Revista da organização alude a pessoas que se mantiveram casadas mesmo com “a saúde e a vida” em perigo e cujo sacrifício valeu a pena. Associação diz que é “repulsiva” qualquer forma de violência.
A indignação espalhou-se com a rapidez de um rastilho de pólvora entre muitas ex-Testemunhas de Jeová (TJ) por causa do último número da revista Sentinela, que, em Dezembro próximo, há-de servir de base ao “estudo” dos membros deste grupo religioso: nas páginas 10 a 14 daquela publicação, sob o título “Respeite ‘O que Deus pôs sob o mesmo jugo”, os autores da revista peroram sobre o casamento e o divórcio e apontam, num português abrasileirado, situações em que “talvez ele [o marido] costume bater nela, colocando a saúde e a vida dela em perigo” para lembrarem os cristãos que “passaram por situações parecidas e decidiram não se separar”, isto é, “preferiram perseverar e se esforçar para melhorar o casamento”.
Num cenário em que um marido “descrente” agride a mulher que acredita em Jeová, o texto garante que os que optaram por continuar casados “dizem que esse sacrifício valeu a pena, principalmente depois que o marido ou a esposa se tornou [sic] adorador de Jeová”. Trata-se, sustenta Ana Cláudia Sousa, expulsa da congregação há 16 anos depois de se ter divorciado sem “base bíblica”, de um claro incentivo a que as mulheres permaneçam casadas mesmo quando são violentadas.
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“Num país em que, como em Portugal, todos os meses morrem mulheres vítimas de violência doméstica, eles continuam a insistir que ela se deve manter no casamento?! Não acho isto admissível”, declarou ao PÚBLICO, fazendo eco da indignação que grassa dentro e fora dos fóruns da Internet onde os “dissociados” (membros que se desligaram desta denominação religiosa) e os “desassociados” (que foram expulsos) se reúnem.
Questionado pelo PÚBLICO, Pedro Candeias, ancião e porta-voz da organização no país, recusa que se possa ler na publicação qualquer incentivo à aceitação da violência. “As Testemunhas de Jeová […] consideram repulsiva toda e qualquer forma de violência, incluindo a violência doméstica, seja na forma física, verbal ou psicológica”, garantiu por email, para explicar de seguida: “As publicações das Testemunhas de Jeová explicam a informação da Bíblia, no entanto, é da responsabilidade de cada pessoa tomar as suas próprias decisões”.
“A mensagem é subliminar mas as pessoas ‘lá de dentro’ percebem-na: uma mulher que se mantenha com um marido violento é digna de elogio porque pode salvá-lo”, interpreta outro ex-membro das TJ que durante sete anos foi ancião (equivalente a um padre na Igreja Católica), para explicar que estas edições de “estudo” da Sentinela são lidas e discutidas parágrafo a parágrafo nas reuniões semanais entre anciãos e membros das TJ.
“A mensagem é claríssima: deixem-se estar porque Deus odeia o divórcio e há esperança que o marido se torne Testemunha de Jeová mesmo que para isso tenham de passar anos a levar porrada”, indigna-se, por seu turno, uma advogada que foi formalmente expulsa das TJ no início deste ano por, em 2017, ter integrado uma lista candidata a uma junta de freguesia.
Onde os ex-membros lêem incentivos à manutenção do casamento custe o que custar, a socióloga Helena Vilaça, que estuda há anos a paisagem religiosa em Portugal, vislumbra outra abertura, nomeadamente nos parágrafos que apontam a “imoralidade sexual” como base bíblica para o divórcio. “Toda aquela interpretação não está distante da concepção que a Igreja Católica tem relativamente ao casamento”, relativiza. “E as Testemunhas de Jeová até vão mais longe quando põem a hipótese de a mulher deixar o marido em situação de imoralidade sexual deixando-a livre para casar novamente”, acrescenta a investigadora da Universidade do Porto, para lembrar que, tanto quanto saiba, os padres católicos também não andam propriamente a aconselhar as mulheres a divorciarem-se. “Mesmo os psiquiatras, onde quem não é religioso pode ir buscar alguma orientação, colocam a bola do lado da pessoa”, conclui.
Segundo o ex-ancião que falou ao PÚBLICO, o denominador comum às diferentes congregações das TJ – e serão cerca de 600 em Portugal - é o desincentivo da denúncia às autoridades civis: “Isto passa-se sobretudo quando quem violenta é Testemunha de Jeová. Eles tentam preservar uma imagem de superioridade e qualquer coisa que lance vitupério sobre o nome de Jeová, é fortemente desaconselhada.”
Irmãos versus mundanos
Irina Pires, de 32 anos, divorciada desde 2008 depois de um casamento com um homem que era das TJ e de quem se separou ao fim de dois anos e de muitas agressões, recorda o enleio inicial. “Ele tinha sido testemunha a vida toda, porque os pais eram e os avós também. Aos 19 anos e filha de pais separados, casei-me e deixei-me levar naquela conversa da família feliz, da mulher enquanto esposa ideal, discreta, escrava”.
As agressões terão começado logo na primeira semana do casamento. “Quando os anciãos com quem estudava a bíblia iam lá a casa, viam as coisas partidas e ouviam-no assumir que me batia, diziam-me que tinha que me manter fiel e discreta para não dar mau nome a Jeová. Até me diziam que aquilo era Satanás a tentar desviar-me da verdade.”
Quando os vizinhos começaram a chamar a polícia, "a preocupação dos anciãos era que não apresentasse queixa porque isso iria difamar a religião”. Quando Irina decidiu que não queria a filha numa casa onde imperava a violência e pediu aos anciãos que testemunhassem a seu favor em tribunal, a resposta foi negativa. “Infelizmente não podiam porque eu era ‘mundana’ – tinha estudado a bíblia mas recusara baptizar-me – e jamais iriam a um tribunal dizer que um irmão batia numa mundana como eu”, alega, para garantir que, nos anos em que manteve proximidade com as TJ, conheceu “muitas mulheres que levavam porrada e sofriam violência psicológica e continuavam porque eles as ensinavam que tinham de ser ‘escravas fiéis e discretas’”.
Adultério pode justificar divórcio
A socióloga Helena Vilaça, que no final da década de 90 passou um ano a estudar uma congregação de Testemunhas de Jeová, recusa que esta seja a regra. “Não me parece que possamos concluir que as Testemunhas de Jeová são piores do que os outros ou que fazem a apologia da violência doméstica. É verdade que valorizam o casamento e a estabilidade dentro do casamento, o que contrasta com a dita ‘modernidade líquida’ em que vivemos e que não valoriza o que é sólido e o que é estável”, situa. Mas, em termos de doutrina, “e concretamente em relação ao casamento, até conseguem ser mais flexíveis quando admitem que o divórcio pode ter base bíblica quando haja adultério”, insiste a investigadora.
Não significa, porém, que as TJ não tendam - “como, de resto, nalgumas paróquias católicas”, lembra a investigadora - para a rigidez e para o controlo social dos seus membros. “O facto de não serem um grupo em simbiose com a sociedade torna-os mais fechados sobre si mesmos e propicia esse controlo da vivência quotidiana das pessoas. Daí que haja muita gente que sai em ruptura, num processo que pode ser muito doloroso e que requer muita coragem”, descreve.
Por outro lado, aponta casos em que esse controlo, e as interdições que o acompanham, teve resultados felizes: “Num contexto periurbano de uma família operária, a mulher era convertida mas o marido não. Quando este se converteu, deixou os vícios, como fumar e beber e, por vezes algum jogo, passou a entregar o salário em casa e a família passou a ser funcional”.
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