Canal
de Análise
por Prof. Dr. Luís Benjamim Serapião1
O Caso da Igreja
Católica em Moçambique
Pretória (Canalmoz) - Acabo
de ler a entrevista que o Canal de Moçambique/ Canalmoz teve com o Professor
Dr. Eric Morier-Genou. Achei, por isso, oportuno escrever uma breve
recapitulação do caso da Igreja Católica em Moçambique.
Um estudo da Igreja Católica
em Moçambique demonstra que houve dois tipos de Igrejas católicas no país – Igreja
Católica Colonial, e Igreja Católica Nacional/Moçambicana. A Igreja Católica
Colonial teve a sua origem nos séculos quinze e dezasseis, na era da expansão
portuguesa em África. O papado aplaudiu, concedeu o poder de posse, e remunerou
Portugal por meio de bulas tais como a Illius Qui Se, de Eugénio IV (19 de
Dezembro de 1442), a Romanus Pontifex (8 de Janeiro de 1454), a Eaquae Pro Bono
Pacis de Júlio II (24 de Janeiro 1507), só para mencionarmos alguns exemplos.
Nesta altura, o papado usou Portugal para expansão da cristandade em África. É
assim que se iniciaram as boas relações com a Igreja Católica.
Em 1940, Portugal,
aproveitando da já existente amizade, procurou usar a Igreja Católica na
administração das suas colónias. Ambos assinaram os documentos: a Concordata, e
o Acordo Missionário. Estes documentos, principalmente o Acordo Missionário
deram muitos privilégios a Igreja Católica nas colónias. Os bispos tinham de
ser portugueses e eram reconhecidos como oficiais do governo. Os padres que, em
princípio, tinham de ser portugueses, eram também oficiais do governo. Todos
eles recebiam salários do governo, e foi-lhes incumbida a responsabilidade de
educar e portugalizar os nativos africanos. O governo colonial além de pagar
salários a bispos e padres, tinha também a responsabilidades de construir
igrejas, escolas, e outras instituições sociais que beneficiavam os nativos
africanos. A educação dada aos nativos africanos, era limitada aos primeiros
quatro anos da fase do “ensino primário “ e era conhecida como escola
rudimentar. O ensino primário que aliás abrangia também os primeiros quatro
anos de ensino, mas de melhor qualidade, era reservado aos filhos dos colonos,
como também para outros não considerados nativos africanos.
Portanto, a Concordata e o Acordo
Missionário fundiram bem o interesse missionário com o interesse colonial. Como
disse o Professor Adriano Moreira, então ministro das colónias, ”o trabalho
Missionário não podia ser separado do interesse colonial”. D. Manuel Gonçalves
Cerejeira, Patriarca de Lisboa, acrescentou que o Acordo Missionário era um
documento importante da ocupação colonial cristã. O Primeiro-ministro António
de Oliveira Salazar explicando perante a Assembleia Nacional o sentido da
Concordata e do Acordo Missionário, disse que o fim da Concordata e do Acordo
Missionário era a aplicação do Acto Colonial, como remuneração espiritual
concedida pela Santa Sé, e que incluía a nacionalização dos objectivos
missionários que deveriam ser integrados para sempre no processo da colonização
portuguesa.
Neste processo os bispos nas
colónias eram privilegiados como oficiais superiores coloniais com a mesma
categoria de governadores, e os padres eram considerados também oficiais
coloniais, mas na categoria de administradores. Portanto, em princípio, todos
eles tinham de ser portugueses. Porém, havia uma excepção para os
padres/missionários. Se um bispo tinha carência de padres/missionários para
cobrir as necessidades da sua diocese, era autorizado a recrutar um número
reduzido de missionários estrangeiros.
Em resumo o que acima
descrevemos constituiu o que chamamos Igreja Católica Colonial em Moçambique.
Entretanto, o papado, na
década de cinquenta, principalmente com a independência de Gana, sentiu a
necessidade de formar um clero africano que haveria de tomar conta da Igreja
Católica africana. Por isso, escreveu encíclicas, tais como Evangelii Precones
(2 de Janeiro de 1951) e Fidei Donum (2 de Abril de 1957) ambas redigidas pelo
Papa Pio XII exortando os bispos nas colónias a formar um clero africano. Esta
exortação, não inquietou muito os bispos nas outras partes de África, pois eram
estrangeiros nestas colónias, interessavam-se em propagar a religião católica
como tal, e não tinham interesses nacionais/coloniais.
Em Moçambique, como em todas
as colónias portuguesas, como vimos acima, o caso era o outro. Formar um clero
moçambicano implicava dar o ensino para além do ensino rudimentar. Isto
constituía o perigo de formar moçambicanos nacionalistas que poderiam
questionar a Concordata e o Acordo Missionário. Foi exactamente o que aconteceu
com os seminaristas do Seminário Maior da Namaacha quando começaram a
questionar a prédica dos padres coloniais nas igrejas. O bispo Custódio Alvim
Pereira, de Lourenço Marques, reagiu vigorosamente contra os seminaristas.
Deu-lhes princípios escritos que explicavam a posição da Igreja Colonial em
Moçambique. Os princípios explicavam claramente que a Igreja colonial rejeitava
a teoria de independência para Moçambique e que os bispos não haviam de ordenar
padres que constituíssem um problema para o governo colonial, e assim forçou os
cabecilhas seminaristas a abandonar o seminário. Porém, enganou-se, pois nem
aqueles em quem ele confiava e que se deixaram ordenar, tardaram mostrar o seu
descontento para com a Igreja Colonial depois de ordenados sacerdotes. É de
notar que o sentimento nacional contra a Igreja Colonial era comum entre todos
os sacerdotes moçambicanos. Por isso, organizavam reuniões onde discutiam a
situação da Igreja colonial. Naturalmente, os bispos resistiam a estas reuniões
e juntamente com a PIDE tentavam frustrá-las. Porém, não conseguiram, dado que
o papado ficou ciente disso.
Em 1976, O Cardeal Mazzoni
com a bênção do Papa Paulo VI veio participar na reunião do clero moçambicano
que teve lugar em Guiua, Inhambane (26 de Agosto de 1974). Esta conferência foi
muito importante na história da Igreja Católica de Moçambique por ter rompido
oficialmente com a Igreja colonial, e dado início à Igreja
Nacional/Moçambicana. Nesta reunião, os sacerdotes insistiram na identidade do
clero e do povo moçambicano. Rejeitaram o conceito do “homem novo” imposto do
exterior como, por exemplo, o sistema colonial que insistia em portugalizar os
moçambicanos. Os sacerdotes queriam manter a moçambicanidade genuína. Esta
atitude custou-lhes muito caro, por que os que rejeitavam abertamente o
conceito colonial do “homem novo” eram presos e postos nas cadeias. Este foi
caso do Padre Domingos Ferrão de Tete e outros. Os Padres estrangeiros que
também comungavam com as ideia dos sacerdotes moçambicanos foram também parar à
cadeia. Este foi o caso do Padre André de Bels, professor do seminário menor de
Zóbuè, e do Padre Celio Rigoli um missionário italiano na arquidiocese de
Lourenço Marques. Com a intensificação da Guerra colonial, a PIDE, como também
os bispos, tornaram-se muito vigilantes em relação às actividades dos padres.
Foi assim que a PIDE e os bispos foçaram certas comunidades religiosas
estrangeiras a abandonar Moçambique. Entre as organizações que tiveram de abandonar
Moçambique conta-se a sociedade dos Padres Brancos, a sociedade dos Padres de
Burgos, a sociedade dos Padres Cambonianos e a sociedade do Padres do Sagrado
Coração.
Os sacerdotes moçambicanos
que já sofriam a perseguição dos bispos e da PIDE, e rejeitavam todo o sistema
da Igreja Colonial exigiram a transferência da hierarquia religiosa colonial
para a hierarquia dos sacerdotes moçambicanos. As demandas foram submetidas ao
Cardeal Mazzoni que tinha vindo participar na conferência dos sacerdotes moçambicanos
em Guiua. Foi assim que nasceu oficialmente a Igreja Nacional
Católica/Moçambicana no País. Mais uma vez, afirma-se que a Igreja Nacional/
Moçambicana rejeitou todos os privilégios contidos na Concordata e no Acordo
Missionário, e todas a características que faziam parte da Igreja Colonial.
Portanto quando a Frelimo assumiu o poder no Moçambique pós-colonial, encontrou
a Igreja Nacional/Moçambicana.
Será que a Frelimo não
acompanhava todos estes desenvolvimentos da Igreja Católica em Moçambique? Não
há dúvidas que já seguia todos os acontecimentos. Portanto, temos que encontrar
uma razão por que a Frelimo tomou uma atitude especial contra a Igreja
Católica. Vejo três razões principais: a natureza do sistema social político de
Frelimo, que incluía a criação de um “ homem Novo”; a natureza da guerra civil;
e a solução da guerra.
Comecemos com a ideia de
criação do “homem novo” que significava um homem marxista ateu. Vimos que na
conferência dos sacerdotes moçambicanos já insistiam na moçambicanidade; rejeitavam
o conceito de um “homem novo” imposto do exterior aos moçambicanos. Não queriam
nem um “homem novo” dos colonialistas, nem um outro “homem novo” de ateus
marxistas. Este conceito de “homem novo” era forçado à população e tinha
consequências desastrosas. No caso do sistema colonial, quem abertamente
resistisse ao conceito do “homem novo” colonialista era preso e posto na cadeia
colonial. No sistema da Frelimo quem abertamente resistisse à ideia do “homem
novo” era preso e posto em campos de reeducação.
A nova Igreja Católica
Nacional/Moçambicana não podia aceitar o “homem novo “ da Frelimo, pois o
conceito não admitia a crença da existência de Deus. A Igreja Católica/Nacional
decidiu resistir abertamente ao sistema sociopolítico da Frelimo. Submeteu os
seguintes documentos ao Presidente Samora Machel: “Igreja Católica na Revolução
Moçambicana”; A igreja Católica na Revolução”; “Um documento Sobre os Campos de
Reeducação” (11 de Maio de 1976). Naturalmente, estes documentos não foram do
agrado da Frelimo e contribuíram para que esta formação política hostilizasse a
Igreja Católica.
A segunda razão para a
Frelimo colidir com a Igreja Católica foi a natureza, origem e desenvolvimento
da guerra civil. Figurativamente falando, podemos aqui citar o caso do pescador
das águas turvas. A questão que se põe é esta: quem turvou as águas? E quem
está a pescar Estas duas perguntas suscitam duas teorias: Uma, que defende que
as águas já estavam turvas, e o pescador veio pescar; e a outra avança a teoria
de que o mesmo pescador é que turvou as águas e está a pescar. A Igreja
católica, liderada nesta opinião por D. Jaime Pedro Gonçalves diz que o
pescador encontrou as águas turvas. São estas as razões principais da guerra
civil; foram razões internas.
Quanto ao desenvolvimento da
guerra civil, a Igreja Católica, nas suas pastorais, avançou a teoria de que
ambos lados envolveram-se em atrocidades. Finalmente, a solução da guerra, foi
um outro ponto que mais uma vez irritou a Frelimo. A Igreja Católica
Nacional/Moçambicana escreveu pastorais que tentavam persuadir os líderes dos
dois lados da luta para entrar em negociações de paz. Entre 1979 e 1992, a
Igreja escreveu pelo menos vinte e quarto pastorais incluindo a famosa pastoral
A Paz Que o Povo quer (1987).
Em conclusão, esta
recapitulação da Igreja Católica em Moçambique salienta três pontos principais:
Primeiro, existiu uma Igreja
Colonial em Moçambique que, logicamente, foi mais privilegiada do que qualquer
outra organização religiosa em Moçambique.
Segundo, o clero moçambicano
resistiu e destronou a Igreja colonial e criou a Igreja Nacional/Moçambicana,
(26 de Agosto de 1974) da mesma maneira que a Igreja Católica tanzaniana, a
Igreja Católica queniana, Igreja Católica ugandesa; enfim, como todas as outras
Igrejas Católicas surgiram em outros países africanos.
Terceiro, a Igreja Católica
Nacional/Moçambicana, nunca gozou de privilégios de qualquer sistema político
no país. ( 1 Prof.
Dr. Luís Benjamim Serapião é Professor de Relações Internacionais no
Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Howard, Estados Unidos.
Uma das suas recentes publicações inclui, A Tainted Legacy; The Policies
of Samora Machel in Independent Mozambique (Lambert Academic Publishing, 2011).
Combater as igrejas para erradicar a
religião
João Cabrita
Na análise das relações Estado- Igrejas no período pós-independência, Eric
Morier-Genoud defendeu que a política do regime da Frelimo visava pôr fim a uma
suposta hostilidade da Igreja Católica para com as demais confissões
religiosas, e acabar com uma espécie de monopólio detido por essa igreja.
Esses não constituíram os factores determinantes da política do regime para
com as igrejas. Em 1975 não era discernível qualquer hostilidade entre as
várias confissões religiosas, nem tão pouco as igrejas regiam-se por esquemas
monopolistas. Bem antes do «25 de Abril», assistia-se a uma tentativa do regime
vigente de atrair para a esfera de influência do poder colonial a vasta
comunidade muçulmana, sendo de destacar o papel do governador-geral, Rebelo de
Sousa, junto de líderes islâmicos do norte de Moçambique.
Hindus, protestantes e outras confissões religiosas actuavam livremente.
Perseguidas no Malawi, as Testemunhas de Jeová encontrariam guarida em
Moçambique durante a vigência da administração colonial.
Em suma, seria um contra-senso o regime da Frelimo pretender pôr fim a algo
inexistente.
A questão de fundo foi outra, e tem necessariamente de ser vista à luz do
projecto político do regime da Frelimo. Tratava-se de um projecto de índole
totalitária, e projectos deste tipo não prevêem poderes paralelos.
Na óptica do regime, as igrejas constituíam um poder que era preciso
desmantelar, da mesma forma que se desmantelou o poder tradicional e o poder da
oposição, este último uma questão simples de resolver pois aqui o regime, como
que a demonstrar a complementaridade entre sistemas totalitários, beneficiou da
política do Estado Novo de não permitir na colónia qualquer actividade à margem
da União Nacional/ANP.
Efectivamente, o que o regime pôs em prática, como, aliás, ele próprio
assim o definiu, foi um «combate» contra as igrejas, visando, em última
instância, a erradicação das religiões no país, tidas como «sequelas das
sociedades tradicional-feudal e colonial-capitalista», sociedades essas que
também deviam ser desmanteladas e das suas cinzas surgiria o «homem novo» e um
«sociedade nova» – sociedade arregimentada, em que o partido no poder permeava
tudo e em que todos teriam de ter um «pensamento comum».
Um «combate» que não esperou pelo 3° Congresso dessa formação política, mas
que foi desencadeado logo nas primeiras semanas a seguir à independência.
O título da «Circular» emitida pelo Comissariado Político Nacional da
Frelimo em Outubro de 1975, era por demais explícito: «Combate Popular
Organizado contra Estandartes do Imperialismo».
Os «estandartes» estavam claramente identificados na «Circular» – seitas
religiosas e missionários – e aos cidadãos o documento prevenia de forma clara
e contundente: Deviam compreender que frequentar ou cumprir as palavras desses
missionários é estar a trabalhar contra Moçambique, é estar a servir as potências
imperialistas. (1)
Um mês após a independência, o regime procedeu ao confisco de bens
pertencentes às igrejas. Para dar ao acto um cunho legal, socorreu-se do
eufemismo nacionalizações para assim legitimar a violação de um direito
fundamental, o da propriedade. Em 1978, houve a intenção do regime de levar até
às últimas consequências a sua acção combativa. Depois de ter privado as
igrejas de meios para poderem funcionar, o regime restringiu a construção de
novos templos com o argumento de que se devia dar prioridade à construção de
escolas, hospitais e fábricas. A publicação e distribuição de literatura
religiosa foram igualmente coarctadas. No contexto do «combate», o regime impôs
restrições a quem quisesse cursar teologia, determinando que apenas poderiam
matricular-se quem tivesse cumprido o Serviço Militar Obrigatório, e prestado
serviço no aparelho de Estado, caso fossem provenientes de escolas oficiais. Em
tudo isso não se vislumbrava o mais ténue dos sinais de que se tratava de uma
intenção do regime em nivelar ou equilibrar as relações entre confissões
religiosas.
Será que o «combate» movido contra as igrejas foi de facto um
desenvolvimento positivo, como defende Eric Morier-Genoud? Certamente que a
mesma opinião não é partilhada por crentes que em Naisseko ficaram com os
membros superiores inutilizados por acção de cordas embebidas em água e sal,
apenas por não abdicarem da sua confissão religiosa.
Nem por esses, nem por padres humilhados em Unango, nem tão pouco por
sacerdotes arrastados das suas dioceses em Cuamba, Tete e Manica e em muitas
outras partes do país, hoje dados como desaparecidos.
(1) O texto integral da «Circular» assinada pelo
Comissário Político Nacional da Frelimo, Armando Emílio Guebuza, está
disponível na edição do jornal «Notícias» de 17 de Outubro de 1975 pp 2,5.
Canal de Moçambique – 15.08.2012
Canal de Opinião
Por Eric Morier-Genoud
Igrejas e Estado em
Moçambique após a independência
Genebra (Canalmoz) - O Prof.
Dr. Luís Benjamin Serapião e João Cabrita debruçaram-se nas páginas centrais do
Canal de Moçambique de 15 de Agosto de 2012 sobre o assunto das igrejas e do
Estado em Moçambique.
Isto veio porque eles
queriam contestar alguns elementos contidos na entrevista que eu dei ao mesmo
jornal no mês anterior.
Agradeço o contributo destes
dois intelectuais e aprecio o debate que emerge assim nas páginas da vossa
publicação. Queria, no entanto, esclarecer, nas linhas a seguir, algumas minhas
posições que me parece terem sido mal representadas assim como trazer algumas contribuições
adicionais.
Para começar, o Prof. Dr.
Serapião avança o argumento de que teria havido na história de Moçambique duas
igrejas católicas, uma colonial e outra nacional/moçambicana. Concordo com esta
análise no geral e acho que é um ponto importante para bem entender a
história da igreja no país e a força que ela teve antes e, ainda mais, depois
da independência. Pois, se tivesse havido só uma igreja colonial, como teria a
igreja conseguido continuar a existir depois de 1975?
Isto dito, discordo do
Professor Serapião em relação a ideia que a ruptura entre a igreja colonial e a
igreja nacional teria sido absoluta e perfeita com o advento da independência
em 1975. Pode ser um bom argumento didáctico e talvez político, mas a verdade é
muito mais subtil e complexa. Houve muitas rupturas com a independência, em
particular nas relações de poder dentro da instituição católica, mas houve
também muitas continuidades, sejam elas de pessoal, na maneira de operar, ou
nas ideias e na teologia.
Por isso não me parece
adequado afirmar que a igreja colonial desapareceu em Moçambique em 1975 e que
só ficou uma igreja nacional que não gozou “de privilégios de qualquer sistema
político no país”. Tal declaração dá a impressão de que a igreja nacional era
uma igreja nova sem ligação nenhuma ao passado. Ora a igreja nacional
desenvolveu-se dentro, e sob impulso, da igreja colonial; ela guardou elementos
desta igreja após a independência (incluindo algum pessoal colonial e
colonialista); e ela quis guardar todas as propriedades que a igreja colonial
tinha recebido do poder português.
No seu texto, João Cabrita
vai mais longe ainda ao argumentar que a igreja católica não tinha posição
dominante antes da independência e ao recusar a ideia de que havia competição
entre instituições religiosas antes de 1975 – ele diz que isto foi “algo
inexistente”. Ignora, assim, a Concordata e o Acordo Missionário, vigentes até
1975, que faziam com que o Estado colonial pagasse salários a todos
missionários católicos, entregasse terras gratuitamente às missões católicas, e
pagasse viagens à Metrópole ao pessoal católico, entre outros benefícios.
Ignora também a política concomitante e inversa, de oposição a todas outras
instituições religiosas no país – protestantes, muçulmana, ziones, etc. – a
quem o governo recusava personalidade jurídica e fazia tudo para impedir o seu
progresso.
Para argumentar que não
havia monopólio católico nem competição entre religiões, Cabrita dá o exemplo
da comunidade muçulmana que o Estado português tentou atrair para a sua esfera
de influência antes da independência, e o exemplo das Testemunhas de Jeová do
Malawi que foram acolhidas pelo governo português no fins dos anos 1960, quando
perseguidas pelo Presidente Banda.
Estes dois exemplos são
bastante selectivos e apresentados de maneira muito parcial. Pois, se alguns
muçulmanos foram efectivamente cooptados pelo poder colonial nos fins dos anos
1960 (após anos de discriminação), a verdade é que outros foram ao mesmo tempo
presos, e alguns assassinados pela polícia política colonial, inclusive alguns
Sheiks.[1] No que toca às Testemunhas de Jeová, o refúgio dado pelo poder
colonial não pode ser usado como argumento de igualdade das religiões em
Moçambique. Primeiro porque o refúgio dado a eles foi nas zonas fronteiriças a
fim de criar uma zona tampão contra à entrada da Frelimo na Zambézia, uma vez
que as Testemunhas de Jeová recusam-se (como sempre) a entrar em política.
Segundo, este desenvolvimento aconteceu ao mesmo tempo que o poder colonial
continuava a reprimir as Testemunhas de Jeová moçambicanas que eram vistas como
subversivas por recusarem a dar apoio aos portugueses, fazer o serviço militar,
e saudar a bandeira nacional, pois não queria entrar em política nenhuma.[2]
Se o período colonial não foi
todo bonito, sem desigualdade e competição entre religiões, o período
pós-independência também não foi todo feio. Não foi como o afirma Cabrita, anos
onde a Frelimo tinha somente um “projecto de índole totalitária”. Quer se
queira, quer não, a Frelimo só desencadeou uma luta aberta e total contra as
igrejas a partir de 1978. É verdade que houve alguma luta contra instituições
religiosas antes disso, mas não foi total e foi muita especifica e limitada – a
Igreja Nazareno por causa de ligações à PIDE e ao imperialismo, às Testemunhas
de Jeová por terem sido utilizadas pelos militares portugueses, etc. Não houve
proibição de usar roupa religiosa em lugar público, não houve igrejas fechadas
em massa, e não houve campanhas em prol do ateísmo como foi o caso entre 1978 e
1982. A viragem de 1978 tem a ver com o III Congresso onde o Partido e o Estado
fundiram-se e com o afastamento dos elementos religiosos praticantes dentro da
liderança da Frelimo, afastamento sem o qual a viragem não teria sido possível.
[3]
Finalmente, João Cabrita
afirma-se escandalizado pelo facto de eu ter afirmado que a situação religiosa
no país é positiva hoje. Aliás, ele entende que dizendo isso, eu teria afirmado
que o combate às religiões teria sido positivo. Há aí uma má interpretação,
pois o que foi dito e escrito, e que confirmo uma vez mais, é que a situação
religiosa actual no país é positiva e que as nacionalizações contribuíram para
isto (não a repressão!). Temos que ver pois que, se não houvesse
nacionalizações, a igreja católica teria continuado a controlar 90% das escolas
no país como no tempo colonial (controlava 89.3% das escolas no país em 1964),
e isto teria criado problemas num país independente onde aproximadamente 20% da
população é católica, 20% é muçulmana, 30% é cristão não-católica, e a maioria
adepta, parcial ou total, da religião tradicional. (Eric Morier-Genoud, Queen’s University Belfast)
[1]
Edward Alpers, “Islam in the Service of Colonialism? Portuguese
Strategy During the Armed Liberation Struggle in Mozambique”, Lusotopie
1999(Paris, Karthala, 1999), pp. 165–184; Michel Cahen, ‘Le colonialisme tardif
et la diversication religieuse au Mozambique (1959–1974)’, Lusotopie
1998(Paris, Karthala, 1998), pp. 377–395; e Fernando A. Monteiro, O Islão, o
Poder e a Guerra (Moçambique 1964–1974), Porto, Universidade Portucalense,
1993.
[2]
Pedro Pinto, “Jehovah’s Witnesses in colonial Mozambique”, Le Fait
Missionnaire. Social Sciences & Missions, No. 17, Dezembro de 2005,
pp.61-123
[3]
Eric Morier-Genoud, “Of God and Caesar. The Relation between Christian Churches
& the State in post-colonial Mozambique, 1974-81”, Le Fait Missionnaire. Social
Sciences & Missions, No. 3, 1996, Setembro de 1996; Eric Morier-Genoud,
“L’Islam au Mozambique après l’indépendance. Histoire d’une montée en
puissance”, L’Afrique Politique (Paris: Karthala, 2002), pp.123-146.
Análise
Por Luís Benjamim Serapião
A Natureza da Igreja
Católica Nacional/ Moçambicana
Os médicos continuaram a
usar os hospitais que os colonialistas deixaram; os políticos passaram a viver
e a trabalhar nas residências que os dirigentes colonialistas habitavam. A
Igreja Católica Nacional/ Moçambicana, como todas as demais instituições no
país, assumiu e perpetuou as infra-estruturas religiosas deixadas pelo governo
português. No entanto, nunca foi considerado como um privilégio o facto de os
médicos usarem as infra-estruturas físicas de saúde herdadas do colonialismo,
nem tão pouco um privilégio os governantes do Moçambique pós-colonial passarem
a habitar as residências dos antigos chefes colonialistas.
Hoje, há interesse entre o
mundo académico em investigar a diferença entre a Igreja Católica Colonial e a
Igreja Católica Nacional/Moçambicana que surgiu no período pós-colonial. A
corrente teórica defendida pelo Professor Dr. Eric Morier-Genoud sustenta
argumentos que sugerem que houve uma certa continuidade da Igreja Católica
Colonial na nova Igreja Católica Nacional /Moçambicana Depois de admitir que
houve alguma rotura da Igreja Católica Colonial em relação à Igreja Católica
Nacional/Moçambicana, Morier-Genoud acrescenta que ʺhouve também muitas continuidades,
sejam elas de pessoal, na maneira de operar, ou nas ideias e na teologia”.Tenta
persuadir o leitor quando adianta: ʺNão me parece adequado afirmar que a Igreja
Colonial desapareceu em 1975 e que só ficou uma igreja nacional que não gozou
‘de privilégios de qualquer sistema no país’”. Por fim, realça que ʺela (a
Igreja Nacional/Moçambicana) guardou elementos após a independência (incluindo
algum pessoal colonial e colonialista); e quis guardar todas as propriedades
que a Igreja Colonial tinha recebido do poder português.
O que acima se disse é o
resumo dos argumentos de Morier- Genoud em apoio da tese da continuidade.
Porém, contradizendo os argumentos acima citados, é um facto que houve uma
rotura total e completa da Igreja Nacional/Moçambicana com a Igreja Católica
Colonial. Primeiro, o argumento que houve pessoal colonial/colonialista na
Igreja Nacional/Moçambicana é contradito pela acusação da Frelimo contra a
Igreja Nacional/Moçambicana quando alega que ela é racista porque não tinha
indivíduos de descendência colonialista no seu pessoal. É também de notar
que o pessoal que integrou a nova Igreja Católica conformou-se com a ideologia
pastoral da nova hierarquia. Quanto à maneira de operar, ou nas ideias e na
teologia a que Morier-Genoud se refere para provar a tese da
continuidade, bastava nós reflectirmos sobre o princípio filosófico que os
escolásticos defendem: operari sequitur esse.
Se um indivíduo é
colonialista terá de operar/agir como um colonialista. Isto explica porque é
que a teologia pastoral do tempo colonial era uma teologia colonialista.
Note-se que os seminaristas do Seminário Maior da Namaacha acusaram a Igreja
Católica Colonial, (especialmente da arquidiocese de Lourenço marques), de
pregar o colonialismo nas Igrejas. (Serapião, 1972). Felizmente, na Igreja
Católica Nacional/Moçambicana houve rotura completa com a teologia pastoral
colonialista. Isto é, nunca mais se fez a apologia do colonialismo nas igrejas.
Quanto à referência de que a
Igreja Católica Nacional/Moçambicana quis guardar as propriedades que a Igreja
Colonial tinha recebido do poder português, não se pode descurar uma outra
realidade concreta: o procedimento adoptado em relação às infra-estruturas
físicas que o governo colonial deixou no país. Os médicos continuaram a usar os
hospitais que os colonialistas deixaram; os políticos passaram a viver e a
trabalhar nas residências que os dirigentes colonialistas habitavam. A Igreja
Católica Nacional/Moçambicana, como todas as demais instituições no país,
assumiu e perpetuou as infra-estruturas religiosas deixadas pelo governo
português. No entanto, nunca foi considerado como um privilégio o facto de os
médicos usarem as infra-estruturas físicas de saúde herdadas do colonialismo,
nem tão pouco um privilégio os governantes do Moçambique pós-colonial passarem
a habitar as residências dos antigos chefes colonialistas.
Em toda a África os governos
e as sociedades civis continuaram a fazer uso das infra-estruturas físicas
deixadas pelos colonialistas. Em Moçambique a ocupação e destruição das igrejas
tinha mais como finalidade erradicar aquilo que era o símbolo da
espiritualidade do povo moçambicano. É dentro deste contexto, que a Igreja
Católica Nacional/Moçambicana reagiu negativamente. Não se tratava de uma
questão de defender privilégios herdados do governo colonial, mas antes
defender os símbolos da espiritualidade do povo moçambicano. (Canal de Moçambique)