Foi a “mais dolorosa derrota da carreira de Erdogan”, escreve um jornal turco. O regime não mudará. Mas nada ficará na mesma, porque a oposição ameaça a hegemonia do AKP.
O Presidente Tayyip Erdogan inventou outrora uma máxima política: “Quem ganhar Istambul, ganhará a Turquia.” Foi ao conquistar o município de Istambul, em 1994, que iniciou a sua longa marcha até ao poder. O reverso será logicamente duvidoso: “Quem perder Istambul, perderá a Turquia.” Mas é um sério motivo de reflexão para Erdogan. Ele “nacionalizou” umas eleições que até Março eram municipais e, depois, passaram a ter uma repercussão nacional.
O candidato da oposição, Ekrem Imamoglu, venceu as eleições de Istambul, no dia 31 de Março, com 0,2% de vantagem. O Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, no poder) contestou o voto e a Comissão Eleitoral anulou-o, a pretexto de irregularidades formais. No domingo, Imamoglu derrotou o seu concorrente do AKP de forma categórica: 54% contra 45%, entre mais de oito milhões de eleitores. Imamoglu teve contra si quase todos os mediaturcos, controlados pelo governo e, nas últimas semanas, foi objecto de uma “guerra suja” que se voltou contra o AKP.
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Se não houvesse anulação, Imamoglu seria um autarca frágil, cuja legitimidade seria contestada. Hoje, é a estrela ascendente da política turca, apontado como um futuro rival de Erdogan. Em Março, o AKP também perdeu Ancara, a capital, e grandes cidades que representam 70% da economia turca.
Mas Istambul é especial, pelo seu papel na História turca – não falo já na História antiga – e por ser uma metrópole de 16 milhões de habitantes. Tem para o AKP outro significado: o financiamento partidário. O município, com um orçamento milionário, gere dezenas de empresas que, dizem analistas, sustentam uma imensa rede clientelar. “A cidade financia a política”, resume o jornalista turco Asli Aydintasbas.
Pode o AKP ser derrotado?
Estas eleições trouxeram uma novidade. Imamoglu pertence ao Partido Republicano do Povo (HCP), de Kemal Kiliçdaroglu, uma histórica formação laicista e de esquerda. Pertencer à “ala moderada” do partido e ser um muçulmano praticante fizeram dele o candidato ideal. O HCP concorreu aliado aos centristas do Bom Partido (IyI), de Meral Aksener, antiga dirigente republicana. A coligação foi apoiada pelo pró-curdo Partido Democrático do Povo (DEHAP), que poderá vir a integrá-la.
O HCP tem-se revelado incapaz de atrair mais do que 25% do eleitorado. O AKP tira partido da dispersão da oposição. A “unidade” exibida em Istambul pode mudar o tabuleiro eleitoral, mostrando que a hegemonia do AKP não é necessariamente eterna.
Ao contrário, a anulação das eleições de Istambul, teve um efeito negativo no AKP. O ex-Presidente Abdullah Gül, um dos fundadores do AKP, condenou publicamente a decisão. O ex-primeiro-ministro Ahmet Davutoglu criticou pessoalmente Erdogan. Outra figura em destaque é Ali Babacan, antigo ministro da Economia. Especula-se sobre a criação de um movimento alternativo ao AKP.
Erdogan enfrenta problemas graves, sobretudo na frente económica. As eleições de 23 de Junho podem fazer precipitar algumas mudanças, a começar por uma remodelação governamental. Mas ninguém admite, a médio prazo, uma mudança do regime. Erdogan impôs um regime super-presidencialista e mantém uma pesada máquina de repressão. Mais de 1400 títulos da imprensa ou do audiovisual foram fechados; foram dissolvidas cerca de 1400 instituições da sociedade civil; dezenas de jornalistas continuam presos; foram demitidos 130 mil funcionários públicos. A separação dos poderes é uma ficção: o governo controla a Justiça e o parlamento foi esvaziado.
O antigo grande diário turco, Hurriyet, depois de uma insuportável perseguição, foi vendido a um empresário pró-governamental. É uma sombra do que foi. Mesmo assim, escrevia ontem em editorial que “Erdogan sofreu uma das mais dolorosas derrotas da sua longa carreira política.” Porquê? Porque disse: “Quem ganhar Istambul, ganhará a Turquia.” Considera que o 23 de Junho abre “uma nova era”. Não se sabe qual. Mas dizer que “nada ficará como dantes já não é um exagero”
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