segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

As galinhas do calote

As galinhas do calote

Os moçambicanos adoram comer galinha. Assada com xima e molho de tomate. Em água e sal para quebrar a babalaza. Com piri piri sacana para alguns ou ao jeito zambeziano untada com leite de coco para outros. A galinha cafreal é uma habitante das casas suburbanas de Moçambique. Quem tem quintal geralmente cria galinhas. Na vaga ocupacional dos prédios de rendimento no fervor da independência, alguns tentaram criá-las nas varandas dos prédios. A relação com o animal é afável apesar do seu destino fatal que é um motivo prazeroso para o homem.

A galinha foi sempre um animal de estimação para as nossas barrigas. E também um elemento obrigatório no ritual de curas. Ela representa muitas coisas nesses lugares grávidos de amuletos, raízes e búzios que se achocalham sob o reco-reco da voz desbragada no curandeiro em suas preces. Nessas magias de cura, advinhação e feitiço, a galinha entrega o seu sangue aos deuses intocáveis. Essas tradições inventadas vêm dos tempos do antanho. O poder simbólico da galinha com os seus diversos significados não tem igual. Todos recorrem à ela como representante de significados divinos uns, e perversos outros.

Em 2002 eu tive o primeiro contacto na pele com a galinha representando uma ameaça de morte para mim quando era editor do MediaFAX na cobertura do julgamento do assassinato do jornalista Carlos Cardoso, meu mentor. Descobri que na prisão da BO, os arguidos mencionavam que um dos mandantes desse horrendo crime era o “filho do galo”. Quando escrevi a crónica com esse título, tive um golpe de prudência. Não coloquei no texto o nome do tal filho.
Mas no dia seguinte, o Fernando Lima perguntou-me quem era o tal “filho do galo” e revelei para ele. O Lima escreveu então uma peça dando o nome ao “filho do galo”. Como quem desse um nome ao boi que era filho dum galo. Na tarde desse dia, gaiolas de palha cheias de galinhas foram deixadas na Mediacoop, em encomendas para o Lima e para o Kok Nam, então director do SAVANA. Para mim mandaram-me à casa. Duas gaiolas. Era uma “oferta” da senhora Marcelina Chissano, disseram-me. Fiquei apavorado com a explicação subsequente.


Na simbologia dos macondes uma oferta daquele jeito de galinhas vivas era uma ameaça de morte. Foi a primeira vez que vi a galinha sendo usada para esse fim inconfessável. Mais obscuro que a finalidade do curandeiro. Não me verguei. A ameaça deu-me mais alento e de lá para cá, nunca mais soube doutros usos perversos da simbologia galinheira. Agora na leitura do libelo acusatório de Manuel Chang, um delator partilhou com a investigação americana uma conversa por email onde um dos co-acusados não mencionados na acusação escreve galinha para dizer dinheiro.

Em e-mail de 11 de Novembro de 2011, um dos co-acusados, que “Carta” suspeita ser António Rosário, enviou para Jean Boustani a seguinte mensagem: “Para garantir que o projeto seja aprovado pelo Chefe de Estado, um pagamento tem que ser acordado antes de chegarmos ao objectivo final (...) Quaisquer pagamentos adiantados antes do projeto, poderão ser recuperados”.

Em e-mail de 11 de Novembro de 2011, Boustani responde:
“Uma questão muito importante que precisa ser clara: tivemos várias experiências negativas na África. Especialmente relacionadas com pagamentos de ’taxas de sucesso‘. Portanto, temos uma política rígida no Grupo, de não desembolsar nenhuma 'taxa de sucesso' antes da assinatura do Contrato do Projeto”.

Em e-mail de 14 de Novembro de 2011, supostamente de Rosário em resposta a Boustani, pode ler-se: “Fabuloso, eu concordo consigo em princípio. Mas vamos olhar para o projeto em dois momentos distintos. O primeiro momento é o de massajar o sistema e obter a vontade política de avançar com o projeto. O segundo momento é a implementação/execução do projeto.
Concordo consigo que qualquer dinheiro só pode ser pago após a assinatura do projeto. Isso deve ser tratado separadamente da implementação do projeto...porque, para a implementação do projeto, haverá outros jogadores cujo interesse terá que ser cuidado, como por exemplo o Ministério da Defesa, o Ministério do Interior, a Força Aérea, etc ... em governos democráticos como o nosso, as pessoas vêm e vão...e todos os envolvidos vão querer ter a sua parte do negócio no momento em que estão no poder. Uma vez fora do poder, já será difícil. Por isso é importante que a 'taxa de sucesso' de assinatura do contrato seja acordada e paga de uma só vez, após a assinatura do contrato”:

Em email de 28 de Dezembro de 2011, supostamente de Rosário para Boustani, é dito o seguinte: “Bom irmão. Eu consultei e por favor coloque 50 milhões de galinhas. Quaisquer que sejam os números que você tenha na sua capoeira, acrescenta 50 milhões da minha raça”.
[Interpretação do Departamento de Justiça: 50 milhões de USD seriam pagos em suborno a funcionários do governo moçambicano e outros 12 milhões de USD seriam pagos aos co-conspiradores da Privinvest.]

Em email de 8 de Dezembro de 2011, Boustani escreve para o pessoal da Privinvest: "50M para eles e 12M para [Privinvest Co-Conspirator 1] (5%) ==> total de 62M no topo."

Entretanto, levou mais de um ano para que o contrato entre a Proindicus e a Privinvest fosse assinado. Cinco dias após a assinatura do contrato, Boustani instruiu um banco nos Emirados Árabes Unidos que, assim que Privinvest recebesse a primeira tranche de 317 milhões de USD do Credit Suisse, dois pagamentos deveriam ser feitos: 5,1 milhões de USD para um acusado anónimo (Rosário na suspeita de "Carta") e 5,1 milhões para o co-conspirador 1.
O banco também foi instruído a pagar a cada um deles outros 3,4 milhões de USD numa data posterior. Desde as galinhas das gaiolas de Marcelina Chissano nunca esperei que a ave omnipresente em nossos pratos e bocas fosse usada também para simbolizar as verdinhas da terra do Tio Sam. Imaginação rasteira? Negócios de capoeira? O quê mesmo?
(Marcelo Mosse)

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