Corre nas redes sociais o seguinte dito: “Meu medo é começar a andar a pé, e o governo aumentar o preço do chinelo.” Esta mensagem reflecte o estado de espírito que assola os angolanos, enquanto aguardam nas intermináveis filas para abastecer o automóvel de combustível. O combustível está a escassear.
Mas nada disto é novidade em Angola: nem a falta de combustível, nem as grandes filas nos postos de abastecimento. Na realidade, esta situação resulta de um problema estrutural de que já várias vezes aqui falámos e que tem vindo a depauperar o tesouro angolano.
Ainda em Outubro de 2017, estava Isabel dos Santos nos seus últimos dias de poder na Sonangol, foi registada uma grave ruptura de stocks de combustíveis, dando origem a uma corrida aos postos de abastecimento. Na altura, a filha de JES desculpou as falhas com razões operacionais e financeiras.
Em Julho de 2016, Rafael Marques fazia o diagnóstico do problema crónico das falhas de abastecimento de combustível, concluindo: “Os graves problemas de tesouraria da Sonangol e a falta de divisas não poderão sustentar os gastos actuais de importação de combustíveis a médio prazo.”
Isto quer dizer que o problema do abastecimento de combustível em Angola resulta de uma falha política antiga e aparentemente insanável, sendo que a escassez de gasóleo e gasolina resulta da falta de dinheiro para pagar a sua importação: são estas as “razões operacionais e financeiras” alegadas em 2017 por Isabel dos Santos, e no mesmo sentido aponta a “falta de divisas” agora referida pelo comunicado da Sonangol, presidida por Carlos Saturnino. Ou seja, não há dinheiro.
A diferença, neste momento, são os dois anos de mandato presidencial de João Lourenço, que se completam em Setembro próximo. Este aniversário é o momento para escrutinar e avaliar o resultado das elevadas expectativas de boa governação e resolução de problemas endémicos. E, afinal, muitos poderão dizer que está “tudo na mesma”, se não pior.
É necessário ir além da retórica e levar a cabo uma ruptura efectiva com o passado. O caso da escassez dos combustíveis é um exemplo dessa necessidade, bem como do falhanço do projecto de “mudar o que está mal”, para usarmos o mote do MPLA.
De forma atabalhoada, o comunicado da presidência da República feito a 7 de Maio atribui a crise dos combustíveis “à falta de diálogo e comunicação entre a Sonangol e as diferentes instituições do Estado”.
Debrucemo-nos apenas sobre o comunicado da Sonangol, datado de 4 de Maio, que atribui a crise dos combustíveis a três factores:
“a) Dificuldades no acesso às divisas para a cobertura dos custos com a importação de produtos refinados. De referir que a Sonangol procede a importação de derivados mediante pagamento em divisas, para a venda ao mercado nacional em kwanzas.
b) Elevada dívida dos principais clientes do segmento industrial, que consomem aproximadamente 40% da totalidade do combustível, cuja falta de pagamento condiciona a disponibilidade de kwanzas para a aquisição de cambiais.
c) Avarias sistemáticas nos navios de cabotagem, sendo que cada anormalidade no abastecimento em decorrência da referida causa implica um período de tempo para a reposição da rotina dos mercados.”
Os gestores das divisas
Vamos apenas abordar o primeiro tema: a falta de divisas. Na verdade, Carlos Saturnino, presidente do conselho de administração da Sonangol, está a atribuir as culpas desta situação à dupla que gere as finanças do país: o ministro das Finanças e o governador do Banco Nacional de Angola (BNA), ou seja, Archer Mangueira e José de Lima Massano. São eles os responsáveis pela gestão das reservas monetárias do país e por haver ou não divisas.
Muitos especialistas contactados pelo Maka Angola atribuem a escassez de divisas à permanência de esquemas fraudulentos, embora lícitos na aparência, de apropriação de fundos nas operações cambiais do BNA. Reflictamos sobre as explicações apresentadas por estes especialistas:
O mecanismo de câmbio flutuante limitado por bandas instituído pelo BNA permite que as mesmas pessoas, os mesmos bancos, os mesmos accionistas e as mesmas empresas do passado se apoderem das divisas, através do uso abusivo de um meio lícito, que são os leilões de divisas.
Os leilões de divisas são o meio que o BNA utiliza para fazer chegar as divisas aos vários agentes económicos. A verdade é que esta operação está a decorrer de forma pouco transparente, e permite distorções. É ao nível do departamento competente, asseguram-nos, que a distribuição de divisas pode ser manipulada em relação aos quantitativos que cada banco recebe, uma vez que ninguém tem acesso às decisões concretas, além do governador, do administrador do pelouro e do director do departamento. Assim, temos José Lima Massano, um administrador e um director como responsáveis máximos pela distribuição de divisas. Acresce que não existem critérios objectivos para a atribuição das divisas, outrossim considerações pessoais, provavelmente ligadas às redes de influência pré-existentes.
Por exemplo, a informação publicada referente ao período entre 1 e 5 de Abril de 2019 é a que se mostra abaixo, e que, como se vê, pouco revela.
Figura n.º 1 – Resultado semanal do leilão de divisas – 1 a 5 de Abril de 2019 (Fonte: BNA, disponível aqui)
Nº LEILÃO | MOEDA | MONTANTE OFERECIDO | MONTANTE EFECTIVADO | DATA DO LEILÃO | DATA DA LIQUIDAÇÃO | TAXA MÁXIMA | TAXA MÍNIMA | TAXA MÉDIA PONDERADA | Nº BANCOS PARTICIPANTES |
N.º 64 | USD | 100.000.000,00 | 100.000.000,00 | 03-04-2019 | 09-04-2019 | 318,821 | 318,821 | 318,821 | 19 |
Note-se, contudo, que no ano de 2018 os resultados publicados eram mais exaustivos e detalhados banco a banco. Conferir aqui.
Depois de Setembro de 2018, não encontramos mais nenhuma descrição detalhada acerca da efectiva atribuição de divisas resultante dos leilões. Houve, aparentemente, uma diminuição de transparência.
Segundo informação das mesmas fontes, esta opacidade no leilão de divisas leva a que seja o BAI a receber mais, quando devia ser o BFA e o Standard Bank, que geralmente fazem propostas de taxas mais elevadas.
Contudo, este não é o aspecto que gera maiores ineficiências. O problema real é que o mecanismo permitiu o pagamento dos chamados “atrasados” à oligarquia (os denominados “marimbondos”) que detém bancos e empresas, ou aos seus familiares e amigos, ou sócios estrangeiros, principalmente portugueses. Os “atrasados” são operações bancárias das empresas que estavam pendentes nos bancos, porque não havia divisas para pagar.
O comedouro dos “marimbondos”
Aparentemente e de forma imprudente, os responsáveis do BNA entregaram divisas para pagar cinco biliões de dólares a essas pessoas e empresas, e colocaram o país em risco cambial, pois as reservas diminuíram para cerca de nove biliões de dólares. Desses nove biliões, quatro biliões estão adstritos ao pagamento de dívidas geridas pelo Tesouro no Ministério das Finanças, três biliões de dólares no BNA para garantir importações, estando mais de dois biliões de dólares em reservas não líquidas que foram aplicados em activos imobiliários.
Se estes cálculos, reportados por fontes credíveis, se confirmarem, na realidade o BNA só tem três biliões de dólares para gerir as necessidades da economia, estimadas a um valor entre 800 milhões e 1,2 biliões de dólares por mês.
O pagamento dos “atrasados” levou a uma drástica redução das disponibilidades líquidas do governo.
Uma parte dos “atrasados” diz respeito a pagamentos de dividendos ou lucros das empresas, de dívidas no exterior, de pagamentos de mercadorias, equipamentos, salários, consultorias, etc. Outra parte diz respeito ao pagamento das dívidas do Estado a empresas que prestaram serviços. O Ministério das Finanças pagou algumas dívidas em kwanzas, outras em dólares. Em relação àquelas que pagou em kwanzas, o BNA viu-se na contingência de lhes ceder divisas para transferirem os valores para o exterior. É o caso das empresas portuguesas de construção. O BNA tem de lhes entregar euros para que transfiram o dinheiro para Portugal.
Este é um dos mecanismos utilizados ao longo dos anos para desviar o dinheiro do petróleo de forma supostamente lícita. O dinheiro entra no BNA e no Tesouro, e depois é transferido através do leilão para os bancos comerciais, como “atrasados” ou pagamentos de invisíveis correntes ou de mercadorias e equipamentos. De seguida, os bancos distribuem pelas empresas da sua conveniência, através dos bancos correspondentes internacionais onde está o dinheiro.
Quem toma essas decisões são os conselhos de administração dos bancos comerciais. No caso de Angola, estes conselhos são dirigidos, na larga maioria, por administradores estrangeiros. Possivelmente, mais de 65% das receitas do petróleo saem de Angola através deste mecanismo.
No início deste ano, escrevemos o seguinte acerca da prudência imprescindível para efeitos de pagamento de dívidas internas: “Esta primeira medida [pagamento de dívida interna] pode ser positiva, dependendo de quem detém dívida interna. Se forem os bancos nacionais, tal poderá activar o multiplicador monetário, fazendo com que as instituições financeiras emprestem mais e estimulem a economia. Diferente será se as entidades nacionais que receberem o pagamento da dívida ficarem com o dinheiro entesourado ou o transferirem para o estrangeiro. Portanto, esta medida do FMI só será positiva se for devidamente acompanhada e monitorizada. Caso contrário, poderá servir apenas para ‘encher os bolsos’ dos ‘marimbondos’ angolanos com as mais-valias do petróleo. Seria irónico…”
Confirma-se, hoje, a ironia que antevíamos. O pagamento de dívidas tem servido para financiar os “marimbondos” e para continuar a estrangular a população do nosso país. O Estado está sem dinheiro e a miséria do povo aumenta a olhos vistos. Daqui a uns meses poderemos estar perante a falta de divisas para comprar alimentos e medicamentos. E depois, o que se faz? x
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