domingo, 7 de dezembro de 2014

“ERA POSSÍVEL UMA SOLUÇÃO POLÍTICA”

ADRIANO  MOREIRA,  MINISTRO  DO  ULTRAMAR  DE  1961 A 1962 

          Um dia, Salazar chamou-o para o desafiar a pôr em prática as críticas que vinha formulando à política ultramarina do regime. Três anos antes, chegado de Nova Iorque, onde participara na 11 sessão da Assembleia Geral da ONU na qualidade de representante do Ministério do Ultramar, Adriano Moreira alertara o regime para a inevitabilidade da batalha “que se travará em África, com os meios de propaganda, de infiltração subversiva, de descrédito e (…) de sedição”.Aceite o seu programa de uma “autonomia progressiva e irreversível”, legisla a um ritmo frenético: estatuto do indigenato, lei das terras, código do trabalho rural, estudos gerais universitários. Dois anos mais tarde, Salazar volta a chamá-lo, mas agora para lhe dizer que é necessário “mudar de política”. Ao que replica, de imediato: “Acaba de mudar de ministro.” Mais de três décadas passadas, ainda acredita que o império português era um caso especial, a requerer uma solução diferente. Considera um erro a inflexão de Salazar (“um centralista, que temeu perder o controlo administrativo dos territórios ultramarinos”) e admite que se ele tivesse convencido de que uma III Grande Guerra era inevitável, pelo que se impunha a manutenção do império. Reserva os piores adjectivos para a descolonização, “uma debandada sem precedentes na História”. O que não o impede de considerar hoje viáveis os novos países. Licenciado em Direito com 21 anos, advogado da Standard Eléctrica aos 23, a frustrada experiência governativa, aos 40 anos, encontrou-o e deixou-o a leccionar no ensino superior. (“Nunca estive de acordo com a prática do anterior regime – e que infelizmente parece também ser deste – de fazer circular o pessoal político entre as cadeiras do governo e das administrações das empresas.”) Orgulha-se de ter convocado o último plenário do conselho ultramarino da História de Portugal e de ter animado já fora do Governo, a realização do I e do II congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa. Admira Churchil e o bispo da Beira, Sebastião de Resende, cujas mensagens e homilias (algumas defendendo medidas que protagonizou quando ministro) acaba de compilar e prefaciar no livro “Profeta em Moçambique”, que foi a Roma, esta Páscoa, oferecer ao Papa. O CDS constituiu a sua única experiência partidária. Hoje com 72 anos, espero ansioso que avancem em definitivo os Estudos Gerais da Arrábida – um projecto seu para a cooperação com os PALOP e as comunidades portuguesas no estrangeiro. “A minha velha paixão”, diz, com o entusiasmo que costuma ter quem está realmente apaixonado.
 Público – Podia ter sido de outra maneira o que aconteceu nas ex-colónias portuguesas de África?
ADRIANO MOREIRA – Não vale muito a pena tentar averiguar o destino do mundo se o nariz de Cleópatra tivesse sido diferente e feio…
P. – Mas o senhor viveu por dentro o que se passou… 
R. – Churchil (líder que muito admirei) disse no acto de posse que não tinha sido nomeado para presidir à liquidação do império britânico, e não tinha sido nomeado para outra coisa… Já nessa altura Portugal era um país exógeno, isto é, dependente da pressão de factores externos. Provavelmente a perspectiva portuguesa, durante muitos anos, foi a de conseguir que a Guerra de 1939 – 45 se resolvesse de acordo com o método antigo da balança de poderes: vencer o perturbador da ordem internacional (o Eixo, naquele caso) e depois recuperá-lo para a restauração da ordem antiga. E até talvez (trata-se de uma hipótese, apenas) houvesse no governo quem entendesse, como [o ex-Presidente dos EUA Richard] Nixon, que a III Grande Guerra era inevitável, o que tornava útil para os aliados a manutenção das estruturas portuguesas.
P. – Quando aceitou o convite para ministro do Ultramar, mais de metade dos africanos viviam já em territórios descolonizados. Salazar não compreendia os ventos que sopravam no mundo?
R. – É precisamente por isso que vale a hipótese explicativa da crença na utilidade da estrutura portuguesa. Os factos, contudo, rapidamente demonstraram que ela não tinha fundamento.
P. – Qual era o seu programa de acção?
 R. – Iniciar um processo acelerado de reformas que recuperasse o tempo perdido, de modo a encontrar um novo equilíbrio dentro da mesma área a que chamávamos “lusíada”. Daí as medidas que tomei: a revogação do estatuto do indigenato, os códigos das terras, do trabalho rural e da administração da justiça, o desenvolvimento do aparelho do ensino, sobretudo liceal, a institucionalização das universidades…
P. – Só entre 1 de Abril e 15 de Maio de 1965 saíram 49 diplomas! Que não convenceram, no entanto, nem a ONU, nem Amílcar Cabral, para quem tudo não passava de um reformismo destinado a manter o essencial…
R. – Eduardo Mondlane [fundador da Frelimo, assassinado em 1969] acreditou. Procurava-se um crescimento interior em todo o espaço português resultante da mobilização de todas as forças vivas, no sentido de assegurar a evolução pacífica do conjunto…
P. – …para onde?
R. – Para uma nova forma de associação política que alguns vieram a pretender que fosse um federalismo…
P. – Refere-se a Marcelo Caetano…
R. – Não só. O primeiro foi talvez Henrique Galvão. Julgo poder acrescentar Sarmento Rodrigues e Lopes Alves. Galvão, recebido como peticionário na IV Comissão [da ONU], declarou-se contra a independência dos territórios portugueses por não estarem preparados e defendeu uma confederação ou uma federação.
P. – E o senhor, o que defendeu?
R. – Que era necessário proceder-se a uma autonomia progressiva e irreversível de todos os territórios para manter o povoamento europeu que já existia e sem o qual não haveria sociedade civil viável. Concordava com o vaticínio de D. Sebastião de Resende, bispo da Beira e um dos grandes interventores portugueses no Consílio Vaticano II, segundo o qual aquele continente vivia “as suas horas de decisão definitiva”, pelo que se necessitava de “audácia atrevida” ou se corria o risco de haver “no futuro muito sangue a correr em África”.
P. – Insisto nos ventos da história. Só entre 1958 e 1962 a França concedeu a independência a 16 dos seus territórios.
R. – Acreditei e acredito que era possível a transição pacífica daqueles territórios. Queria uma solução em paz e o conceito que os militares ouviram do Governo era o de resistirem para dar tempo a uma solução política.
P. – Sem a discutir com os africanos?
R. – Convoquei o último plenário do conselho ultramarino da História de Portugal, onde vieram figuras de todo o lado. Foi lá que apareceu o célebre papel atribuído a Marcelo Caetano (mas por ele nunca reivindicado), defendendo a ideia da federação. Num mundo onde tudo evolucionou em guerra – a Argélia, ou o Vietname, a Índia, onde se esquecem que morreram 400 mil pessoas -, tentámos uma evolução em paz e esta ideia estava muito generalizada.
P. – Amílcar Cabral, por exemplo, estendeu por diversas vezes um ramo de oliveira a Portugal e o regime nunca respondeu.
R. – Cabral nunca teve contacto comigo, ao contrário de Mondlane, a quem encontrei na ONU. Ouça bem, eu quando saio do Governo é porque me dizem que é preciso parar as reformas, porque o poder central estava a sair enfraquecido das autonomias. Houve um segundo factor: o mito da guerra ganha. Dissera-se à tropa para aguentar pela solução política e agora surgia a ideia de que ganháramos a guerra.
P. – Continua a achar hoje que Portugal constituía um caso à parte entre as potências coloniais?
R. – Sim. A missionação portuguesa era mais profunda; não havia filhos clandestinos (um filho era uma espécie de sacramento laico); a sociedade civil era mais autêntica – o português quando emigrava para o ultramar era para ficar.
P. – Se compararmos, por exemplo, com os britânicos, a percentagem de quadros deixados pelos portugueses em África é uma vergonha…
R. – Por isso é que digo que a descolonização foi um desastre, uma debandada sem precedentes na História, como escreveu um dia António José Saraiva. Não há sociedade civil africana sem povoamento europeu radicado que aceite os direitos humanos, a economia de mercado e os regimes democráticos do modelo da ONU.
P. – Apesar disso, acha viáveis os PALOP?
R. – Continua a verificar-se aquilo que sempre disse em relação a Portugal – são países exógenos sujeitos a factores que traduziram, por exemplo, em Angola e Moçambique, em guerras por procuração, ao sabor dos interesses de potências estrangeiras – mas são países com inteira viabilidade. E com características únicas, como é o caso de Cabo Verde, um país mais perfeito que o Brasil do ponto de vista da integração étnica. Um cabo-verdiano nunca vê a cor da pele do seu interlocutor. 

Entrevista de Adelino Gomes
In o “PÚBLICO” de Sábado, 22 Abril, 1995

Sem comentários: