Notas soltas sobre a nossa novela
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Os mais sensatos e comedidos sempre esperam ter todos os dados à mesa antes de se pronunciarem sobre este quente assunto. Eu sou esquentado. E impaciente.
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Acabo de ler o documento de acusação emitido pelo Tribunal de Brooklyn contra Chang e sua turma. Agradeço calorosamente a José Jaime Macuane por mo facultar. Afinal há dados mais que transparentes vindos dos EUA. Vergonhoso e criminoso continua a ser o silêncio de quem devia falar. Os nossos.
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Ocorre me dizer duas ou três coisas.
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A primeira é que senti nojo ao ler o documento. Um queimar no estômago. Não apenas pela seriedade do crime, mas sobretudo pela ingenuidade dos que a cometeram. Não é a ingenuidade de quem não tem noção de que está a cometer um crime grave. Está claro que eles - os nossos - estavam cientes do que faziam. É a ingenuidade de que algo desta natureza - no tempo digital em que vivemos - fosse ficar enterrado nos corredores escuros do mundo do crime. Mas a maior ingenuidade - e acho que é esta que está por detrás do processo em curso a partir de Nova Yorque - é ir roubar dinheiro de gente poderosa.
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Esta ação está a ser movida pela justiça americana porque o dinheiro das dívidas ocultas - boa parte dele - é de investidores americanos. Mais provavelmente dos círculos da Wall Street. É legítimo que, sentido-se defraudados e cientes que não virão nenhum vintém do seu dinheiro de volta, eles moveram os paus para que um processo criminal fosse instaurado e assim puderem rever o que lhes pertence. Max Weber escreveu na conclusão do seu famoso livro, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, o seguinte: "in the field of its highest development, in the United States, the pursuit of wealth, stripped of its religious and ethical meaning, tends to become associated with purely mundane passions, which often actually give it the character of sport" (p. 124, edição da Routlegde de 2001). Traduzo: “no seu nível mais avançado, nos EUA, a busca da riqueza, despida do seu sentido religioso e ético, tende a estar associado a paixões puramente mundanas, que lhe dão o carácter de um desporto.” Imagine o estado mental de um amante de desporto quando perde o jogo, sobretudo quando é enganado, ou, na nossa gíria, batotado. Os jogadores da Wall Street perdem de quando em vez, mas não jogam para perder. Eles farão tudo ao seu alcance para reaver o que é seu. Não porque lhes faça falta. São podres de ricos. Mas porque making money is the sport of their lives, their worldly calling à la Weber.
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O segundo nível da ingenuidade é a crença no poder dos agentes dos bancos financiadores que estão arrolados no processo de acusação. É capaz que os nossos dirigentes tenham ido bater à porta dos bancos a procura de montantes modestos, e terem encontrado estes falcões à espera de um “pato” que lhes permitisse roubar do sistema e sair ilesos. O documento não está muito claro quanto ao agenciamento. Se foi iniciativa dos nossos ou dos falcões. Pela leitura do documento, as movimentações são todas dos falcões dos dois bancos. São eles que manipulam o sistema bancário para que os impedimentos legais ao empréstimo não sejam observados. Por exemplo, eles forjam o due diligence às três empresas moçambicanas e convencem os boards dos bancos que os negócios são viáveis. Pela comunicação por email, são eles que mencionam que “os dirigentes Moçambicanos estão do nosso lado.” São eles que avançam com as propostas fantoches de negócios das três empresas, e aos nossos dirigentes coube assinar por baixo.
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Os mais sensatos e comedidos sempre esperam ter todos os dados à mesa antes de se pronunciarem sobre este quente assunto. Eu sou esquentado. E impaciente.
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Acabo de ler o documento de acusação emitido pelo Tribunal de Brooklyn contra Chang e sua turma. Agradeço calorosamente a José Jaime Macuane por mo facultar. Afinal há dados mais que transparentes vindos dos EUA. Vergonhoso e criminoso continua a ser o silêncio de quem devia falar. Os nossos.
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Ocorre me dizer duas ou três coisas.
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A primeira é que senti nojo ao ler o documento. Um queimar no estômago. Não apenas pela seriedade do crime, mas sobretudo pela ingenuidade dos que a cometeram. Não é a ingenuidade de quem não tem noção de que está a cometer um crime grave. Está claro que eles - os nossos - estavam cientes do que faziam. É a ingenuidade de que algo desta natureza - no tempo digital em que vivemos - fosse ficar enterrado nos corredores escuros do mundo do crime. Mas a maior ingenuidade - e acho que é esta que está por detrás do processo em curso a partir de Nova Yorque - é ir roubar dinheiro de gente poderosa.
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Esta ação está a ser movida pela justiça americana porque o dinheiro das dívidas ocultas - boa parte dele - é de investidores americanos. Mais provavelmente dos círculos da Wall Street. É legítimo que, sentido-se defraudados e cientes que não virão nenhum vintém do seu dinheiro de volta, eles moveram os paus para que um processo criminal fosse instaurado e assim puderem rever o que lhes pertence. Max Weber escreveu na conclusão do seu famoso livro, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, o seguinte: "in the field of its highest development, in the United States, the pursuit of wealth, stripped of its religious and ethical meaning, tends to become associated with purely mundane passions, which often actually give it the character of sport" (p. 124, edição da Routlegde de 2001). Traduzo: “no seu nível mais avançado, nos EUA, a busca da riqueza, despida do seu sentido religioso e ético, tende a estar associado a paixões puramente mundanas, que lhe dão o carácter de um desporto.” Imagine o estado mental de um amante de desporto quando perde o jogo, sobretudo quando é enganado, ou, na nossa gíria, batotado. Os jogadores da Wall Street perdem de quando em vez, mas não jogam para perder. Eles farão tudo ao seu alcance para reaver o que é seu. Não porque lhes faça falta. São podres de ricos. Mas porque making money is the sport of their lives, their worldly calling à la Weber.
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O segundo nível da ingenuidade é a crença no poder dos agentes dos bancos financiadores que estão arrolados no processo de acusação. É capaz que os nossos dirigentes tenham ido bater à porta dos bancos a procura de montantes modestos, e terem encontrado estes falcões à espera de um “pato” que lhes permitisse roubar do sistema e sair ilesos. O documento não está muito claro quanto ao agenciamento. Se foi iniciativa dos nossos ou dos falcões. Pela leitura do documento, as movimentações são todas dos falcões dos dois bancos. São eles que manipulam o sistema bancário para que os impedimentos legais ao empréstimo não sejam observados. Por exemplo, eles forjam o due diligence às três empresas moçambicanas e convencem os boards dos bancos que os negócios são viáveis. Pela comunicação por email, são eles que mencionam que “os dirigentes Moçambicanos estão do nosso lado.” São eles que avançam com as propostas fantoches de negócios das três empresas, e aos nossos dirigentes coube assinar por baixo.
Para um historiador, o cenário lembra as negociatas coloniais que asseguraram as fronteiras africanas e a ocupação efectiva. Um bando de europeus maltrapilhos aparece com papéis de pretensões territoriais e os chefes africanos põe a marca do seu dedo ou riscam por baixo, confiando cegamente no poder do branco, da sua magia. Este fascínio com o poder do branco não é algo para desprezar. É de facto um aspecto poderoso nas relações entre África e Europa dessa altura. O conceituado escritor Nigeriano, Chinua Achebe, capturou este fascínio num dos seus emblemáticos livros, Arrow of God. Ezeulo, o chefe religioso de Umuaro, ao ver o jovem administrador colonial a escrever rápido com a sua mão esquerda, decidiu que o filho tinha que aprender a magia do branco, sobretudo a magia de escrever. Disse ele ao seu filho, Oduche, que o jovem branco dominava tanto a magia da caneta que até usava a sua mão esquerda. Tal era o fascínio. A mãe de Eduardo Mondlane usou ama analogia similar ao instruir o seu filho a estudar.
Mas estes já não são os tempos do encontro colonial. Chang e sua turma sabiam o que estava escrito nos documentos forjados. Mas me parece haver ali uma cega confiança nos falcões, confiança de que eles deviam saber o que estavam a fazer e que havia de dar certo. Para assinar os documentos dando o aval do governo Chang recebeu 5 milhões de dólares na sua conta pessoal (certamente recebeu mais algum à medida que o esquçema avançava). Outros dirigentes – cujos nomes não são mencionados na acusação por procedimentos processuais – receberam quantias mais ou menos similares. O grande bolo, esse, foi para os falcões que, assim que meteram a mão na massa, deixaram os bancos e foram viver à grande, cientes que, se a coisa explodisse, seria do lado mais fraco da corda. A assinatura de Chang é o maior álibi, de que tudo foi feito com o aval do governo Moçambicano.
No esquema geral das coisas, os nossos antepassados que assinaram acordos que resultaram na perda da soberania dos seus estados pré-coloniais receberam somas mais ou menos equivalentes aos que os nossos dirigentes receberam pela negociata suja. Para Lobengula, Ngungunhana, Matibswana, e seus contemporâneos, bastava um casaco, algumas armas para continuar a subjugar os seus súbtidos e massacrar os resistentes, algumas bugigangas, e – mais tarde no caso de Ngungunhana – as migalhas dos impostos aos trabalhadores migrantes que transitassem pelo seu território. Pronto. O resto ficava para Rhodes e seus acólitos. Receberam migalhas e em troca entregaram a sua própria soberania e as riquezas do seu território. Quando se deram conta do erro e tentaram rebelar-se, sentiram o verdadeiro poder da magia branca no fogo da maxim gun. No grande esquema das coisas, Chang e sua turma fizeram igual (o dinheiro que amassaram não foi para criar empresas, dar emprego a moçambicanos e criar riqueza que beneficie o país. Foi para acumular bugigangas). A diferença é que os nossos antepassados não tinham muitos exemplos do passado em situações iguais para tirarem lições e assumir outras alternativas. Os nossos dirigentes têm essa vantagem, têm noção da gravidade da falcatrua, o que aumenta mais o peso moral do seu crime.
A serem julgados nos EUA, como tudo indica, será mais uma justiça para os jogadores da Wall Street. A nós, eternos sujeitos, restarão os restos – incluindo os restos dessa justiça. Para muitos isso já é de si sufience, considerando o nosso historial de impunidade. Compreende-se. Para mim, é uma perdida oportunidade de aprendermos, de crescer, e nos afirmar como nação, e acima de tudo, caminharmos de cabeça erguida no concerto das nações. Já há muito que estamos de cabeça baixa. É tamanha a carga de vergonha que nos pesa nas costas. Ainda há tempo para se assumir a responsabilidade e fazer o que é certo. É preciso ter coragem e, como diria empaticamente o Roberto Julio Tibana, pôr guiso ao gato enquanto há tempo. Ainda há tempo. Colaborem e façam justiça.
*Benedito Mamidiji *
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