Na primeira investigação sobre o Hospital Provincial do Kuando-Kubango, um “comedouro” das empresas dos dirigentes locais, destacámos a participação do procurador junto do SIC. Hoje, é a vez do director provincial do SIC, Miguel Arcanjo Sumbo, que também tem uma empresa a prestar serviços no referido hospital. Estas duas figuras são os principais obreiros da luta anticorrupção na província, tendo instruído já mais de cem processos contra servidores públicos locais, muitos dos quais se encontram encarcerados em prisão preventiva.
Então, como podem estas duas figuras intervir no desmantelamento do “comedouro” instalado no referido hospital, se eles próprios também retiram benefícios pessoais da mesma “panela”, apesar do legalismo dos seus actos? Miguel Arcanjo Sumbo defende que tanto a sua pessoa como a do procurador Cuancua estão a ser vítimas de um contra-ataque dos principais suspeitos de corrupção na província, a contas com a justiça.
Vamos aos factos.
A 2 de Maio de 2013, Miguel Arcanjo Sumbo e sua esposa, Gizela Mumbanda Vianey Lucas Sumbo, constituíram com quotas iguais, no Cunene, a empresa Bettabets Angola, Lda. Com um objecto social que lhes permite intervir em qualquer ramo comercial ou industrial, o casal assumiu a gerência partilhada da empresa. Na altura, Miguel Arcanjo Sumbo era o delegado do SIC na província do Cunene.
Segundo declarações de Miguel Arcanjo Sumbe ao Maka Angola, esta empresa presta serviços de manutenção técnica e higiene no Hospital Provincial do Kuando-Kubango, no Menongue.
De 1 de Agosto a 27 de Dezembro de 2018, a empresa do director provincial do SIC recebeu um total de 18,5 milhões kwanzas do Hospital Provincial do Kuando-Kubango. De Janeiro a Maio passado, o mesmo hospital pagou à Bettabets um total de 17,3 milhões de kwanzas.
Os hospitais municipais do Calei, Cuito-Cuanavale e Nancova contribuíram com um total equitativo de 7,6 milhões de kwanzas.
Em sua defesa, Miguel Sumbo afirma que “podemos ter empresa enquanto detentores de cargos públicos e sermos parceiros do governo, conforme mandam as regras”.
“Só não podemos assumir [enquanto detentores de cargos públicos] a gestão de empresas [privadas]. Por isso, delegamos essas competências a outras pessoas”, justifica o director provincial do SIC.
Das várias conversas mantidas, o director Sumbo garantiu que daria os contactos do gerente da sua empresa para melhores esclarecimentos. Até à data desta publicação, não recebemos qualquer contacto.
Verificados os fluxos financeiros da Bettabets, nota-se a gerência directa da conta da empresa, no Banco de Poupança e Crédito (BPC), por parte de Miguel Sumbo. De 20 de Março de 2018 a 22 de Abril passado, o director do SIC efectuou levantamentos directos na ordem dos 22,7 milhões de kwanzas e ordenou todas transferências em valor superior.
Segundo o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, o gerente de uma empresa pode passar procuração para movimentação de contas bancárias, desde que os estatutos da empresa não o proíbam, a qualquer pessoa. “No entanto, os actos do procurador (aquele que recebe a procuração) reflectem-se na esfera jurídica do gerente. Não existe a figura de delegação da totalidade da gerência a não gerente”, esclarece.
“A isto acresce que aquele que recebe a procuração não pode estar proibido por lei de exercer funções comerciais, senão é uma total fraude à lei”, assevera.
Para Rui Verde, sem procuração para movimentar a conta da empresa, o director do SIC pode estar a agir como o sócio-gerente inicial da Bettabets. Porque só assim poderia ser assinante da conta. “Mas um funcionário público não pode ser gerente de uma empresa comercial”, recorda.
Um académico em gestão de empresas vai mais longe: “No caso concreto de um alto funcionário do estado, director do SIC, o órgão que tem a tarefa de investigar, agravam-se as responsabilidades de separação da actuação dos seus membros em actividades privadas”, conclui.
Miguel Sumbo explica que, pelas províncias onde tem passado como representante do SIC, tem apresentado “as nossas cartas [das suas empresas] e estas vão trabalhando”.
“Nós procuramos fazer serviços de forma legal”, refere Miguel Sumbo, explicando que a sua empresa tem entre 15 a 20 seguranças privados a prestar serviço no hospital”, explica o representante do Serviço de Investigação Criminal.
O chefe da investigação criminal defende que, para combater a corrupção no seio dos detentores de cargos públicos, “mais vale fazer uma carta de apresentação e prestar serviços ao governo, quando as propostas são aceites”.
Com efeito, Miguel Sumbo revela que a Bettabets tem prestado serviços de segurança privada a hospitais públicos na província, para além de fornecimento de outros serviços, “quando solicitados”.
Um desses serviços solicitados é a construção de uma agência da Administração Geral Tributária no município do Cuito-Cuanavale, para o qual a Bettabets recebeu, a 1 de Maio passado, mais 17 milhões de kwanzas.
Sobre o facto de a liderança do governo provincial ter transformado o Hospital Provincial do Kuando-Kubango em “comedouro” das suas empresas, Miguel Sumbo já tem a resposta: “Temos agendada algumas inspecções aos hospitais para ver a legalidade dos contratos com as prestadoras de serviço. Algumas podem não estar em situação legal.”
O director do hospital, Fernando Cassanga, não tem retornado as nossas chamadas para apresentar a sua versão sobre os factos.
Considerações legais
“Temos aqui dois problemas de fundo. Por um lado, a empresa que presta serviços de segurança não pode, por lei, prestar outros serviços”, refere um renomado advogado e professor de Direito, sob anonimato.
“Por outro lado, ainda que se admitisse que o gestor público possa ter participações, o regime da contratação pública impede a empresa com participações de funcionários públicos de se candidatar a concursos para prestação de serviços ao Estado”, explica.
Segundo o advogado, “os funcionários públicos pautam a sua conduta não só por regras jurídicas mas por princípios éticos e deontológicos”. Esses princípios constam de diploma sobre a carta deontológica que impõe o respeito de princípios éticos e morais. “Um deles é o princípio da moralidade administrativa, nos termos do qual a conduta deve ser pautada também pelas boas maneiras”, revela o advogado.
“Estes princípios éticos acabam sendo também princípios jurídicos. Por isso, mesmo alegando a permissão legal do funcionário público em ter participação em empresa, também é verdade que os princípios jurídicos da ética e moralidade impedem que estas empresas assim detidas possam contratar com o Estado”, defende o advogado.
Para o advogado, na contratação com o Estado, as empresas detidas por detentores de cargos públicos ferem o princípio jurídico da concorrência. “As empresas assim detidas [por servidores públicos] só podem contratar com outras empresas privadas”, remata. \hic