanzanianos e malawianos. De qualquer
modo, tratando-se de guerra subversiva, os números deixavam os
governamentais aquém daquele rácio funcional de 10 para 1, essencial para
conter e neutralizar uma guerrilha. Mas também para a guerrilha, depois das
tentativas frustradas de estrangular Maputo e de conseguir a implantação
continuada no Sul, não parecia haver abertas para uma vitória militar ou
para um colapso do governo e da administração. Assim sendo, a
232 JOGOS AFRICANOS
guerra, a continuar, iria degradar-se cada vez mais em termos de material e
equipamento e iria escalar em termos de brutalidade e destruição. Era o
costume. Quanto mais primitivas as armas, mais relaxado o comando e o
controlo, maior a ferocidade e o número de vítimas...
A paz como último recurso
Nestas circunstâncias urgia começar a pensar na paz. Até então, do lado
do Governo, tinha havido, sobretudo até à morte de Machel, uma grande
intransigência em relação à ideia de negociar com aqueles que eram
considerados - só e apenas — os «contras do apartheid» e os «bandidos
armados» da África do Sul e da revanche colonialista.
Chissano, mais pragmático, e sobretudo mais liberto em relação ao
passado, por ser um sucessor e estar a começar uma nova etapa, sentia-se à
vontade para sondar sensibilidades entre os seus camaradas do Bureau
político. Na verdade, os chefes militares, porque experimentavam as
dificuldades no terreno e tinham eles próprios sido guerrilheiros, e os civis,
porque tinham experiência política e uma formação teórica leninista, sabiam
que a guerra não era vencível militarmente e que o país caminhava para o
colapso. Sabiam também que, com o fim da Guerra Fria e da
internacionalização dos conflitos, os países que não os resolvessem a tempo,
arriscavam-se a caminhar para a fragmentação e ficar à margem de qualquer
política de desenvolvimento e reconstrução.
Entretanto, alguns albergavam ainda a esperança de que as políticas de
liberalização político-económicas, a abertura dos anglo--saxónicos, a falta
de preparação política da RENAMO, contassem a seu favor para ganhar os
apoios ocidentais e mesmo o da Africa do Sul, que entrava agora também
num caminho de reformas. Para as negociações, Chissano sabia ter a
oposição dos doutrinários mais radicais, como Marcelino dos Santos, Sérgio
Vieira e Jorge Rebelo. Mas outras figuras muito importantes do partido,
como Armando Guebuza, o primeiro-ministro Mário Machungo, Jacinto
Veloso e, sobretudo, o núcleo duro dos chefes militares da guerrilha e das
FAM,
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 233
como Alberto Joaquim Chipande e Raimundo Pachinuapa, apoiavam o
princípio realista da necessidade de uma negociação com os guerrilheiros,
embora não entrassem em detalhes quanto aos termos e ao tempo desta.
Maputo era um enclave animado pelos cooperantes de cerca de 30
ONGs, pelos funcionários das organizações internacionais e por dezenas de
embaixadas, e a situação no país, sobretudo fora da capital, tornava-se cada
vez pior. Alguma coisa teria que acontecer.
Por essa altura, (1987-88) eu já estava bem dentro do processo moçambicano:
já conhecia a RENAMO, os seus representantes, os seus
agentes, os seus amigos em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos.
Tinha enviado o Eduardo Mascarenhas a entrevistar Dhlakama, tinha
contacto com a equipa dos serviços portugueses que tratava do problema, ia
sendo visitado regularmente pelos emissários da guerrilha e facilitava-lhes
contactos e acessos na Europa e nos Estados Unidos. Por todos estes
contactos e por um processamento caudal de informação sobre a
organização, apercebia-me de uma série de rivalidades e tensões, naturais ou
estimuladas, entre os quadros exteriores da RENAMO.
Outro caso tenebroso
O ano de 1987 fora um ano de várias mortes de dirigentes da RENAMO
no exterior: como o João Ataíde e o Mateus Lopes, que eu conhecera bem
em Lisboa e que desapareceram num estranho acidente de viação no
Malawi. Em Março de 1988, dera-se a deserção para a FRELIMO de Paulo
Oliveira, que a pedido de Evo Fernandes eu empregara n' O Século como
redactor do Internacional.
E, sobretudo, também em 1988, ia dar-se o assassinato do próprio Evo,
acto que me impressionou muito pelas circunstâncias singulares que o
rodearam e por se tratar de um velho amigo. Na manhã de segunda-feira, 18
de Abril, a Carmo Jardim ligou-me: acabara de receber um telefonema da
Yvete, mulher de Evo, muito inquieta, pois este, até às oito da manhã, não
regressara a casa. Tememos que ele tivesse sido raptado. A minha primeira
reacção foi indagar dos voos
234 JOGOS AFRICANOS
para Moçambique, da LAM, na véspera, domingo. Averiguei as circunstâncias
da partida e apurei que o avião, já na pista, demorara algum
tempo a partir. Como se esperasse por alguém. Através dos contactos nas
embaixadas dos EUA e da Africa do Sul procurámos verificar situações.
Falei também com o pessoal da inteligência portuguesa. O adido militar da
África do Sul prontificou-se a tentar perceber o que se passara.
Mas nada de esquisito foi observado. Também, através de Maputo, o
feedback era no sentido de não haver movimentações anormais à chegada do
avião, como seria de calcular se viesse um «raptado» a bordo.
Conferenciámos - o núcleo de amigos do Evo e os membros da restrita
comunidade, entre nacionais e estrangeiros, com interesse no problema. O
Evo fora jantar, mas não dissera à Yvette com quem. Falei com o Ernesto
Moura Coutinho, amigo e advogado do Evo e da Yvete Fernandes, e
pusemo-nos em contacto com o Dr. Orlando Romano então director da
DCCB (Direcção Central do Combate ao Banditismo da Judiciária) que
estava a chefiar a investigação do caso. E estávamos com ele - o Ernesto e
eu - quando se soube que tinham encontrado o cadáver do desaparecido nas
imediações do Guincho. A Yvete estava também lá, na Judiciária, mas
achámos melhor não lhe dar a notícia - ou não tivemos coragem de o fazer.
Infelizmente, veio a saber da pior maneira: pela telefonia, no regresso a casa.
A morte do Evo, como se veio a apurar, fora uma operação de subcontratação
para a SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular),
executada por dois indivíduos com conotações marginais - Alexandre Xavier
Chagas e Joaquim da Conceição Messias. O Evo fora jantar com o Chagas
ao Restaurante Beira-Mar, em Cascais. Se o Chagas pretendera aliciá-lo e
encorajá-lo a desertar ou ia já com o objectivo de o assassinar, não se soube.
Na véspera dos acontecimentos, na sua reclusão em Maputo, o Paulo
Oliveira fora perguntado, por um contacto da SNASP, se o Evo costumava
andar armado.
Mas porquê o recurso ao assassinato, num país europeu e deixando
pistas, um comportamento a que a segurança do estado moçambicano - nos
anos da guerra — dirigida sucessivamente por Jacinto Veloso, Sérgio Vieira
e Mariano Matsinhe, nunca recorrera? Pelo menos em Portugal...
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 235
Continuo a pensar - e disse-lho várias vezes pessoalmente - que o Evo,
que além de inteligente e fisicamente corajoso, era um optimista, não se deu
conta que entrara numa zona de alto risco, perante adversários nem sempre
racionais e susceptíveis de pânico. No fim-de-se-mana seguinte - que seria o
de 23-24 de Abril —, ele iria, em princípio, com Dhlakama à Alemanha, a
Munique, para verem Franz-Joseph Strauss. Evo depositava grandes
esperanças neste encontro com o líder da CSU bávara para apoiar
financeiramente a constituição de uma ala política da RENAMO. No seu
entender, esta ala política era o elemento que faltava ao movimento
guerrilheiro para ser uma alternativa de governo à FRELIMO. Ora isso era
forçosamente sabido por Maputo. Além do mais, o Evo era o homem
indicado para fazer pontes e tinha as bênçãos da equipa da inteligência
militar sul-africana que seguia o dossier Moçambique, liderada pelo
brigadeiro Van Niekerk. Terá sido que, entrando em ansiedade e tomando
medidas de antecipação, alguém com poder para o fazer teria activado uma
operação que já estaria desenhada há algum tempo? Paulo Oliveira, o
dissidente (ou o infiltrado do SNASP na RENAMO, como ele prefere
explicar a sua conduta no seu livro de memórias) indica que a operação de
liquidação de Evo Fernandes, embora executada no tempo de Matsinhe, fora
já planeada por Sérgio Vieira. Confrontado com estas acusações, Vieira veio
negar indignadamente que alguma vez tivesse concebido ou ordenado tal
tipo de operação e que ela viesse da parte da FRELIMO. Mas as
investigações desenvolvidas em Portugal por Orlando Romano e pela
DCCB, com o apoio da INTERPOL, levaram à captura de Chagas em
Marrocos. No processo estabeleceu--se um linkage com um diplomata
moçambicano em serviço em Lisboa, o terceiro secretário Rafael Custódio
Marques, que se apurou ser o mandante e pagante da operação, o que levou à
sua expulsão do nosso país, em Março de 1989. E o primeiro-ministro
Cavaco Silva, visivelmente incomodado pelo caso, adiou a sua visita a
Moçambique, programada para Setembro de 1989. Chagas foi condenado a
18 anos de prisão e Messias a 8 anos e meio.
Na verdade, a questão da representação política da RENAMO levantara
sempre, no exterior, uma certa confusão e conflito. Os sul--africanos não
queriam patrocinar uma ala política que lhes retirasse
236 JOGOS AFRICANOS
a influência que tinham sobre a RENAMO-operacional, à qual tinham um
acesso quase exclusivo. Mas também percebiam o incómodo da situação.
Evo Fernandes era o seu preferido, na confusa galáxia de apoios,
representantes e amigos que pretendia apoderar-se dos hearts and minds de
uma das mais eficazes guerrilhas africanas.
Era uma situação complicada, com uma enorme fuga à responsabilidade,
que fomentava também muitas lendas urbanas sobre a guerrilha
moçambicana e a sua «inexistência política», e contribuía, cada vez mais,
para criar à sua volta uma espécie de mito de inacessibilidade que mais não
era que o jogo dos Serviços, fazendo caixa para encarecer o seu exclusivo.
Um jogo que tinha de ser finalmente desvendado e rompido, como condição
- não suficiente, mas necessária - para a paz.
11 A PAZ
ROMANA
Caminhos na floresta
Os caminhos da paz em Moçambique vão começar informalmente.
Também por isso são indistintos e difíceis de retraçar, como aqueles
Holzwege - caminhos na floresta, ou caminhos que não levam a parte
nenhuma - da epígrafe que Martin Heidegger escolheu para juntar alguns
dos seus mais belos périplos filosóficos.
Estes caminhos foram diversos, pioneiros, originais, públicos e privados.
Divergentes à partida, e ditados - como os da guerra - por razões
desencontradas e contrapostas: pelo interesse e pela generosidade, pelo
cansaço e pela esperança, pela ambiguidade e pela transparência, pela razão
e pelo oportunismo, por sentido de justiça e por vaidade e sede de
protagonismo.
Talvez pela falta de envolvimento de grandes poderes no conflito, ou por
ser o recurso à paz a última instância para uma guerra onde não se viam já
vitórias, ou ainda por ocorrer este princípio negocial num tempo de grandes
mudanças, no Verão de 1989, quando no Leste da Europa tudo começou a
mexer e, em Novembro, o Muro de Berlim foi derrubado e acabou a Guerra
Fria.
Nesse ano de 1989, a situação político-militar em Moçambique era o
impasse. A guerra continuava, mas era cada vez mais claro que a
238 JOGOS AFRICANOS
RENAMO não tinha força militar nem política para derrubar o partido do
governo. A FRELIMO atenuara os aspectos mais impopulares da sua
governação, consolidara apoios ocidentais, contava com tropas mais
preparadas e com um corpo de forças aliadas da região. Mas também
ninguém na área do poder, fora da retórica da propaganda, acharia possível
acabar com os guerrilheiros ou mesmo assegurar, contra eles, mínimos de
segurança interna que permitissem uma recuperação da economia. Com as
comunicações cortadas, as cidades a viver em enclaves e as populações
errantes, às vezes fugindo aos guerrilheiros e aos soldados, impunha-se uma
solução para a degradação do país.
Nestas circunstâncias, a classe política dirigente põe a questão das
negociações. Para a oposição armada as negociações são sempre bem
vindas: ou porque delas se espera uma desmoralização das tropas
governamentais, que começam a pôr o problema de morrerem num conflito
que tem os dias contados; ou porque, simplesmente, os rebeldes passam a
ser reconhecidos, dando um salto político no caminho da dignidade e da
legitimidade.
Para o governo de Moçambique - e para todos os governos —, a questão
é a contrária: os bandidos armados, os marginais, os terroristas, que até aí
foram tratados como um caso de polícia, são reconhecidos como opositores
políticos armados, gente com quem se passa a falar de igual para igual.
Chissano auscultou os seus pares e percebeu que entre eles, com
excepção dos ideólogos mais ortodoxos, se sentia a necessidade de achar
uma solução negociada. Isto foi ratificado em linguagem algo cifrada pelo
5.° Congresso da FRELIMO de Junho de 1988: o Presidente tinha cobertura
para começar.
Lembra Joaquim Chissano:
«Também eu, pessoalmente, fiz a consulta sobre as próprias negociações,
já fora da constituição, à população. Nas várias visitas que eu fazia
aos distritos — às províncias e distritos - eu conversava com a população
em comícios sobre a ideia de um diálogo com a RENAMO, um diálogo
directo. Aqui foi onde eu encontrei uma certa resistência. E lembro-me de
um episódio, num distrito da província de Zambeze,
A PAZ ROMANA 239
em Alto Molocué. Eu levava comigo alguns diplomatas estrangeiros — eu
costumava fazer isso que era para eles conhecerem o país real — e lá a
população mostrou-me o estado em que vivia: não tinha roupa e falava-me
de um rio, que era a sua fonte de água mas que já tinham deixado de utilizar
porque achavam que o rio estava poluído de sangue. Porque quando a
RENAMO matava as pessoas lançava-as para aquele rio, e por isso diziam
que aquele rio estava cheio de sangue. Estavam muito furiosas as pessoas.
Estavam vestidas de casca de árvore, as crianças não estavam vestidas. E
então diziam assim: 'como é que nós podemos aceitar que você vá falar com
gente que fez isto?' E foi preciso falar, falar, falar até chegarmos a quase
um convencimento das populações de que era bom, de que era melhor falar
para parar com isso, para que isso não continuasse. Foi um momento muito
emocionante, foi onde consegui mais facilmente convencer as populações de
que era necessário fazer-se o diálogo. Já em Barué foi diferente. Saí dali
convencido de que as populações não estavam satisfeitas com a decisão...
Eles diziam que a RENAMO tinha que largar as armas, e só depois é que
podia haver o diálogo... e eu dizia--Ihes: 'mas como é que eles vão saber
que têm que largar as armas? Alguém tem que lhes dizer...' Agora, no seio
do partido nós trabalhamos em boa coordenação. O que se exigia era que a
RENAMO primeiro aceitasse princípios para que houvesse um diálogo
directo.»
O circo Rowland
A nível regional mexiam-se homens e interesses. Tiny Rowland era o
patrão da Lonrho (London and Rhodesia Mining and Land Co. Ltd) e aliava
interesses poderosos na Africa Austral a uma grande capacidade de mover e
agitar as coisas de cima para baixo.
Rowland, de seu nome de baptismo Roland Walter Fuhrhop, nasce em
Simla, na índia Britânica, no campo de internamento de Belgaun, destinado
a cidadãos de países hostis. Com pai alemão e mãe anglo--holandesa,
Rowland passa parte da adolescência na Alemanha, em Hamburgo, até que,
em 1936, a família volta para Inglaterra. Quando a guerra estala, em 1939, é
outra vez internado juntamente com o pai - de
240 JOGOS AFRICANOS
onde os seus sentimentos fundos e complicados de hostilidade-identidade
em relação à Grã-Bretanha. Para se desenvencilhar do estorvo deste passado
decide mudar de nome e começar do zero. Já em 1948, depois de uma série
de negócios comerciais e industriais não muito ortodoxos mas bem
sucedidos, Tiny Rowland parte para a Rodésia do Sul para fugir ao
socialismo e à austeridade da Inglaterra do pós-guerra. E ali, em pouco
tempo, cresce nos sectores mineiro e agrícola e torna-se, no início dos anos
60, o patrão da Lonrho, transformando-a num grande império financeiro,
industrial e comercial com mais de 100 000 empregados.
O método de Tiny Rowland era insinuar-se: ser primeiro útil, depois
próximo, depois necessário e finalmente indispensável aos chefes de Estado
e aos políticos da região. Compreendera que na Africa neo--independente,
tal como na Europa e nos Estados Unidos do século xix, os negócios - os
grandes negócios - se faziam sempre e só de braço dado com a política. E
percebera o carácter patrimonialista da maioria dos regimes e dos políticos
locais. Tinha exemplos e rivais na República da África do Sul: o grande
império da Anglo-American, capitaneado por Harry Oppenheimer, e o grupo
Rembrandt, de Anton Rupert. Contrariamente a estas famílias - já
establishment, já com a prudência, os modos e os meios dos poderes
instituídos —, Rowland avança com audácia, com autoconfiança, não se
importando muito com os riscos e as perdas. Nem às vezes com o ridículo.
Rowland visita Moçambique pela primeira vez a convite de Machel, em
Janeiro de 1983. Como é normal entre personalidades fortes e singulares e
que exploram o género, os dois homens trocam lisonjas em estilo directo e
aparentemente atrevido: «Este é que é o monstro! Ouvi dizer que você
compra governos e países!», diz Samora a Rowland. Com o seu Grumman
privado no aeroporto de Maputo e uma limousine a levá-lo ao Palácio da
Ponta Vermelha, Rowland não desmerece a expectativa. Um donativo de
milho no valor de quatro milhões de dólares segue imediatamente para
aliviar a fome dos moçambicanos.
Em troca, Machel concedeu a Rowland quatro fazendas com um total de
80 000 hectares. Mas o intuito secreto de Rowland ao abordar Machel
através do jornalista Alves Gomes era evitar a nacionalização do pipeline
Umtali-Beira, que Mugabe preparava em parceria com
A PAZ ROMANA 241
Machel. E teve êxito: Machel não alinhou no negócio com Harare e
Rowland conservou o pipeline.
Em 1989, Rowland vai avançar com outra das suas iniciativas. Como
sempre, lançava a rede, convencendo os líderes locais de que tinha outros
líderes em stand-by para um encontro decisivo com vista a solucionar o
problema, fosse este qual fosse. Nas suas andanças, estabelecera uma boa
relação com Bethwel Kiplagat, o conselheiro especial de política externa do
presidente Arap Moi do Quénia. Moi, sucessor de Kenyata, tinha simpatia
pela RENAMO e os rebeldes moçambicanos recebiam algum apoio discreto
no país, em termos de estadias, passaportes, pequenas ajudas. Kiplagat
iniciara uma série de visitas a Chissano e a Dhlakama. Depois de uma épica
jornada, estivera com o líder da RENAMO na base da Gorongosa para lhe
entregar uma mensagem do presidente moçambicano.
Rowland, através de Alves Gomes, agora presidente da Lonrho em
Moçambique, continuara com Chissano a relação criada com Machel. De
acordo com Kiplagat, Rowland inicia então mais uma das suas maratonas
negociais — desta vez no Gulfstream. Por sua conta e risco, vem a Lisboa
ver Cavaco Silva, visita Pik Botha em Pretória e convence este e o seu
segundo nos Negócios Estrangeiros, o director-geral Rusty Evans, a irem a
Nairobi falar com Moi.
Na época, a guerra de Moçambique saía cara à Lonrho: dois milhões de
libras mensais, gastos sobretudo com a segurança das fazendas e do
oleoduto Beira-Umtali, a cargo de cerca de 3000 homens da DSL (Defense
Services, Ltd). A paz era urgente para Rowland e o milionário convenceu
Kiplagat a arrastar Dhlakama, de visita a Nairobi, até Blantyre, onde o
esperava uma comitiva de ministros do Zimbabué e de Moçambique
liderada por Pascoal Mocumbi, ministro dos Negócios Estrangeiros.
Chegados a Blantyre, Dhlakama escapuliu-se e cruzou a fronteira para
Moçambique. Dizia que não queria nem podia negociar nada sem consultar
os seus comandantes. No fundo também não confiava em John Tembo, o
homem forte do Malawi. O sistema Rowland falhara e os ministros estavam
furibundos depois de nove horas de espera. Tiny atirou as culpas para
Kiplagat, que não soubera segurar Dhlakama.
O jovem guerrilheiro, na sua simplicidade, não se deixara impressionar
pela ostentação dos meios, dos gadgets, dos jactos, dos tapetes encarna242
JOGOS AFRICANOS
dos, dos ministros à espera nas salas VIP... enfim, pelo «Circo Rowland».
Este flop em Blantyre é mais uma estação no corrupio das mediações
fracassadas para Moçambique. Mas vai abrir caminho para a saída.
Mugabe, Arap Moi, os americanos, os sul-africanos, os portugueses, os
bispos, Rowland, circularam entre Nairobi, Blantyre, Pretória, Maputo,
Roma, Munique e Lisboa. Cruzaram-se ministros, presidentes, guerrilheiros,
conselheiros, gente dos serviços, emissários, facilitadores, mediadores.
Aparecem no circuito as primeiras propostas, que os intermediários levam
da FRELIMO para a RENAMO e da RENAMO para a FRELIMO.
Os nós da questão
Mas o seu bom andamento esbarra nas condições prévias que uns e
outros insistem em levantar. Nesta fase de aproximação negocial continua a
não haver nada de novo nem de extraordinário nos pontos de choque ou de
concordância. A FRELIMO quer ser reconhecida previamente pela
RENAMO como governo legítimo de Moçambique e não quer admitir o
movimento de Dhlakama como um igual, como uma força política. A
RENAMO não quer reconhecer a legitimidade da FRELIMO como governo
de Moçambique e quer, por sua vez, ser reconhecida e tratada como uma
força ideológica, um partido político. Procuram-se papéis de síntese, na
sensação de que se está próximo de uma nova etapa.
Mais umas semanas para partir pedra. Em Junho de 1990, D. Mat-teo
Zuppi, de Santo Egídio, volta à carga e explica aos conselheiros de Chissano
- Francisco Madeira e Aguiar Mazula — que a questão da RENAMO, em
termos de segurança, em Africa, é complexa e que se se continuar no puro
âmbito africano vai ser difícil sair do ciclo vicioso. Porque a FRELIMO
desconfia dos quenianos e a RENAMO dos zimbabueanos (e do Malawi que
tem forças em Moçambique ao lado da FRELIMO). E ambos desconfiam
dos sul-africanos. Entretanto, são os próprios Arap Moi e Mugabe a concluir
e a recomendar a Chissano que a única forma de sair do imbróglio é começar
negociações directas entre as duas partes, sem condições prévias.
A PAZ ROMANA 243
É o que vai acontecer. Falta agora um modelo e um lugar aceites pelas
duas partes. E as conexões romanas vão intervir com o homem certo.
Chissano foi conhecendo Zuppi: este é aberto, inteligente, capaz de se pôr
com toda a facilidade na pele dos interlocutores, de perceber os seus medos,
os seus tabus, as suas esperanças, as suas intransigências. E sobretudo, de
perceber as raízes e causas destes sentimentos e fobias, que é a única forma
de lidar com eles. É um homem de Igreja, um homem de oração, despido de
vaidades e de vanglorias, que fala bem com os grandes e pequenos deste
mundo. É transparente, inspira confiança, com a sua cara franca e sorridente,
com o seu português com um sotaque simpático. Dhlakama também sentiu
isso e, acima de tudo, gostou de ser tratado com respeito e com dignidade.
D. Jaime, arcebispo da Beira, em quem os rebeldes confiam, está ali a fazer
o seu trabalho de acompanhamento. Chissano, sensível, também já percebeu
que, se quer a paz, tem de pôr de parte a retórica legalista e arrogante que os
seus duros — esquecidos que já foram também foras-da-lei - querem
introduzir como condição prévia. Ao mesmo tempo, reflecte nas vantagens
de uma negociação paralela, numa obscura paróquia de Roma, sem
governos pelo meio. Evita-lhe o cerimonial dos «reconhecimentos», que
sempre vêm com as negociações formais.
Assim, em 23 de Junho, o Presidente moçambicano comunica ao
embaixador italiano em Maputo que está pronto a mandar para Roma uma
equipa negocial para falar com a RENAMO. Do lado da RENA-MO, Raul
Domingos já pedira formalmente a Zuppi que disponibilizasse Santo Egídio
para lugar das negociações. E vai ser mesmo ali.
Intercessão de Santo Egídio
Santo Egídio é uma paróquia no coração do Trastevere, mesmo ao lado
da belíssima Piazza de Santa Maria, onde fica uma das mais antigas e
harmoniosas basílicas cristãs de Roma. O pároco de Santa Maria, D. Matteo
Zuppi, é também a alma da comunidade de Santo Egídio, uma associação
cristã criada à volta da paróquia, em 1968, e que iria entrar na história de
Moçambique e de África.
244 JOGOS AFRICANOS
Fazendo o meu caminho do Borgo Pio para Santo Egídio, geralmente aos
sábados de manhã, andando até à Piazza Sonnino debaixo daquele sol
romano que faz parecer os dias sempre de Primavera, nunca deixei de me
espantar com a estranha ligação a um longínquo país africano daquele canto
de Roma, com os seus restaurantes acolhedores, do famoso Sabatini às
pizzerie familiares, com as suas lojas de artesanato e de moda, de relógios,
de velharias. Como é que esta espécie de «Canaby Street on Tiber» viera a
ligar-se às matas da Go-rongosa, às praias de Cabo Delgado, às luzes da
baixa de Maputo ao fim de um dia de cacimbo, a gentes de tão longe?
A história é uma boa história. Mas longa. Tentarei contá-la bem e
depressa.
As ligações de Itália com Moçambique eram antigas. Nos anos 60 e 70,
vários quadros da FRELIMO, incluindo Armando Guebuza, tinham vivido
em Itália. O Partido Comunista italiano sempre dera atenção e apoio à
FRELIMO. Marcelino dos Santos fora recebido por Paulo VI com outros
dois dirigentes de movimentos africanos anti-portugueses — Amílcar Cabral
e Agostinho Neto. O arcebispo da Beira, D. Jaime Gonçalves, estudara
Teologia em Roma, no início dos anos 70. Com a independência, dera-se em
Moçambique, como em Angola, uma africanização acelerada da hierarquia
católica. D. Jaime fora feito arcebispo da Beira e D. Alexandre dos Santos
arcebispo de Maputo. Faziam parte dos 33 sacerdotes negros, nascidos em
Moçambique, entre quase 600 padres que oficiavam no país. Numa
população de 12 milhões de habitantes havia então dois milhões de católicos
e um milhão e meio de protestantes.
Para a FRELIMO, que levava muito a sério a ortodoxia marxista--
leninista e consequentemente considerava a religião «o ópio do povo», a
Igreja Católica era ainda «um síndroma do colonialismo» e fora, pelo menos,
«colaboracionista» com as autoridades portuguesas. Assim, e apesar das
atitudes críticas em relação à administração colonial de alguns prelados
católicos - como o bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Rezende, e o bispo
de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto — os novos donos do poder
mostraram-se muito hostis à Igreja Católica: nacionalizaram os seus bens,
expulsaram missionários e exerceram pressão contra os fiéis. Samora
Machel, com o seu jeito
A PAZ ROMANA 245
directo e sem respeitos humanos, chegara mesmo a chamar «macacos» aos
bispos católicos.
Por outro lado, a Itália era, no princípio dos anos 80, um grande doador
para Moçambique, e o PCI, de Enrico Berlinguer, movia importantes
interesses nessa ajuda.
É a partir deste entrelaçado que os dois homens de Santo Egídio -Matteo
Zuppi e Andrea Ricardi - vão tentar responder às inquietações e solicitações
de D. Jaime, abrindo uma linha de contacto e influência com Berlinguer,
Pajetta e outros dirigentes comunistas para que estes pressionassem os seus
correligionários da FRELIMO a mudar de atitude em relação à Igreja.
Berlinguer recebe D. Jaime em 1984 e fica muito admirado ao saber que em
Moçambique é proibido tocar os sinos.
Ajudadas pelas circunstâncias e pelos interesses externos, estas pressões
dos dirigentes comunistas italianos - habituados ao diálogo com os católicos
no seu país — vão levar os seus correligionários moçambicanos a uma
atitude progressivamente mais aberta em relação à Igreja Católica e à
religião em geral.
Mas enquanto foi vivo Samora Machel - que não gostava de D. Jaime e
que o considerava um inimigo e um rival político —, não houve progressos
muito significativos.
Com o seu maior pragmatismo, que não era incompatível com o
leninismo, Chissano dá passos de aproximação à Igreja Católica. Quando
está em Roma, em visita oficial, encontra-se com João Paulo II. A seguir, o
cardeal Etchegaray, presidente da Justiça e Paz, vai a Moçambique com
Zuppi.
Os negociadores
D. Jaime, arcebispo da Beira, está consciente do problema da guerra. É
um ndau, da etnia de Dhlakama, que leva muito a sério o seu ministério e as
suas ligações à terra onde nasceu. Compreende as razões e a parte da razão
dos guerrilheiros. Pensa que a Igreja tem o dever e talvez tenha a
possibilidade de dinamizar o processo de paz. Percebe também que o clima
internacional e nacional está a mudar com a aproximação do fim da Guerra
Fria.
246 JOGOS AFRICANOS
Entretanto, Chissano foi deixando cair para os bispos católicos que não
fará um drama se eles procurarem contactar os guerrilheiros e perceber o
que eles querem. E quando, em Setembro de 1988, João Paulo II visita
Moçambique, fala com Chissano e insiste publicamente na necessidade de
achar «caminhos de reconciliação e de diálogo».
Bem aconselhados por Zuppi, que entendera a psicologia das partes, os
italianos cultivaram igualmente a FRELIMO e a RENAMO, criando junto
desta, gradualmente, um espírito de confiança e de respeito. Graças a este
espírito e vencidas pela necessidade as reservas da FRELIMO, ia ser
possível, quando se iniciava o último tempo da Europa dividida da Guerra
Fria, abrir também os caminhos da paz para Moçambique.
Assim, no dia 1 de Julho de 1989, em pleno estio romano, nas veneráveis
e austeras salas de comunidade de Santo Egídio, encontravam--se pela
primeira vez as delegações da FRELIMO e da RENAMO, lideradas por
Armando Emílio Guebuza e Raul Manuel Domingos.
Guebuza tem 46 anos. Nascera em Murrupula, província de Nam-pula em
1943, filho de Miguel Guebuza, um enfermeiro educado e esforçado. A
família viera para a então Lourenço Marques. Aí Guebuza frequentara o
Liceu Salazar, onde fora contemporâneo de Joaquim Chissano e se
distinguira como dirigente associativo. Aderira à recém--nascida FRELIMO
em 1964. Depois saiu para o exterior, para se juntar à rebelião, passando
algum tempo na Ucrânia e regressando depois ao país para a luta armada.
Fora comissário político e depois ministro do Interior na transição e no
tempo de Machel, adquirindo fama de homem da «linha dura», com o seu
célebre 24/20 (ordem de saída em 24 horas com 20 quilos de bagagem)
aplicado a muitos portugueses. Mais tarde, por funções, estivera também
ligado à organização das aldeias comunais. Mas é inteligente, com formação
e cultura política. E a escola do leninismo, combinada com a experiência,
tornaram-no realista. Chissano nomeia-o para chefe da equipa da FRELIMO
nas negociações, pois sabe que Guebuza lhe vai cobrir a frente ortodoxa do
partido, mas que, sendo poderoso, tendo autoridade e fama de duro, pode ao
mesmo tempo fazer transições e transacções.
O chefe da delegação da RENAMO é Raul Domingos, de 38 anos.
Domingos nascera em Mutarara e fora para a RENAMO em 1980.
A PAZ ROMANA 247
Comandante militar da Zona Sul, foi depois responsável pelas Relações
Exteriores do movimento. Apesar de jovem e sem experiência prévia, tinha
inteligência, à-vontade e sentido de humor — tal como Guebuza - e prática
de combate no terreno. Quando os naparamas, os célebres guerreiros
primitivos armados de armas brancas e convictos da sua invulnerabilidade
às balas, atacavam e lançavam o pânico entre os combatentes da RENAMO,
Raul Domingos - com Dhlakama e outros dirigentes - tiveram de desfazer o
mito. E foram eles que, armados de metralhadoras pesadas e aproveitando
um ataque dos naparamas, os dizimaram com fogo cadenciado e certeiro,
imperturbáveis, demonstrando aos seus homens que as balas afinal matavam
mesmo.
Além dos delegados das duas partes, havia os observadores. As reuniões
iam começar sem mediadores. Os observadores eram Mário Rafaelli, pelo
governo italiano, e Matteo Zuppi e Andrea Ricardi, por Santo Egídio. E D.
Jaime Gonçalves.
Estas negociações vão durar dois anos e três meses e funcionarão em
sessões intermitentes, sempre em Santo Egídio. As conversações começam
bem, apesar das baixas expectativas dos observadores ou talvez por causa
delas. Depois da intervenção de Ricardi, fazendo um estado da situação e
um resumo das questões, Gebuza e Domingos falam em tom de
reconciliação e de respeito pelo adversário, sublinhando a sua natureza de
«irmãos separados». Caíram os adjectivos do tipo «bandidos armados» ou
«governo criminoso», «agentes do apartheid» ou «comunistas assassinos».
Conheço hoje bem Guebuza e Domingos. Guebuza, que tem uma sólida
formação política, é firme e duro como negociador, mas capaz de charme e
sentido de humor. Domingos tem coisas parecidas, é vivo, inteligente,
divertido. E aprendia muito depressa. Lembro-me de, numa das minhas idas
a Roma, meses depois das negociações terem começado, ter convidado o
Raul Domingos e o Vicente Zacarias Ululu para jantar. Cheguei primeiro ao
restaurante e como era um dia de Verão ou de Primavera alta, esperei por
eles na mesa de uma esplanada. Eis que chegam num carro azul-escuro, com
um motorista que se precipita para lhes abrir a porta (o governo italiano
disponibilizara o apoio logístico das comitivas). E o Raul Domingos
impecável, com os seus eternos óculos escuros, com a mão no bolso do
paletó e o à-vontade
248 JOGOS AFRICANOS
de quem levara a vida a sair de carros com motorista para jantar em
restaurantes romanos. E depois, ao jantar, com uma conversa mundana, com
observações e graças oportunas, a discutir e a escolher o vinho, enquanto
Ululu, como bom maconde, falava pouco mas ia ouvindo com muita atenção
e proveito. Não se tratava aqui de uma qualquer renúncia à identidade ou à
causa, de puro fascínio ou deslumbramento perante este outro mundo por
onde agora também se moviam, mas de uma enorme capacidade de
adaptação ao novo campo de batalha em que a farda, o terreno, as armas e a
estratégia eram necessariamente outras.
O Raul foi uma pessoa com quem desenvolvi uma boa relação e tive
muita pena quando Dhlakama entendeu que ele devia ser afastado do
partido, em 2000. Tinha, como já disse, um excelente sentido de humor. A
dada altura a RENAMO resolveu mudar de símbolo e substituir as flechas da
secular luta africana (que lhe davam um certo ar falangista) por uma
simpática perdiz. Nessa altura fui almoçar com o Raul Domingos e o
Joaquim Vaz, o representante da RENAMO em Lisboa, à minha habitual
cantina nos anos 90, a extinta Cervejaria Alemã, na Rua do Alecrim. Havia
um prato de perdiz estufada, e como o Vaz mencionasse a possibilidade de
optar por ela, o Raul, peremptório, decidiu: «A perdiz não pode comer
Coronel! A perdiz é símbolo do partido! Você não pode comer símbolos do
partido! E quase antropofagia!» E ria-se com gosto.
Nas minhas idas a Roma, que nesta época eram regulares também por
causa da UNITA e de Angola, conversava frequentemente com alguns dos
negociadores da RENAMO. Além do Raul e do Vicente, havia o João
Almirante, um jovem tímido e atento, e o José de Castro, que tinha sido
funcionário judicial e era mais ao jeito burocrata. E claro, via o Matteo
Zuppi, bem como os meus interlocutores da Se-greteria di Stato da Santa Sé.
Alguns tinham uma certa reserva em relação a Santo Egídio, que aparecia
aos mais conservadores como suspeita diplomacia paralela, marginal e talvez
também «progressista». Menini era um dos que a princípio se referia a Santo
Egídio com alguma relutância. Estas conversas permitiam-nos ir avaliando
os progressos e os problemas das negociações, e quando era possível e fazia
sentido ajudar a nível da direcção da RENAMO ou tentar sensibilizar
A PAZ ROMANA 249
os governos a que chegávamos para que exercessem pressão no tempo e
sentido certos.
As negociações de Moçambique em Roma contrastaram, quer no estilo
quer no ritmo, com as de Angola em Bicesse. As delegações encontravamse
sempre na presença dos observadores, que acabaram por passar a
mediadores, depois de um período inicial em que ainda se andou à procura
de negociadores oficiais.
Falar e combater
O espírito da primeira sessão, de 8 a 10 de Julho de 1990, fora o de
procurar o que unia e pôr de parte o que dividia. A segunda sessão - em
pleno Ferragosto romano, a partir do dia 13 - fora precedida de um almoço
em tête-à-tête entre Guebuza e Domingos, nos arredores da capital, sob o
cenário dos Colli Albani, em Rocca di Papa. O único encontro a sós, tanto
quanto sei, numa negociação com mais de dois anos.
«Esse encontro foi minha iniciativa», recorda Raul Domingos, «eu falei
com o Matteo Zuppi e disse 'Olha, eu precisava de ter uma conversa, como
cidadãos moçambicanos preocupados com a mesma causa, e queria ter a
sensibilidade do Armando Guebuza, como homem, como cidadão.''Então o
Matteo Zuppi achou muito interessante a ideia: 'Isto é um grande desafio e
quero acreditar que o Guebuza, se recusar este encontro, é um sinal de
fraqueza. E não acredito que o Guebuza queira deixar esse sinal de
fraqueza, é natural que aceite. Mas isto não é perigoso para ti?' Eu não
tinha perguntado nada ao Presidente da RENAMO. Era muito jovem, era
muito ousado, tomava iniciativas... de que não me arrependo hoje. Eu penso
que muitas das minhas iniciativas ajudaram o processo a andar para a
frente.
Guebuza aceitou e almoçámos. Eu até hoje tenho referências das
palavras dele nesse encontro. Recordo-me que ele concordou comigo
quando eu dizia: 'Este processo não é dos americanos, nem dos portugueses,
nem dos ingleses, é moçambicano, e o sucesso destas negociações
é também um sucesso pessoal, meu e teu.' Disse-lhe que seria
250 JOGOS AFRICANOS
um sucesso para Moçambique, para os nossos partidos e nosso sucesso
pessoal. Portanto, que nós nos devíamos empenhar e que devíamos reportar
fielmente às nossas bases os sentimentos e as sensações que nós tínhamos
nestes encontros para encontrarmos as soluções. E ele concordou comigo e
disse uma coisa: 'Olha, eu acredito que um dia estaremos em Moçambique,
e o que estamos a fazer aqui vamos voltar a fazê-lo nos corredores da
Assembleia da República.'
E foi o que veio a acontecer. Várias vezes nos encontrámos na
Assembleia da República, fora do plenário, para buscar soluções de
questões que no plenário não conseguíamos resolver, que eram remetidas às
chefias de bancada. Nessa altura eu era chefe de bancada e ele era chefe de
bancada. De modo que foi este informal que ajudou. Depois tivemos outros
informais, durante as negociações, mas que já incluíam outras pessoas. A
sós foi uma única vez. Das outras vezes ele foi acompanhado com o Madeira
e eu acompanhado com o João Almirante. E conseguimos ultrapassar
muitos tabus nessas sessões.»
Mas na reunião plenária surgiram problemas. Domingos, sem papas na
língua, critica o governo e acusa-o de duplicidade: enquanto Guebuza fala
da paz e acentua a reconciliação em Moçambique, a imprensa mantém o
mesmo tom agressivo e desqualificador da RE-NAMO e, no terreno, as
tropas do Zimbabué estão na ofensiva. A RENAMO continua a pedir um
mediador, parecendo-lhe o modelo caseiro de Santo Egídio pouco formal e
sem garantias.
Guebuza, hábil, justifica as situações: em Moçambique a imprensa agora
é «livre», as ajudas militares não podem ser alteradas pelas negociações e a
mediação está ultrapassada desde que as partes falem directamente. Mas a
RENAMO não está convencida e diz ser indispensável, para continuar a
falar, que as tropas do Zimbabué parem a ofensiva. No Outono, Ricardi e
Zuppi tomam a iniciativa de partir para a África Austral para pressionarem
Chissano e Dhla-kama a alto nível. É preciso manter Roma a funcionar,
ultrapassando a questão das operações militares e acertando os conflitos
inevitáveis que sempre levanta o complexo sistema «fala e combate».
Porque as partes não renunciam, previamente, ao direito de se defenderem.
Os guerrilheiros sabem que a guerra e as armas são o seu
A PAZ ROMANA 251
principal argumento e os governamentais sabem que não podem mostrar
fraqueza.
A FRELIMO concluiu a aprovação de reformas constitucionais. É o
aggiornamento à nova ordem mundial, neste ano de 1990. O Leste da
Europa está assistir ao apagar dos regimes comunistas e a própria URSS
entrou na fase final de desagregação. A linguagem da democracia e do
mercado está presente e patente nos novos textos, e os media internacionais
não param de celebrar o facto e de aplaudir Chissano. A ideia, aqui, é
também esvaziar as reivindicações democratizantes da RENAMO por
antecipação. Que mais querem? Por que lutam?
A iniciativa colhe no exterior, desde os media respeitáveis ao governo
americano e à CEE, mas não resolve o problema. Uma guerrilha com a
implantação da RENAMO, com largas zonas de controlo e interdição ao
adversário e muitos milhares de combatentes, não acaba assim.
Os delegados de Santo Egídio - Zuppi e Ricardi - e os bispos
moçambicanos sabem que assim é - e dizem-no claramente a Chissano, ao
mesmo tempo que pressionam Dhlakama a mandar voltar a sua gente a
Roma, sem condições prévias sobre a ofensiva zimbabue-ana. O líder da
guerrilha vai à capital italiana para estar por perto, embora não participe nas
conversações.
Conversações - Stop and Go!
Em pleno Outono romano, a 9 de Novembro, retomam-se as discussões
em Santo Egídio. A RENAMO já se resignou a não haver Estados como
mediadores oficiais - passando os observadores semanticamente a
mediadores. A questão das tropas do Zimbabué é agora o ponto número um.
A solução apresentada é prática e gradualista e procura ancorar-se na própria
justificação de Harare para a intervenção: garantir o acesso ao mar do
Zimbabué através dos portos de Maputo e da Beira. Para tal, as tropas
zimbabueanas em Moçambique deverão confinar-se, precisamente, aos
«corredores» ao longo das linhas do caminho-de-ferro, corredores com seis
quilómetros demarcados, três para cada lado da via-férrea. Se as tropas
zimbabueanas
252 JOGOS AFRICANOS
não saírem desses «corredores» a RENAMO não as atacará. Nem aos
corredores. O princípio é aceite, e para o pôr em prática cria-se uma
comissão conjunta de verificação, a COMIVE, que inclui representantes das
partes e de oito países.
Os corredores têm um comprimento de 280 km, o de Umtali-Beira, e 550
km, o do Limpopo; e 6 km de largura. O acordo parcial que os regula é
reconhecido e rubricado pelas partes a 1 de Dezembro, bem como outras
disposições relativas à liberdade de actuação da Cruz Vermelha na sua acção
de apoio e ajuda aos refugiados e às populações vítimas da guerra. O
organismo de controle e verificação, o COMIVE, toma posse a 19 de
Dezembro.
As discussões à volta dos «corredores» e do cumprimento dos respectivos
acordos ocupam os primeiros meses de 1991, com uma lista de
violações de que as facções se acusam mutuamente. O que não impede que,
a 6 de Maio, as delegações regressem a Santo Egídio para prosseguir com os
trabalhos de negociação, agora voltada para a agenda política. Apesar dos
progressos conseguidos com os «corredores», que corporizam um cessarfogo
territorial parcial, permanecem divergências de fundo - a FRELIMO
continua a olhar a RENAMO como uma organização rebelde que só pela
força da chantagem das armas e da destabilização conseguira chegar às
negociações. Os rebeldes acham-se mais que legitimados pelo mau governo
da FRELIMO e pela adesão de parte significativa das populações rurais à
sua causa. Mas nos grupos dogmáticos o maniqueísmo acaba por tornar
difícil a renúncia a razões ideológicas tidas como irrenunciáveis por encarnarem
a razão.
O Verão de 1991 é um tempo de impasse em que a disputa anda à volta
do papel constituinte dos acordos de paz. Para a RENAMO, estes devem ser
a base de toda a legislação político-constitucional moçambicana, já que vão
resultar de um diálogo entre governo e oposição, o primeiro na história do
país - logo, fundacional de uma nova ordem política.
Para o partido do governo, os acordos não podem vir pôr em causa a
legislação existente. A FRELIMO conduziu a guerra da independência
contra os portugueses e fundou o Estado moçambicano; os rebeldes entram
nesta história pela violência, pela destabilização e
A PAZ ROMANA 253
pela guerra com apoio exterior. Se é um facto que para acabar com o
conflito é preciso uma conferência de paz, tal não concede aos rebeldes o
direito a uma paridade com a FRELIMO, que se vê como o único poder
legítimo de Moçambique.
A questão da confiança
Neste entre tempo, em Fevereiro de 1991, já tínhamos feito a nossa
aproximação a Dhlakama, em Mombaça. A partir daqui, fora estabelecido
um nexo mais forte de confiança que nos permitia também exercer alguma
influência junto da RENAMO, ajudando nos pontos débeis os seus
dirigentes, moderando-os e esclarecendo alguns dos seus receios
injustificados.
Acima de tudo, procurávamos dar aos guerrilheiros dignidade e
respeitabilidade, responsabilizando-os nessa via: para serem respeitados
tinham de cumprir com aquilo que tinham aceite livremente à mesa das
negociações, parar com a violência contra as populações, limitar a
destruição do património do país que queriam também governar, abster-se
de raptar cidadãos estrangeiros.
Porque a RENAMO sofria de um complexo e de um síndroma de
isolamento — e tinha razões para tal. Não contava com países protectores
africanos ou europeus e a sua imagem internacional continuava a ser muito
má. Apesar das negociações, parecia às vezes que, mesmo para os
mediadores, só o governo de Moçambique estava a proceder bem. O
preconceito contra os rebeldes moçambicanos observava-se também entre os
países anticomunistas da NATO e nos Estados Unidos. Chester Crocker
sempre lhes fora hostil e o seu sucessor na administração George H. Bush,
Herman (Hank) Cohen, seguia-lhe as pisadas.
Os próprios movimentos anticomunistas de guerrilha também pensavam
e agiam assim. A UNITA excluíra expressamente a RENAMO de um
encontro de freedom figbters realizado na Jamba, sob o pretexto de que não
era um «autêntico» movimento de libertação, pois não tomara parte na luta
anticolonial. Nessa época tive conversas com os dirigentes da oposição
angolana e com o próprio Savimbi
254 JOGOS AFRICANOS
no sentido de alterar esta posição. Pelo menos que parassem os actos de
hostilidade. Isso ele garantiu-me que iam parar. E pararam.
Para se avaliar este clima, o cuidado extremo que americanos e sul--
africanos punham em não querer confusões entre a UNITA e a RENAMO e
a distância que Savimbi queria manter em relação aos rebeldes
moçambicanos, conto outro episódio: na fase dos contactos romanos,
Dhlakama deslocou-se uma vez a Genebra. Tratamos-lhe da viagem e
escolhemos-lhe um hotel, da cadeia Nogat, perto do Lago. Dhlakama ficou
ali com dois companheiros. Qual não é o seu espanto quando, nessa tarde,
chega uma enorme delegação da UNITA com Savimbi à frente. E, passado
pouco tempo, voltam todos a sair à pressa.
Ao cabo de várias tentativas, percebi que Savimbi já lá não estava. O que
se passara? Ao saber da presença de Dhlakama, o líder da UNITA terá
ordenado à sua gente que saísse rapidamente do hotel. O líder da RENAMO,
dando-se conta deste episódio, ficou perturbado, magoado e desapontado
com esta atitude, pois habituara-se a ver Savimbi como um Chefe, um irmão
mais velho na luta anticomunista em África.
Entretanto conseguimos abrir algum caminho para Dhlakama em
Portugal, quer a nível da sociedade, quer dos governantes. E também nos
Estados Unidos. Em conversa com Herman Cohen, em Washington, no
Cercle, discutimos Moçambique e contei-lhe alguns aspectos da história da
RENAMO e da personalidade do seu líder. Cohen ouviu com atenção, com
aquele seu ar de Woody Allen, e confidenciou--me que a atitude do governo
americano já estava em mudança, numa linha de maior equilíbrio entre a
oposição e o governo moçambicano, e que ia ter um encontro com
Dhlakama na Europa em que lhe comunicaria o novo approacb.
De Washington voei directamente para Paris, para uma reunião da
UNESCO. Fiquei no Hotel Lutetia e apressei-me a ligar à Carmo Jardim,
que estava na Suíça com Dhlakama, para lhe dar as novidades. A Maria do
Carmo falou com o líder da RENAMO dando-lhe a boa nova: que as coisas
com os americanos iam mudar e que aguardasse com confiança o encontro
com Cohen.
Assim foi. Mais tarde, Dhlakama contar-me-ia que, como Cohen
costumava tratá-lo com displicência e até com alguma rudeza, tinha
A PAZ ROMANA 255
ficado surpreendido com o novo estilo do secretário adjunto para os
Assuntos Africanos:
«Quando começou a dirigir-se-me dando-me o 'Excelência', olhei para o
lado, a ver se estava mais alguém na sala. Mas como não estava, concluí
que era mesmo comigo!»
Havia um novo approach. Mas como fazer progredir agora a agenda
política? Mantinha-se a desconfiança entre as partes, que se mostravam
pouco dispostas a sair daquela espécie de ciclo vicioso em que um não faz
sem que o outro faça, mas também nenhum quer correr o risco de dar o
primeiro passo com medo de perder a face.
No dilema, a RENAMO recusava a legitimidade política do Governo e
este o estatuto de movimento político à RENAMO. Por sugestão de Jeffrey
Davidow, que foi buscar a ideia ao processo angolano, a mediação elaborou
uma espécie de documento prévio extra-agenda a ser subscrito por ambas as
partes que, definindo a qualidade de cada um dos subscritores, criava um
ponto de partida mais seguro para as discussões futuras.
Assim foi elaborado o Preâmbulo, também conhecido por Protocolo I.
«O Governo compromete-se a não agir de forma que contrarie os termos
dos Protocolos que se estabeleçam e a não fazer adoptar leis ou medidas
contrárias ao que neles for acordado e a harmonizar as leis existentes que
eventualmente contrariem os mesmos Acordos.
Por outro lado a RENAMO compromete-se, a partir da entrada em vigor
do cessar-fogo, a não combater pela força das armas as leis em vigor e as
instituições do Estado existente e a conduzir dentro do seu âmbito a própria
luta política bem como o estabelecido no Acordo Geral de Paz».
Guebuza aceitou, com reservas, o Preâmbulo. Raul Domingos pediu para
consultar o Chefe e este não tardou a responder negativamente: pensava que
o documento era favorável à FRELIMO, uma vez que, na sua leitura, a
RENAMO passava a reconhecer o Governo sem contrapartidas.
256 JOGOS AFRICANOS
De novo os mediadores partem de Roma para a África Austral para
convencer o líder desconfiado. As pressões dos governos e dos amigos
chovem no sentido de que o Preâmbulo é equilibrado e não pode deixar de
ser assinado. A 20 de Setembro, em Lilongwe, no Malawi, Zuppi e Ricardi
encontram Dhlakama e convencem-no a assinar - o que acontece.
Aceite o Preâmbulo como garantia recíproca de estatuto negocial das
partes, passa-se à substância política - o protocolo sobre os partidos. A
RENAMO vê-se garantida, pois logo a seguir à assinatura do acordo de paz
poderá iniciar «a sua actividade na qualidade de partido político e com as
prerrogativas previstas na lei».
Uma das maiores preocupações dos guerrilheiros era esta garantia de
passagem, sem demora, de movimento de guerrilha a partido político. Para
isso faltava-lhes tudo - a experiência, os quadros, o dinheiro. A falta de
recursos financeiros vai ser um dos problemas da RENAMO. Nas matas é
possível disfarçar. Na cidade, na vida normal, torna-se terrível a sua falta.
As cores do dinheiro
Quanto à questão dos recursos, procurámos ajudar por várias formas:
algumas empresas portuguesas que tinham interesses e investimentos em
Moçambique custearam o estabelecimento e as despesas correntes da
delegação da RENAMO em Portugal. Rowland, sem dar ponto sem nó mas
generoso, ajudara a família do líder da RENAMO, oferecendo-lhe uma
vivenda nos arredores de Lisboa, onde a mulher, Rosaria, e os seus filhos e
acompanhantes habitaram muitos anos.
Cavaco Silva, então primeiro-ministro, deu conhecimento desta situação
ao Presidente Chissano, que não levantou problemas. Também a DINFO,
discretamente, acompanhou a operação e deu o seu apoio logístico.
Os guerrilheiros de Moçambique, ao contrário dos seus homólogos da
UNITA, tinham as maiores dificuldades com a logística. Não tinham
dinheiro e nem sequer papéis, apenas passaportes de favor do Quénia. E
assim como não tinham fardas, também não tinham roupas
A PAZ ROMANA 257
de cidade. Sem o apoio «secreto» sul-africano, ficaram, em matéria de
recursos, ainda pior.
Os que os ajudámos então, tínhamos a claríssima noção de que o
isolamento e o boicote às suas iniciativas políticas os manteria numa enorme
desconfiança em relação ao mundo exterior, reforçando aquela convicção
dos cercados, dos ostracizados, dos párias, de que só podem sobreviver
enquanto forem perigosos e estiverem sozinhos, longe da civilização. Um
sentimento que começara a desanuviar-se com Roma, mas que
adivinhávamos subjacente nas conversações e sempre pronto a renascer das
cinzas. Embora alguns políticos na Europa e nos Estados Unidos
entendessem esta problemática, os nossos regimes e sistemas continentais -
com as suas leis politicamente correctas, fabricadas e aprovadas por gente
muitas vezes sem sensibilidade ao lado trágico e conflitual do mundo e da
política - acabavam por impedir na prática a solução destas questões.
Lembro-me, a propósito, de João de Deus Pinheiro, então comissário
europeu, me dizer que não podia dar dinheiro nem para partidos políticos
nem para militares. «... Então», disse-lhe eu, «não pode fazer nada
politicamente em Africa, pois ou há democracia e os interlocutores são os
partidos, ou não bá e são os militares.» A única solução era recorrer ao
sector privado uma vez que, no Estado, as entidades com recursos
disponíveis para estas actividades eram os serviços de inteligência que,
mesmo quando entendiam a questão, geralmente não nadavam em recursos e
tinham também as suas «guerras».
No processo de paz de Moçambique, o governo italiano foi disponibilizando
apoios para o alojamento, alimentação e viagens da delegação da
RENAMO e do seu presidente. Por outro lado, a partir do nosso encontro
em Mombaça, oferecemos-lhes assessoria e aconselhamento político e
conseguimos-lhes alguns recursos. Devo dizer que, nesta matéria, Dhlakama
se mostrou sempre uma pessoa grata. Sa-vimbi, a seu modo, também
respeitava e agradecia o apoio e o conselho, mas achava que, sendo o que
fazíamos com certeza da nossa conveniência política, não estariam aí
envolvidos grandes sentimentos. Era um toma lá dá cá com interesses de
parte a parte.
A questão do financiamento dos partidos é capital nas sociedades
democráticas, mas ainda o é mais nas sociedades autocráticas em
258 JOGOS AFRICANOS
transição. Os governos e as organizações internacionais recuam, por repulsa
ou preconceito, sempre que se trata de auxiliar movimentos de oposição
armada, mesmo que seja para os levar à mesa das conversações ou para os
encaminhar para a paz. Não compreendem que, nalguns casos, a ajuda a
estas oposições acaba por reverter também a favor dos governos, abrindo
aos guerrilheiros outra perspectiva de luta que não a guerra.
A beira do caos
Mas se faltavam recursos à RENAMO, também faltavam a todo o povo
de Moçambique. Para responder à caótica situação económico--social
causada pela guerra e pelo regime socialista, entra em execução, em Janeiro
de 1987, o chamado PRE - Programa de Reabilitação Económica do
Governo. Tratava-se de um conjunto de medidas que incluía as habituais
receitas económico-financeiras reformistas. Mas o PRE era ambíguo, ao
procurar acautelar, pelo menos na forma, a ortodoxia socialista das medidas.
A linguagem era de cobertura oficial, baseada em documentos e decisões do
Partido FRELIMO.
Rezava o documento, por exemplo, que a principal causa dos problemas
do país era «o imperialismo que através da RAS impunha a guerra, com o
objectivo de travar os sucessos e os triunfos da revolução».
Mas além do omnipresente «imperialismo» havia também «os erros a
nível micro-ineficiência, indisciplina, improdutividade, deficiência de
controle, corrupção». Ou seja, os culpados eram os suspeitos do costume: o
imperialismo e o nível de execução, uma vez que «o Partido FRELIMO
definira correctamente os caminhos, as prioridades e os objectivos», e os
trabalhadores tinham sido «correctamente mobilizados para as tarefas de
produção» e a classificação da economia tinha permitido «definir sempre as
prioridades, concretizando as directivas do Partido».
Não era unívoca, a nível da direcção do partido, a interpretação e as
expectativas sobre o PRE: havia os que o viam como uma variante da NEP
(Nova Economia Política) soviética, permitindo um regresso,
A PAZ ROMANA 259
mais tarde, passada a conjuntura, ao socialismo puro e duro, e os que o
consideravam o início da liberalização económica e da abertura política.
Tratava-se, na prática e na intenção, de reduzir deficits, sanear contas
públicas, dar prioridade às exportações, flexibilizar salários e preços, e abrir
crédito ao investimento externo e à privatização de empresas públicas.
Por esta altura e em consequência, multiplica-se o número de ONGs e de
cooperantes estrangeiros em Moçambique: são então cerca de 3000, com
salários conjuntos anuais de 150 milhões de dólares, o equivalente aos
salários de 100000 funcionários públicos ou ao valor das exportações em
1991.
A guerra continuou e intensificou-se, e os gastos com as Forças Armadas
(30% do Orçamento Geral do Estado em 1986) passam em 1990 para 40%.
A dependência exterior aumenta e em 1989-1990 o Estado é financiado em
65% pelos donativos exteriores. Quanto à ajuda alimentar, cobria 75% da
oferta cerealífera. Em 1992 — o ano da paz -, Moçambique era o 146.° país
(num total de 160) na lista do índice de Desenvolvimento Humano do
PNUD.
Esta situação de fundo é um motor para acelerar as negociações. É ela,
mais do que as teóricas e bem intencionadas reflexões sobre a superioridade
moral da paz em relação à guerra, que vai levar a FRE-LIMO - sobretudo os
seus elementos mais realistas - a ultrapassar os preconceitos legalistas e as
fórmulas maniqueístas sobre o seu direito e a perversidade dos seus
inimigos.
E assim se entra, em 1992, nas questões políticas substanciais: organização
dos partidos políticos, lei eleitoral, questões constitucionais. O
modelo de discussão e solução vai-se normalizando: à partida, há
geralmente um choque de posições de princípio, com Guebuza mais
autoritário e peremptório e Domingos recalcitrante e desconfiado. Sempre
latente está o conflito dialéctico entre o conceito de uma ordem existente,
que o governo quer adaptar às negociações e ao seu resultado, e o princípio
da RENAMO, que considera o status quo ilegítimo e quer construir a partir
da estaca zero. Ainda que às vezes Dhlakama seja chamado para esclarecer e
decidir pela RENAMO, os dois chefes negociais vão resolvendo e
arrumando as conclusões em protocolos de entendimento.
260 JOGOS AFRICANOS
À medida que os meses correm, cresce também a ansiedade dos
moçambicanos e a pressão internacional para que se conclua o processo. Na
verdade, a FRELIMO parece ter mais pressa que a RENAMO, o que é
normal: é a FRELIMO que tem o país, que legalmente governa, no caos. Os
guerrilheiros querem também a paz, mas até ao dia em que a guerra acabar e
depuserem as armas têm que ter garantias - de liberdade, de segurança e de
organização como partido político. Porque as armas são o seu único meio de
pressão a substituir por garantias internas e sobretudo externas. Dhlakama
insiste neste ponto — quer os países importantes no barco das negociações.
Assim, entram para observadores os Estados Unidos, a França, a Grã-
Bretanha, Portugal e as Nações Unidas. Isto dá-se a 10 de Junho de 1992.
Nesta altura crescem as delegações -15 para o Governo, 11 para a
RENAMO. Nessa sessão de 10 de Junho, Guebuza insiste na urgência de
avançar com as questões militares, tema em que os «técnicos» americanos,
ingleses e italianos já partiram muita pedra. Quer-se um exército único, com
participação igual das duas partes. A FRELIMO quer 50.000 homens, a
RENAMO 15 000. Ficará próximo dos 20 000. Explica o general Chipande:
«O exército acabou por ficar mais pequeno do que o que se esperava,
mas a integração do pessoal militar foi mais fácil do que a dos políticos...
Foi mais fácil os militares compreenderem por causa da caserna. 24 sobre
24 horas de caserna. Enquanto os políticos estão ali e depois cada um vai
na sua vida, cada um para casa dele, lá na povoação dele, vai na cerimónia
e depois vai para a casa, os militares não, estão a discutir, decidem mas
estão a implementar, 24 sobre 24 horas, na caserna.»
Mas as negociações por vezes arrastam-se em longas discussões
circulares e bizantinas à volta de incidentes vários, como os ocorridos nos
«corredores humanitários». A medida que as coisas se aproximam do
desfecho, tudo parece estar em risco - ressuscitam arrogâncias, medos e
desconfianças de parte a parte que ameaçam pôr todo o processo em cheque.
Com a RENAMO fomos conseguindo resolver vários problemas. Mas, a
dada altura, é a FRELIMO que, perante as exigências constituintes da
RENAMO, ameaça bloquear as negociaA
PAZ ROMANA 261
ções, invocando que afinal são eles, FRELIMO, os fundadores do país e os
homens da independência, que os seus interlocutores não passam de uns
rebeldes apoiados pelos párias do apartheid e que a igualdade moral e
jurídica entre as duas partes está fora de questão.
Por estes tempos - e por estas razões —, eu conversava regularmente
com o António Dias da Cunha, líder do Grupo Entreposto, um grupo
económico com vastos interesses em Moçambique. O António era um
homem politicamente à esquerda, próximo de Mário Soares e do PS, e com
uma longa relação e fácil aproximação a Chissano e à FRELIMO. Mas o
nosso entendimento, baseado no respeito mútuo, na franqueza e na vontade
de resolver o problema, era bom. Comentávamos os novos obstáculos
surgidos quando eu, perdendo alguma compostura e correcção linguística,
desabafei uns impropérios sobre a cegueira dos que sacrificavam à letra da
lei e ao quererem «ficar por cima» o sucesso de uma negociação tão difícil
de levar até ali. Uma negociação que, se não fosse concluída, transformaria
Moçambique numa terra queimada, numa terra de ninguém, fragmentada
por uma guerra de todos contra todos.
Aí, muito a sério, Dias da Cunha disse-me: «Oh Jaime, importa-se de
repetir o que acaba de me dizer ao Jacinto Veloso?» « Olhe, António, desde
que seja útil para resolver as coisas, já falo com quase toda a gente. Falo
com certeza!» «E importa-se de ir ter com ele ao Ritz?» «Não. Pouco me
importam as minhas importâncias quando estão em questão coisas
verdadeiramente importantes! Se acha útil...»
E assim foi. Marcou-se a reunião e fui ter com Jacinto Veloso ao Ritz.
Começou a conversar, com alguma reserva, e eu fiz-lhe o seguinte discurso:
«Senhor Ministro, tanto quanto eu posso avaliar de fora, mas com algum
conhecimento da causa, Moçambique está um caos, e para a economia de
Moçambique se levantar é preciso investimento externo. Ora, depois que
acabou a URSS e a Guerra Fria, os investimentos e as empresas ou são dos
seus donos, que os administram, ou são sociedades anónimas dirigidas por
gestores responsáveis perante os seus accionistas. Quando o Senhor e os
outros ministros de Moçambique os receberam para lhes mostrarem os
vossos códigos 'business friendly',
262 JOGOS AFRICANOS
as vossas leis, as 'boas políticas' do PRE, eles vão ouvi-los educadamente.
Mas no fim vão dizer assim: 'Olhem lá, mas vocês não têm cá uns tipos, uns
guerrilheiros, que atacam as estradas, rebentam os comboios, não deixam a
vida seguir normalmente? Que lhes aconteceu?' Se o Senhor lhes disser: 'Já
os matámos e prendemos a todos, são história!' ou 'Já fizemos as pazes com
eles, estão no Parlamento e amanhã até podem entrar aqui no Governo,
está tudo sob controle!' então passa à fase seguinte da conversa — a mais
interessante sobre projectos e dinheiros! Mas se lhes disser: 'Sabe, eles
são péssimos, trabalham para o apartheid, fizeram coisas horríveis... E
vamos com a vossa ajuda, acabar com eles. E só uma questão de tempo.' Aí
eles dizem-lhe: 'Pois bem, quando tiver acabado com eles — matando-os,
negociando, integrando-os ou dando-lhes algum poder —, voltaremos a
falar. Até lá... Passem muito bem!'
Quando eu acabei, Jacinto Veloso olhou-me e disse: «Interessante!
~Nunca ninguém me tinha posto o problema assim!»
E despedimo-nos. Depois disto Veloso voltou a cruzar-se comigo várias
vezes, e sempre me sublinhou a importância daquele nosso encontro para o
desfecho das coisas.
Corrida final
Em pleno Verão romano e perante os obstáculos surgidos, há outra vez
pressões para um encontro ao mais alto nível entre Chissano e Dhlakama, o
que em culturas tradicionais como as africanas em que o Chefe manda
efectivamente e a delegação de poderes é complicada, fazia todo o sentido.
O animador deste encontro vai ser Robert Mugabe, que em 4 de Julho se
tinha encontrado com Dhlakama em Gaberone, no Botswana.
Mugabe parece gostar de Dhlakama pessoalmente e propõe-se fazê-lo
encontrar-se com Chissano. O encontro dá-se em Roma, com uma agenda
preparada por Mocumbi, ministro dos Estrangeiros de Moçambique, e por
Domingos, pela RENAMO. Dhlakama cede ao calendário do governo e
compromete-se a aceitar uma data limite - 1 de Outubro desse ano de 1992
— para a assinatura do Acordo Geral
A PAZ ROMANA 263
de Paz. Chissano, em troca, aceita as mudanças na Constituição que a
RENAMO reclama, como o desaparecimento de vários artigos
constitucionais que partidarizam o Estado moçambicano. A declaração
conjunta é assinada a 7 de Agosto. Recorda Dhlakama:
«Depois de vários contactos indirectos, a minha primeira conversa
pessoal com Joaquim Chissano foi no dia 4 de Agosto de 92, num hotel, em
Roma.
A conversa foi preparada e mediada por Robert Mugabe, que era nessa
época uma pessoa com créditos. Começámos a conversar a seguir ao jantar
e estivemos juntos durante toda a noite. Quando amanheceu já éramos
amigos! Já riamos e tudo!
No início da conversa o presidente Chissano perguntou-me: 'porque é
que o Senhor está a fazer a guerra?' Ao que eu respondi: 'forque é que o
Senhor é comunista?' Depois desse começo, um pouco duro mas aberto,
começámos a entender-nos muito bem, e hoje posso afirmar que se as
negociações tivessem sido feitas directamente por nós os dois, ao invés de
termos enviado representantes, teriam sido muito mais rápidas e fáceis.»
O presidente Joaquim Chissano também se lembra bem deste 4 de
Agosto em Roma:
«Estava lá o Mugabe. O Dhlakama foi trazido para Roma pelo Tiny
Rowland. Então o Tiny Rowland entrou com ele na suite do hotel onde
estávamos e apresentou-o ao Mugabe. O Mugabe aperta--Ihe a mão,
cumprimenta-o e apresenta-mo. Lembro-me de lhe perguntar antes lhe
apertar a mão: 'Você quer a paz?' E ele, surpreendido por eu começar
assim, sem mais, a conversação, fez uma pausa e depois respondeu com
firmeza: 'Sim, quero a paz.' Então eu disse-lhe: Aqui tens a paz.' E foi assim
que eu apertei a mão dele. Ele sentou-se e determinámos ali que iríamos
conversar sobre os impasses que existiam. Tratava-se de ver quando é que
iríamos concluirás negociações. E pronto, tudo correu bem e combinámos
que nos íamos encontrar com os mediadores.
Os contactos que eu tinha tinham-me dado a conhecer que Dhlakama
era um homem capaz, alguém com quem se podia falar, dialogar
politicamente. Eu estava convencido disso. E creio que foi em respos264
JOGOS AFRICANOS
ta à Melissa Wells, embaixadora dos Estados Unidos, que eu uma vez disse:
'Eu nunca tive dúvida de que o Dhlakama fosse um homem capaz, porque
eu estaria envergonhado se estivesse a combater com um estúpido!...'
Portanto estava a combater com alguém que eu tomava a sério, que tinha
que ser tomado a sério, alguém que era um adversário — um inimigo, nessa
altura — que nunca desprezámos nem menosprezámos. Esse encontro em
Roma foi em Agosto quando ainda havia muitos impasses e foi
importante...»
Mas na declaração conjunta assinada a 7 de Agosto restavam ainda
alguns pontos quentes e difíceis, como os Serviços Secretos, a composição
do exército e sua denominação, a estrutura do comando da polícia e a
administração dos territórios sob controle da guerrilha no período préeleitoral.
Por isso as semanas finais vão ser uma maratona para cumprir o prazo e
assinar a 1 de Outubro. Consegue-se concordância de princípio sobre os
efectivos militares e seu recrutamento. Mais complicada é a questão da
Segurança do Estado, que entretanto mudara de nome, passando de SNASP
a SISE: Dhlakama quer o seu completo desmantelamento, Chissano opõe-se.
Também não há acordo sobre a administração temporária das zonas
controladas pela guerrilha, mas, para a polícia, parece viável uma solução
mista integrando elementos da RENAMO na estrutura.
Perante estas incertezas e a pressão dos mediadores, Chissano e
Dhlakama voltam a encontrar-se, desta vez em Gaborone, no Botswana, a
18 e 19 de Setembro. E aqui há compromisso, embora baseado num
adiamento das questões de fundo:
«Voltámos a encontrar-nos em Gaborone, no Botswana, em Setembro»,
diz Dlhakama, «e aí já nos considerávamos verdadeiramente irmãos.
Mas o que a RENAMO queria e eles negaram sempre era um governo
provisório, de transição, para preparar as eleições. Houve uma grande
vontade da RENAMO para aceitar as condições dos Acordos Gerais de Paz,
que não eram as melhores para nós. Nessa época, alguns dos meus generais
perguntavam-se porque é que, em vez de estarmos a negociar a paz com os
vencidos, não preparávamos uma invasão de Maputo e pronto, acabávamos
com eles e ficávamos a governar para
A PAZ ROMANA 265
instaurarmos a democracia e os direitos humanos. Eu dizia-lhe que não,
que o objectivo da nossa luta não era conseguir o poder pelo poder, mas
sim por ideias, para que Moçambique se tornasse um país livre,
democrático, com respeito pelos direitos humanos e com um sistema de
economia de mercado.
Dizia-lhes também que, por causa da propaganda da FRELIMO, que nos
chamava 'bandidos armados', amigos do Smith e do apartheid, e por causa
da falta de apoios internacionais, uma invasão da capital poderia ser muito
mal entendida.»
Embora com uma linguagem simpática de recomendações sobre a sua
gestão com critérios dignos de uma ONG de protecção a idosos, o SISE
mantém-se. Há despartidarização e reestruturação da polícia civil, com
garantia de participação de pessoal da RENAMO e a promessa de uma
comissão de verificação para estes organismos. Estabelece-se finalmente o
número de efectivos do exército (30 000 militares), mas não há referência à
administração das zonas da RENAMO.
A ideia que fica é a de que Chissano fez prevalecer os seus pontos de
vista e Dhlakama não parece muito satisfeito. Mas depois de algumas
hesitações, reafirma-se a data de 1 de Outubro para a solene assinatura do
Acordo de Paz. Contudo, nas vésperas da assinatura as coisas parecem outra
vez tremidas. Dhlakama escreve aos mediadores solicitando e justificando
mais alguns dias de espera: precisa de esclarecimentos e garantias. A carta é
recebida a 28 de Setembro, mas Ra-ffaelli, Zuppi, Ricardi e Gonçalves são
intransigentes, pedindo ao líder rebelde que de qualquer modo esteja «em
Roma até 1 de Outubro».
O chefe da RENAMO acaba por aceitar. Chega a Roma a 1 de Outubro
no avião de Tiny Rowland. Chissano já lá está.
No sábado, 3 de Outubro, no meio dos primeiros resultados das eleições
angolanas e da preocupação de tirar rapidamente Savimbi de Luanda para o
Huambo, voo para Roma, com a Zezinha. A Maria do Carmo Jardim já lá
está com uma irmã, a Leonor.
As notícias são que Dhlakama não quer assinar, pois não vê no quadro de
direitos e garantias para o período de transição nada sobre o financiamento à
RENAMO, que vai ter de sair das matas e
266 JOGOS AFRICANOS
transformar-se em partido político. Outras questões do SISE e da polícia já
tinham sido entretanto resolvidas. A administração das zonas caberá ao
governo central, mas os seus delegados, em princípio, serão da RENAMO.
Explicámos a Dhlakama que não era possível, num documento oficial,
explicitar o financiamento da RENAMO, mas que, nesta altura, ele não
podia deixar de assinar sob pena de ser apontado como o mau da fita.
Aceita, contrariado, mas realisticamente.
Dão-se os últimos retoques nos discursos e a Carmo Jardim escolhe o
fato e a gravata de Dhlakama e o vestido da Rosaria para a cerimónia. A 4
de Outubro, um domingo de sol das famosas Otobrine, Roma está em festa
também por Moçambique.
Lembra Raul Domingos:
«Quando nós tivemos conhecimento de que nos podíamos encontrar
finalmente frente a frente com uma delegação da FRELIMO, o nosso
sentimento foi um sentimento de vitória, porque durante muitos e muitos
anos de luta não se vislumbrava a possibilidade de chegar ao fim. Com a
agravante de que praticamente todo o mundo estava contra nós. A América,
que devia estar do nosso lado, estava contra nós... E depois, com todo
aquele desfile de americanos com o relatório Gersony, o relatório Minter,
tudo isso parecia o fim da RENAMO.
De um momento para o outro, há uma luz ao fundo do túnel, começam os
contactos no Quénia que levam ao encontro directo em Roma. Quando esse
encontro se deu houve de facto esse sentimento de vitória: finalmente
conseguimos! E aí começaram todas as negociações que levaram dois anos.
Foi preciso encontrar uma agenda que acomodasse todas as preocupações e
que levasse a um acordo que se pode dizer que foi um bom acordo. Custou,
muita gente achava que nós íamos perder o comboio porque estávamos a
atrasar, porque Angola já tinha conseguido o acordo de Bicesse e porque o
mundo nos ia esquecer. Mas contrariamente a todas as expectativas nós
conseguimos um acordo duradouro. Já lá vão 16 anos.
Também porque, ao contrário de Angola, não havia interesses de
grandes potências implicados na mediação, foi uma negociação quase que
privada mas sem interesses, uma mediação, vamos lá, descomA
PAZ ROMANA 267
prometida. No caso de Moçambique o único interesse do mediador era a
paz. E isso faz a diferença.»
E os sinos tocam em Roma por Moçambique, bem alegres na manhã
desse 4 de Outubro.
Nós estamos também contentes e sobretudo aliviados. E fomos almoçar,
ali mesmo, numa pizzeria do Borgo Pio.


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