Raramente o Direito é um instrumento de progresso social, assumindo geralmente uma feição conservadora e muitas vezes anacrónica.
Basta lembrar que um dos actos fundadores da Revolução Francesa foi retirar aos tribunais comuns qualquer interferência nas actividades administrativas do novo Estado. Temia-se que o conservadorismo do Direito enquistado nos tribunais perturbasse as conquistas da liberdade, igualdade e fraternidade proclamadas pelos revolucionários franceses.
Para fazer avançar a Revolução era preciso criar um novo Direito que não estivesse nas mãos dos velhos cultores: juízes, professores ou juristas do Antigo Regime.
Em Angola, depois de alguma desconstrução leninista nos primórdios da independência, o Direito rapidamente assumiu a sua vertente regressista e limitou-se a recuperar e imitar o que se fazia em Portugal. Na realidade, o Direito angolano continuou colonizado na sua grande essência. Basta ver os Códigos em vigor ou ler as sentenças mais doutas para se ver que a doutrina citada é a portuguesa.
Contudo, onde essa colonização do Direito angolano é mais nítida é no ensino.
Vamos observar o curso de Direito da Universidade Agostinho Neto, que é a mais importante do país. Se repararmos no currículo do curso de Direito da Universidade Agostinho Neto, vemos que este não é mais do que uma imitação do que se fazia em Portugal antes de 2005/2006 (altura em que nas terras lusas se comprimiram os cursos para 4 anos, em virtude do chamado processo de Bolonha). Não existe uma única cadeira específica vocacionada para Angola. O curso de Direito poderia ser leccionado em Luanda ou em Bragança. Nem sequer existe uma História do Direito Angolano.
Não se dispõe do programa da cadeira de História das Ideias Políticas e Jurídicas, mas imagina-se que siga o rumo de qualquer programa português: os gregos, os romanos, os filósofos medievais da Europa, o Iluminismo, e por aí adiante. Talvez haja algum pequeno capítulo dedicado a um pensador africano ou angolano…
Depois, a cooperação fundamental faz-se com a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Sabemos no que consiste a cooperação. Não é um trabalho partilhado e de longo prazo entre angolanos e portugueses com vista a produzirem investigação e resultados conjuntos, úteis para ambos. É uma espécie de tutela lusa traduzida em três ou quatro professores portugueses que viajam rapidamente, de preferência ao fim-de-semana, para Luanda, onde, ofegantes, dão umas céleres aulas não acompanhando nada, nem ninguém, preferindo almoços com membros das elites, que muitas vezes acabam por frequentar cursos em Lisboa que terminam com todas as ajudas. Os mesmos professores portugueses, que nunca tomam posições sobre as questões candentes do tempo, a não ser para defender o governo no poder, viajam por toda a Angola dando supostas e repetitivas aulas de mestrado, parecendo que mais ninguém as sabe dar, não apostando na criação de um núcleo alargado de docentes angolanos com capacidade investigação.
Mas para que precisa Angola de tutela portuguesa no Direito?
O Direito português teve um vicejo na civilística por altura da aprovação do Código Civil de 1966, quando Antunes Varela, Galvão Telles, Almeida Costa, entre outros, marcaram um ponto alto da ciência privatística lusa. Na área do Direito público, a revolução de Abril fez sobressair nomes como Gomes Canotilho, Vital Moreira, Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa e Freitas do Amaral.
No entanto, hoje, com algumas excepções, a ciência jurídica lusa perdeu-se entre a endogamia universitária, o compadrio e o clientelismo apressado. Os professores estão sempre com pressa. Pouco investigam, pouco pensam. Não existe uma orgulhosa ciência jurídica lusitana que possa servir de exemplo para Angola.
A permanência da ligação do ensino do Direito angolano apenas a Portugal representa uma prisão e um atraso para Angola. Obviamente, tal não significa que não se peça o contributo português, mas o ensino angolano deve ser descolonizado e os currículos revistos.
Há uma História do Direito em Angola que não é a História do Direito Português, há uma história das ideias em África que não é só a história das ideias na Europa. Há temas específicos para a realidade angolana, o direito dos petróleos, das minas, etc. E sobretudo, existe toda a tradição de direito costumeiro, local, rural, de resolução alternativa dos conflitos, que não é abordada nas faculdades de Direito.
Quantas e quantas disputas não são resolvidas pelos chefes locais com base em normas consuetudinárias?
A imensidão de Angola, o pluralismo das suas gentes e dos seus viveres traduz-se num pluralismo legal que é abafado nas escolas jurídicas, quando devia ser alimentado, ensinado e promovido, pois é sempre da pluralidade que surge o progresso.
Quer os currículos, quer a formação de professores deveriam ser descolonizados. Sim, trabalhar com Portugal, mas de igual para igual e com exigência, e abrir horizontes para o resto do mundo.
Pensemos no fiasco que foi a intervenção angolana em Londres nos casos do Fundo Soberano . Em parte, o erro de avaliação poderá ter resultado da formação dos juristas angolanos que acompanharam o caso. Na realidade, a jurisprudência sobre os contratos é extremamente diferente em Portugal e em Inglaterra, e tal pode não ter sido ponderado na avaliação realizada antes de se iniciarem os procedimentos legais.
Note-se que a descolonização do ensino do Direito em Angola não significa ser-se anti-português, antes ser exigente com Portugal e sobretudo com os angolanos, obrigando-os a abrir as suas próprias portas, traçar os seus próprios rumos, definir o seu querer e construir um Direito à altura das necessidades do país.
O Direito é uma das prisões intelectuais em que Angola se encontra e da qual tem de se libertar.
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