Qualquer observador atento ficaria deveras surpreendido
pelo teor do recente comunicado emitido pelo Conselho Superior do Ministério Público
referente à reunião tida por este órgão em 28 de Maio de 2019, no Lubango.
Depois de anunciar as várias movimentações no corpo de advogados do Estado, o
comunicado contém dois parágrafos inesperados.
Afirma-se o seguinte:
“O Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público tomou conhecimento, com preocupação, da atitude inadequada e desconfortável que se assiste no Instituto Nacional de Estudos Judiciários (INEJ), no que diz respeito à formação, formadores e formandos do Ministério Público.”
Mais abaixo adianta ainda:
”(…) os membros do Conselho Superior manifestaram-se ainda, igualmente, preocupados com atitudes assumidas pelo Tribunal Supremo, que tendem a prejudicar o princípio constitucional do paralelismo e equiparação das Magistraturas Judicial e do Ministério Público.”
Estes dois parágrafos denunciam dois factos essenciais: a
mediocridade da formação que está a ser dada aos futuros procuradores no INEJ,
sendo que possivelmente serão rebaixados face aos colegas futuros juízes, e a
discriminação negativa que ocorrerá no Tribunal Supremo relativamente aos
magistrados do Ministério Público.
Em síntese, o Conselho denuncia um descuido e
impreparação na educação dos procuradores e uma desconsideração nas suas
carreiras face aos juízes.
Estas afirmações levam-nos a tecer três comentários que,
embora pareçam antagónicos, são de alguma forma complementares.
O primeiro comentário, como já foi dito, é de surpresa.
Todos nós defendemos a necessidade de transparência nos actos da comunidade
política em Angola. Contudo, como bem tem anotado o filósofo coreano-germânico Byung-Chul
Han, a sociedade da transparência transforma-se por vezes em sociedade
pornográfica, em que nada é reservado, nada é privado, tudo fica
sujeito ao domínio do voyeurismo.
Este é um caso típico. Instituições como a Magistratura Judicial e do
Ministério Público são fundamentais para o estabelecimento do Estado
Democrático de Direito e têm de merecer a confiança pública. Entrarem em
“bulha” com esta publicidade não contribui em nada para essa confiança pública
e desacredita-as. Parece que a formação do Ministério Público está tão caótica
e a sua carreira tão desprezada, que não restou ao seu Conselho alternativa a denunciar
a todos essa situação. Naturalmente, nenhum ministro da Justiça poderá ocupar o
cargo e permanecer silencioso perante esta degradação. A demissão do ministro
da Justiça, Francisco Manuel Monteiro de Queiroz, será o primeiro passo, mas
não o único, para resolver os problemas da degradação da formação e carreira do
Ministério Público. E obviamente, está também em causa o procurador-geral Hélder
Fernando Pitta Groz.
O segundo comentário que este comunicado sugere é de
confirmação. Já se tinha percebido, pela análise de vários comportamentos e
intervenções de procuradores do Ministério Público, que a sua formação era
muito incipiente. Os erros legais são abundantes, os atropelos formais
constantes, a sobreposição do político ao jurídico quase permanente. É evidente
que não podemos, como nos ensina a mitologia clássica grega, “tomar a nuvem por
Juno”, ou seja, concluir que todos os procuradores não têm formação suficiente para
exercer as suas funções. O que concluímos e agora confirmamos é que existe um
número assinalável de procuradores mal preparados, que tiveram uma formação
deficiente. Necessariamente, essa educação inadequada é um obstáculo ao
verdadeiro desenvolvimento do Estado de Direito.
Assim, e em terceiro lugar, chegamos à necessidade de
reforma da formação, estrutura e carreira do Ministério Público. O modelo
angolano de Ministério Público que torna este corpo de advogados quase
equiparado aos juízes e com carreiras paralelas foi inspirado no modelo
português resultante da Revolução de 25 de Abril de 1974. Por sua vez, o
legislador português estribou-se na experiência da República Federal da
Alemanha. O que se buscava num caso e noutro casos, depois das experiências
ditatoriais de Hitler e Salazar, era encontrar uma fórmula que não tornasse o
corpo de advogados do Estado, especialmente responsáveis pelas acusações
criminais, num mero instrumento do poder político. Com esse objectivo, foi
concebido um Ministério Público equivalente à magistratura judicial, de forma a
beneficiar tanto quanto possível das mesmas garantias, autonomias, imunidades e
preparação. Em Portugal, a formação é parcialmente conjunta no CEJ (Centro de
Estudos Judiciários) e foi estabelecido um certo paralelismo legal entre as
magistraturas. Embora, na verdade, a Constituição portuguesa tenha sido
razoavelmente omissa e cautelosa sobre o papel do Ministério Público, a
legislação e a prática encarregaram-se de criar um M.P. demasiado equiparado à
judicatura em Portugal. Temos muitas dúvidas se este modelo é o melhor para
Portugal, e temos a certeza de que não é o melhor para Angola.
As circunstâncias concretas da história angolana e a
presente tentativa de transição para a democracia impõem que se evitem áreas
difusas e confusas. Ora, uma área difusa e confusa na justiça é precisamente
esta da equiparação dos procuradores aos juízes e do paralelismo entre ambos.
Os juízes não são procuradores, e os procuradores não são juízes, e as suas
funções são diametralmente diferentes: uns acusam possíveis criminosos e
defendem o Estado, outros decidem com imparcialidade e equilíbrio. Não deviam
ser misturados, nem ter formações idênticas, pois estarão sempre em diferentes
perspectivas.
Assim, talvez, afinal, o comunicado do Conselho Superior do Ministério Público tenha a vantagem de nos fazer reflectir sobre a necessidade de separar bem e claramente as formações e as carreiras de juízes e procuradores, criando um sistema em que ambos se sintam satisfeitos. A escola dos juízes deve ser diferente da escola dos procuradores, e o seu futuro profissional também. Os procuradores não devem ser vistos como quase-juízes, nem exercer funções judiciais, como decretar prisões preventivas… Cada um deve fazer o que lhe compete. Em conclusão, aproveite-se o mal-estar óbvio que reina entre juízes e procuradores para rever a sua formação e carreira, desenhando um sistema mais eficiente e adequado às necessidades de Angola.