No mesmo dia, o próprio general Costa
Gomes lançou de Lisboa, através da Emissora Nacional, um apelo à população
moçambicana. Seguem-se vários comunicados do gabinete do primeiro-ministro, e o
Movimento das Forças Armadas toma posição, considerando a acção desenvolvida
em Lourenço Marques «alta traição aos superiores interesses dos povos de Portugal e de
Moçambique». No meio desta efervescência geral, a
Presidência da República distribui um comunicado no qual se declarava que o
chefe do Estado ratificava o protocolo do acordo assinado em Lusaka, no dia 7.
No domingo, Samora Machel emite de
Dar-Es-Salaam uma dramática mensagem que em Moçambique só viria a ser
radiodifundida na quarta-feira seguinte, depois de os revoltosos se renderem.
Nessa mensagem, ouvida em Lisboa, o presidente da FRELIMO exorta os militares
de Moçambique, pretos e brancos, a fazerem respeitar o acordo assinado em
Lusaka, e classifica o que se estava fazendo em Lourenço Marques como obra de
«bando de facínoras, composto por criminosos de guerra, agentes da PIDE-DGS, e
conhecidos representantes das forças exploradoras que tentam desesperadamente
opor-se à vontade de paz do povo moçambicano e do povo português».
«O desafio desses elementos sem pátria
e sem ideal — acentua Machel — é o de impedirem a independência de Moçambique.
Para isso, procuram provocar um clima de conflito racial, de caos e anarquia,
que sirva de pretexto para uma
internacionalização da opressão contra o nosso povo. Neste quadro,
recrutaram forças mercenárias e buscaram o apoio de forças racistas e
reaccionárias.» A terminar a sua alocução, Samora
Machel, que sublinhara que «a FRELIMO não tolerará uma agressão imperialista»,
afirma:
«Proclamamos solenemente
nesta ocasião histórica para o nosso povo, o cessar-fogo completo em todo o território
moçambicano entre as forças da FRELIMO e do Exército português. As forças
populares de libertação de Moçambique devem cessar imediatamente todas as
operações militares dirigidas contra o Exército português. Devem ao mesmo tempo
manter a máxima vigilância activa e actuar contra todas as actividades das
forças reaccionárias, em colaboração com as Forças Armadas portuguesas, dentro do espírito do acordo de Lusaka.»
Em Lourenço Marques, o ambiente era, no
domingo, cada vez mais escaldante. Uma manifestação de cerca de cinquenta mil
pessoas, entre as quais também grande número de negros que se recusavam a sair
do centro da cidade e a recolher ao «caniço» 'ghetto' onde habita a maioria
negra), apoia os revoltosos e brande bandeiras nacionais ao mesmo tempo que o
hino nacional é repetidas vezes entoado.
Gomes dos Santos, o provável
cabecilha da revolta, recebe uma chamada telefónica que o vespertino lisboeta Diário Popular conseguiu para o
Rádio Clube de Moçambique, e fornece esta visão da situação: «A população toda criou
condições para que o presidente da República possa efectivamente colaborar com
Moçambique, de maneira que não seja através de Mário Soares e Almeida Santos, e para que se chegue a uma conclusão.
«Não somos contra a FRELIMO, mas queremos negociações bem definidas e bem esclarecidas,
de maneira que Moçambique possa viver efectivamente em paz, com democracia e
com dignidade. Da maneira como estavam a
conduzir as coisas, com alguns elementos da FRELIMO a mandarem fechar as casas comerciais e fazendo uma greve colectiva até à independência, e não
permitindo sequer o serviço dos Bancos e do comércio, rapidamente se chegaria a
um estado de guerra civil, o que não pretendemos de forma nenhuma.
«O governo até pode ser totalmente
negro, mas tem de ser um governo digno.» Gomes dos Santos afirmou ainda que só
se aguardava a chegada a Lourenço Marques de representantes do presidente da
República, para se chegar a um acordo através de negociações. «Acataremos o que
o presidente da República ordenar. O que não podemos é cair num sistema de
partido único.»
Gomes dos Santos, esclareça-se, saíra dos
quadros do exército com o posto de sargento, e ultimamente era vendedor de
automóveis de uma firma de Lourenço Marques. Foi um dos fundadores do FICO,
organização constituída na sua maioria por soldados desmobilizados ou expulsos
das Forças Armadas, que logo a seguir ao 25 de Abril pretendeu congregar todos
os brancos de Moçambique, com um programa de acção de combate à independência.
Não veio, porém, a obter o apoio desejado.
O governo de Salisbúria, por intermédio do seu
encarregado de Negócios em Lisboa, transmite ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves o repúdio de Ian Smith quanto à
acção desenvolvida pêlos dissidentes em Lourenço Marques, registando-se
idêntica atitude do governo de Pretória.
Na cidade da Beira,
centro de Moçambique, a propaganda lançada do emissor-pirata instalado no Rádio
Clube ganha adeptos. Milhares de brancos manifestam-se
frente aos quartéis dos pára-quedistas, os quais são forçados a fazer
disparos para o ar. Rebentam duas granadas entre os manifestantes, que
debandam, e no chão ficam vários corpos de feridos, dos quais dois viriam a
morrer. De Lisboa, o brigadeiro
Vasco Gonçalves faz apelos telefónicos dirigidos a Oscar
Monteiro, elemento preponderante da FRELIMO, no sentido de
a FRELIMO não
intervir na questão.
O número de ex-agentes da PIDE que
estavam detidos e que são libertados em Lourenço Marques pelos
dissidentes brancos ascende a duzentos. Na rádio-pirata, começa a
falar-se em linguagem codificada com os «Dragões da Morte». E surgem com maior
gravidade os incidentes nos subúrbios, onde, além
das acções levadas a cabo por extremistas brancos, negros solidários com
os rebeldes se dedicam a uma autêntica depuração.
A colónia portuguesa da África do Sul,
que soma cerca de duzentas mil pessoas, toma partido, e pede ao Governo sul-africano que seja distribuída gasolina
aos seus membros1 a fim de que estes possam seguir
para Moçambique. Pretendem aqueles colonos «socorrer o nosso povo». A atitude surje
na sequência de várias mensagens transmitidas pela «Rádio Moçambique Livre»
aos portugueses de Joanesburgo, para que estes venham em seu socorro.
Em Lisboa, de novo, verifica-se que os
estúdios da Rádiotelevisão Portuguesa são guardados por um forte dispositivo
militar. As estações de rádio, por seu turno, pedem também protecção, e Almeida
Santos declara à Imprensa que «os reaccionários de Moçambique acendem a vela na
campa da era colonial».
No Rádio Clube de Moçambique, e para evitar
que forças militares penetrem no edifício ou dele se aproximem, é colocada à
frente da fachada e nos diversos acessos uma autêntica barreira de mulheres e
de crianças. Circula nessa barreira a afirmação de que as mulheres estão ali
voluntariamente, dispostas a morrer se necessário. Corre a notícia de que se
trata, na sua maioria, de mães de crianças que na madrugada de domingo haviam
sido raptadas e depois devolvidas em pedaços1.
Ao mesmo tempo que se verifica um
autêntico êxodo das populações brancas para a vizinha África do Sul, junto a
cujas fronteiras o governo sul-africano instalou «campos de recepção» aos
refugiados; ao mesmo tempo que se sabe ter a maioria dos ex-agentes da PIDE
fugido para aquele país; ao mesmo tempo que de Lisboa chega a Lourenço Marques
o enviado do presidente Spínola; ao mesmo tempo que nos subúrbios e em toda a
cidade de Lourenço Marques a violência grassa com exageros próximos da barbárie — em Lisboa regista-se a conferência de
Imprensa levada a cabo na Casa de Moçambique, no decurso da qual elementos daquele território afirmam
estar na posse de provas que levam à conclusão de que individualidades do
regime deposto estavam directamente implicadas nos incidentes de Lourenço Marques.
Gita Bernardes, do elenco directivo
daquela Casa de Moçambique, afirmou que
desde os princípios de Agosto havia todas as noites nos subúrbios de Lourenço Marques duas ou três pessoas «mortas
deli-beradamente por elementos da reacção que já andavam à solta». Que em viaturas estrangeiras e de Lourenço
Marques tinham sido descobertas, durante aquele mês, numerosas armas, quando da
realização de operações stop; que em vários barracões situados em pontos diferentes
da cidade estava armazenada grande quantidade de armas.
— A reacção —
sublinhou Gita Bernardes — não actuou face ao acordo de
Lusaka. Actuou
porque estava organizada, e tempo e oportunidades para isso não lhe faltaram.
1 Há quem afirme que os ocupantes rasgavam simultaneamente a
bandeira portuguesa. Não nos foi possível obter confirmação.
1 Tradicional
lutadora anti-racista. O governo sul-africano negava «vistos» de entrada aos jornalistas da Tempo.
1Estava-se em plena crise de combustíveis.
1 Negado oficialmente. Na verdade, não há qualquer depoimento que,
até à data, prove a veracidade do boato.