domingo, 23 de junho de 2019

Quem desgoverna o mundo?

Quem desgoverna o mundo?


O globalismo mudou tão profundamente a ordem internacional, que a questão de saber quem governa o mundo, embora tendo enriquecido a semântica, não conseguiu uma resposta que, pelo menos, contribua para recuperar uma visão esclarecida dos conflitos entre os contestatários da mudança e os que aceitam a necessidade de identificar os titulares dos novos poderes, sobretudo dos protegidos pela invisibilidade. O influente Bertrand Badie, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), advertiu que "frequentemente se esquece que a mundialização foi tão eficaz no suscitar mobilizações contestatárias como para apreciar articulações de poderes".
Não é surpreendente que os EUA, sobretudo considerando-se "a casa no alto da colina", tenham inspirado formas de intervenção na nova circunstância que lhes salvaguardassem a posição diretiva que a Segunda Guerra Mundial tinha consolidado: mas talvez também tenha contribuído mais para a semântica da diplomacia seguida do que para a clareza do conhecimento da nova ordem. A crença no liberalismo económico, na sua versão, não desapareceu do eixo da roda do seu conceito estratégico, mas isso foi acompanhado da experimentação de outros procedimentos internacionais, tentando limitar o exercício do que chamou hard power, e batizando uma nova atitude, de conteúdo ambíguo, que seria o chamado soft power.
Intervenções militares, pouco felizes do hard power e outras chamadas soft power,que parecem ter sido apoiadas apenas pela sensibilidade de Obama, e agora visivelmente desconsideradas depois do fim do seu mandato, levaram a campanha do pensamento democrático de Hillary Clinton a assumir a designação, com pretensões de fusão das duas antes referidas perceções, de smart power, que o resultado da eleição não lhe permitiu desenvolver em exercício. A perda, o que parece ter conseguido trazer para a observação, foi a questão de saber quem desgoverna o mundo, violando a antiga ordem sem contribuir para a estruturação de uma nova esperança, enquanto os populismos se multiplicam no domínio dos protestos, e de regra carentes de liderança e projeto alternativo, mas unidos pela ineficácia ou destruição dos poderes da velha ordem internacional e nacional em acentuado outono abrangente de vários regiões e poderes ocidentais.
Esta situação de visibilidade excessivamente diminuída é agravada sempre que poderes políticos que foram, e lutam por continuar, proeminentes são os que decidem adotar a ação solitária, desconsiderando a crescente perceção de que as interdependências inovadoras e validadas só podem ser reconhecidas como governança em regime de cooperação. A intervenção atual do poder político americano é difícil de adjetivar entre o hard power, o soft power e o smart power porque se traduz em "lembranças "que ocorrem ao decisor em funções. O drama da Palestina, que, pelas suas dificuldades, foi o único caso em que no processo da descolonização a Grã-Bretanha desistiu, "lembrou" ao dirigente americano colocar a embaixada do seu país em Jerusalém, ignorando o que a cidade representa para a pluralidade das crenças, e a intervenção da ONU, até agora ineficaz, mas conciliadora.
É na mesma linha que lhe "ocorreu" oferecer o Golã a Netanyahu, terra ocupada em 1967 na guerra entre Israel contra o Egito, a Jordânia e a Síria. De novo a ONU - que condenara a anexação de 1981 e assumira a vigilância de uma zona desmilitarizada, entre a Síria e Israel - é desafiada pelo unilateralismo americano que tende para a "eucracia". Era de esperar que o primeiro-ministro de Israel se dirigisse ao presidente dos EUA, agradecendo e afirmando "vós fizeste história".
O Conselho de Segurança talvez possa, pelo menos, reunir-se para meditar sobre a nova intervenção deste seu membro com direito a veto e obrigação de obedecer à Carta da ONU, cujo êxito poderá servir de precedente para outras iniciativas, como tem sido a da Crimeia, fazendo crescer a evidência sobre a progressiva incapacidade de conseguir dominar a anarquia da governança do globalismo.
O silêncio do Conselho de Segurança não o beneficia por ficar em observação, para registar mas não para decidir, talvez tendo esquecido a decisão com que travara a iniciativa de dois membros com direito de veto quando estes, a França e a Inglaterra, quiseram impedir a decisão do Egito de Nasser quanto à nacionalização do Suez. Ainda estávamos num período de esperança de conseguir estruturar a governança do globalismo que crescia, mas agora, para inquietação dos povos, fica-se a saber mais sobre quem o desgoverna.

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