As burlas nas vendas de terreno, esbulhos e conflitos afins têm sido endémicas em Luanda. O nome do vice-procurador geral da República, Luís Mota Liz, vê-se agora envolvido na disputa de um terreno por si adquirido, mas cuja titularidade é reclamada por um terceiro cidadão. Enquanto o litígio prossegue nos corredores da justiça, as obras também continuam no referido espaço.
Trata-se da construção de uma área comercial com 5.260 metros quadrados, que deverá estar terminada em Fevereiro de 2019, na Zona do Quifica, Bairro do Benfica, em Luanda. A obra está licenciada a Edson Ismael Manuel Liz, filho do vice-procurador geral da República, Luís da Mota Liz.
O problema desta obra é que está a ser construída num terreno reclamado pelo cidadão Pedro Lucau Lussuca Matias, que afirma ser o seu legítimo concessionário. O terreno está em litígio desde 2015. Pedro Matias afirma que não autorizou a venda do terreno e só tomou conhecimento da transacção em 2016, devido a ausências por motivos de saúde.
De forma cândida, o vice-PGR Mota Liz esclarece ao Maka Angola: “Eu sou o enganado na história. Comprei o terreno à Sra. Esperança [Valdemiro Ganga]”.
Mota Liz explica que “o [João Domingos] Quipaca intermediou a venda. Foi ele quem comprou por mim. Depois foram aparecendo muitos donos”.
De acordo com o magistrado, “aceitámos comprar porque achámos que não havia qualquer possibilidade de conflitualidade. Se fui enganado, vou exigir uma compensação”.
Ao Maka Angola, João Domingos Quipaca nega o envolvimento de Mota Liz no negócio, afirmando categoricamente que o nome do vice-PGR “surgiu numa mera conversa” entre si e Lucau. A sua negação é obviamente desmentida pelo magistrado.
Mota Liz manteve dois encontros com Pedro Matias em Julho e Setembro passado:
“Disse-lhe que tinha de ir a tribunal resolver isso e, caso tenha direito [por decisão judicial], deve indemnizar-me. Tenho estado à espera que a situação seja definida [judicialmente]”, explica o ex-PGR sobre o primeiro encontro.
“Se fui engando vou exigir compensação. Se a titularidade [da venda] for legítima, ficarei com o mesmo”, continua.
Por sua vez, Pedro Matias apresenta a sua versão do encontro: “Mostrei ao Dr. Mota Liz todos os documentos sobre minha total titularidade do espaço, bem como todos os comprovativos sobre o meu estado de saúde. Perguntei depois se o Dr. Mota Liz viu os documentos da compra do terreno apresentado pela Sra. Esperança Ganga.”
O segundo encontro, em Setembro de 2017, apresenta um dado extraordinário. Pedro Matias revela que o magistrado “lamentou ter dado um valor total de três milhões de Kwanzas a um dos envolvidos, o Sr. João de Deus para que me entregasse [como compensação] para resolver o litígio”. Acontece que João de Deus é um alto funcionário da administração de Belas, envolvido no negócio como facilitador e intermediário. Na altura era chefe do Departamento de Fiscalização e actualmente chefia o Departamento de Antigos Combatentes.
Ainda de acordo com Pedro Matias, João de Deus nunca lhe entregou qualquer valor e, para se proteger, “informou o então PGR, João Maria de Sousa, que o Dr. Mota Liz o queria prender por causa do dinheiro [os três milhões que nunca entregou]”.
Este é mais um exemplo dos problemas de direitos de propriedade que existem em Angola e que se podem tornar no grande “calcanhar de Aquiles” das promessas de investimento de João Lourenço. Como se vai investir se não se sabe o que pertence a cada um, e se aquilo que é de uma pessoa pode ser usurpado por outra?
Temos reportado inúmeros casos de situações de disputas de terras, em que geralmente uma das partes é um camponês e outra um alto dirigente do Estado. Lembramo-nos das controvérsias de terras com o actual comandante da Polícia Nacional, Paulo Almeida, ou com o presente embaixador de Angola em Lisboa. Também existem as ocupações de sociedades e imóveis, como no caso do general Andrade.
A questão é sempre a mesma. Um cidadão sem ligações políticas entende que detém determinada propriedade, mas vê-se esbulhado, ocupado, ou desapossado dessa propriedade.
Para variar, a posse do terreno não foi tranquila. Pedro Lucau Matias deparou-se com uma reivindicação da mesma propriedade por parte de Esperança Valdemiro Ganga, que alegava ser herdeira dos verdadeiros detentores do terreno. Tal disputa foi alvo de decisões da Administração Municipal de Belas durante 2017, que também ordenou a demolição de bancadas deixadas construir pela mesma Esperança Ganga. Depois disso, o Tribunal Provincial de Luanda, em decisão datada de 13 de Dezembro de 2017, indeferiu uma providência cautelar não especificada intentada por Esperança Ganga.
Pedro Matias obteve provimento dos seus direitos quer na esfera administrativa – isto é, nas decisões da Administração Municipal –, quer na esfera judicial. Portanto, pareceria que o assunto estava resolvido e Pedro Matias poderia gozar pacificamente (como se diz em Direito), em plenitude, o seu terreno.
Contudo, não é assim! O terreno está ocupado por uma obra pertencente ao vice-procurador-geral da República.
O vice-PGR adianta que as obras vão continuar, porque estão devidamente licenciadas pela administração de Talatona e documentadas.
Difícil é explicar a confusão. O Alvará de Licença de Construção nº 013/2018 foi emitido no princípio do ano pela então administradora de Talatona, Manuela Bezerra, sem data específica, para a edificação de uma galeria comercial. O alvará foi passado a favor de Edson Ismael Manuel Liz, filho de Mota Liz.
Todavia, a referida obra começou no ano passado, sem licença. A mesma administração municipal de Talatona embargou-a a 20 de Abril de 2017, por “transgressão administrativa” e até “a conclusão do competente processo judicial”. Quatro meses antes, a 19 de Janeiro do mesmo ano, a administração municipal de Belas reconheceu a posse do terreno a favor de Pedro Matias e declarou que Esperança Ganga não era herdeira do terreno, argumento que esta invocara para o vender. A nova divisão administrativa de Luanda, ocorrida nesse período, transferiu a jurisdição do Benfica, do município de Belas para o de Talatona.
“Se há uma decisão judicial, a questão é executá-la. Só tem de ser executada a decisão judicial”, afirma o magistrado.
Até ao momento, a sentença da 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda (Proc. n.º 2793/2017 – A), de 13 de Dezembro de 2017, é a favor de Pedro Matias.
E este é o problema de sempre: como se protege o direito de propriedade em Angola?
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