quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

“Se não temos cultura de reconciliação, preparamo-nos para a guerra”

Entrevista a Lourenço do Rosário
Lourenço do Rosário é uma figura proeminente da academia e das letras moçambicanas. Partindo dos seus livros, o autor de “Singularidades” diz que a unidade nacional ainda não é um facto e a falta de cultura de reconciliação põe em risco a paz no país.
Publicou “Contos moçambicanos do vale do Zambeze”. Que importância tem aquela região no imaginário moçambicano?
Não sei se terá importância em todo o imaginário moçambicano ou se tem, sobretudo, nas terras que banham as margens do rio, nas actuais províncias de Tete, Sofala e Zambézia, porque o rio teve uma importância enorme mesmo antes de Moçambique ser Moçambique. E é esse imaginário que nós descobrimos nos contos orais que mostra que o rio marcou bastante o imaginário das pessoas daquela região.
Oscilando entre a fábula e o conto, este livro alicerça-se muito na moral. É apologista de que a literatura e a arte no geral valem mais pelo seu lado utilitário?
Não. Há um equilíbrio entre o lado utilitário e o estético. Quer na literatura oral, quer na escrita, a forma de contar é fundamental. O aspecto utilitário, sobretudo na literatura oral, tem que ver exactamente com o facto de todos os géneros deste tipo de literatura constituírem manuais de educação, de história e da cultura em si. As sociedades de tradição oral não têm um sistema de educação enquanto tal. A literatura aí tem o seu aspecto utilitário, do ponto de vista de aprendizagem para a vida.
O Zambeze é um espaço de confluência cultural. É onde o país se reencontra. Porque razão este livro traz apenas contos originalmente em língua sena?
Por um lado, por questões pessoais. sou originário da região, bilingue de natureza, porque as mulheres da minha família comunicavam entre si em língua sena e os homens em língua portuguesa. Aprendi, eu e os meus irmãos, naturalmente as duas línguas, desde a tenra idade. Por outro lado, trago contos em língua sena porque cresci na região do Zambeze. Portanto, há uma ligação, digamos assim, telúrica com aquela região. Estes contos fazem parte de um “corpus” vasto que recolhi pessoalmente e também fui buscar em outros autores, e serviram para a minha tese de doutoramento. Fui eu próprio que os traduzi, tendo contado com ajuda de algumas pessoas. Consultei contos de outras origens, da zona makuwa, do sul de Moçambique, mais para ver aproximações e dissonâncias. Os do Zambeze foram os que me deram maior ligação intimista.
Quando assume o narrador de um texto literário como autor, reconhece que aquela entidade tem uma ligação umbilical com o autor empírico, na perspectiva clássica da Teoria da Literatura?
Sim, claro, assumo, porque o autor empírico é aquele que manifesta, digamos assim, aspectos da sua própria experiência, da sua própria convivência com a temática que vai desenvolvendo. Nessa perspectiva, não é possível um narrador - estamos no mundo da literatura oral - desenvolver um determinado tema na sua própria cultura em que não possa manifestar a sua própria experiência, enquanto realidade empírica da sua vida.
Parte desses contos focam o “eu” feminino. Como estabelece a relação entre a mulher, a literatura e artes moçambicanas?
É um paradoxo, porque, na literatura oral, quem mais conta estórias, geralmente, é a mulher. Julgo que este paradoxo resulta deste processo de urbanização da sociedade moçambicana, em que a mulher perdeu o espaço de intervenção social e cultural e foi remetida às outras tarefas que não são do espaço público, quando a grande força da educação das comunidades são elas. Quando passamos para uma sociedade urbana, em que esse tecido é rompido, acontece a secundarização do papel da mulher. Mas, ultimamente, temos manifestações de um “corpus” da literatura feminina no país.
Trabalhou muito à volta da literatura oral. Aliás, um dos seus livros é intitulado “A narrativa africana de expressão oral”. Na sua opinião, como é que o universo oral se impõe na escrita e que repercussão daí advém?
A nossa sociedade, com muito mais força e razão, deve considerar a primazia da literatura oral sobre a literatura escrita. Criamos uma cosmogonia do chamado padrão da cultura moçambicana. A partir daí, parece-me que mesmo os nossos escritores, quando escrevem sobre questões urbanas, tendem a retratar episódios do dia-a-dia, com forte dosagem de uma visão oral dos problemas. Não temos muita tendência lírica ou abstracta, como acontece nas sociedades industriais. A nossa literatura é muito concreta, como na tradição oral. Esta é a matriz fundamental entre a nossa literatura oral e escrita. 
A sua tese de doutoramento, que deu origem a este livro, é considerada um estudo pioneiro no domínio da literatura oral, no contexto da Universidade de Coimbra. Que motivações o levaram a desenvolver um estudo nesta vertente, numa altura em que a maioria dos estudiosos versava sobre a escrita?
Talvez, precisamente por isso (…) poderia ter pegado numa temática da literatura escrita, mas o ter trabalhado na recolha do património oral moçambicano, através de duas campanhas lançadas pelo Ministério da Educação nos finais dos anos 70, motivou-me bastante para pretender que aparecesse ao nível da academia um estudo sistematizado do que foram tentativas, no período colonial, de estudo dos usos e costumes dos povos de Moçambique. Julguei que devia seguir nesta senda, mas entrando já num mundo de estudo sistemático, tentando criar uma teoria dessa produção oral, de modo a que pudesse balizar, digamos assim, quer na forma, quer nos conteúdos, a produção da sociedade com tradição oral. Felizmente, saiu-me bem como prova académica, assim como em livro, pois teve uma boa aceitação ao nível da academia.
Publicou três edições de “Singularidades”. Que diferencial quis trazer com estes três livros?
“Singularidades” sou eu como espelho, tendo como cenário o mundo que me rodeia. Portanto, tento dar as minhas impressões a mim próprio, mas, ao mesmo tempo, falando do que vejo e sinto, quer do ponto de vista académico, quer do ponto de vista literário. São artigos intimistas, o meu ponto de vista sobre os problemas.
Que “singularidades” são essas, nesta diversidade cultural que caracteriza o nosso país?
Cada cidadão é simultaneamente indivíduo e colectivo. As “singularidades” aqui estão no facto de podermos nos reconhecer como indivíduo singular numa colectividade que o enforma, inclusivamente no nosso modo de ver e de olhar para o que transforma as nossas opiniões e ideologias – que muitas vezes é um défice que nós temos aqui, porque somos muito prepotentes. Nas nossas discussões, somos donos da razão e muitas vezes autoritários, não aceitamos a diversidade. Dentro desta linha, acho que nós devemos intervir, dizendo que o melhor que nós podemos fazer para a sociedade é aceitar a diversidade. E respeitar essa diversidade significa cada um dar uma opinião sobre a mesma coisa.
Em “Singularidades III”, preocupa-se em reflectir sobre a educação, a paz, a liberdade, a democracia e o poder. Que Moçambique temos hoje?
Do ponto de vista social, é uma sociedade dilacerada, com muitas dúvidas e incertezas, que se reflectem na própria situação política e económica, naturalmente. Nós verificamos que o debate à volta da pobreza, sobre a questão de unidade nacional, sobre a democracia, as liberdades e os direitos é fragmentado. Não há, digamos assim, uma linha condutora que nos permita dizer que vou alinhar por ali ou por aqui. Podemos pensar, por exemplo, na pobreza. Os académicos e organizações internacionais dizem que a pobreza aumentou em  Moçambique, mas o discurso político e o Governo, naturalmente, dizem que não, temos mais casas, mais estradas, mais rádios, etc. E nós não sabemos em que acreditar. Ficamos atónitos e questionamo-nos por onde podemos alinhar. De facto, nós viajamos pelo país e notamos que há mais estradas e melhores casas, mas estudos de investigação provam também que a distribuição da riqueza faz com que haja mais pobres agora do que havia no passado. Isto ainda está no plano do debate. Não é possível formar, a partir deste debate, uma linha ideológica que faça, por exemplo, com que quem quer governar o país traga um discurso programático que diga ‘vou seguir por este caminho’ e que nós possamos seguir. Em termos políticos, acabamos de assistir a todo este calendário eleitoral. Muitos de nós votamos por questões de convicção pessoal e de adesão comum, como podemos votar num Ferroviário ou Maxaquene, muitas vezes sem saber porquê. Não há um discurso convincente, em que possamos dizer isto é um programa a seguir.
Na sua opinião, a unidade nacional é um facto ou uma utopia?
Temos uma história e um território que herdámos do Estado colonial, marcos que nos identificam efectivamente. Mas qualquer cidadão resolve e, por quaisquer problemas, pode pôr em causa estes marcos. Isto significa que nós não estamos convencidos desta unidade nacional como dever sagrado de que devemos pensar em Moçambique com a história e território que temos. e isso não está e não deve ficar em causa, porque traz um trauma nas pessoas, ao parecer que estamos nas mãos de quem quer que seja. Isto tudo são problemas que se apresentam em “Singularidades”. A unidade nacional devia ser um facto, mas, se calhar, ainda estamos a perseguir este conceito. Não sei se ainda como uma utopia, não me parece, já deixou de ser utopia, é uma realidade, mas muito ténue. Qualquer pessoa pode achar que tem direito de a pôr em causa.
Há uma ideia que José Rodrigues dos Santos repete muito nos seus livros: “queres paz, prepara-te para a guerra”. Acha que isto traduz os conflitos que se geram no mundo?
Essa frase é controversa, é uma frase que criou os impérios e está na base do pensamento de Maquiavel, que diz que para se implantar a democracia, primeiro, tinha de se passar pelo príncipe. Não me parece que isto tenha de ser uma ideologia. Mas, no caso de Moçambique, são vários os factores que concorrem para a guerra pela paz. Um dos grandes défices que nós temos aqui é a cultura de reconciliação. Se não temos cultura de reconciliação, estamos permanentemente a prepararmo-nos para a guerra. Perdemos uma grande oportunidade de salvaguardar a cultura de reconciliação nestes vinte anos, entre 1992 e 2012, e pensamos que podíamos passar por cima, exercitando formalmente os mecanismos da democracia, com as eleições de tempo a tempo, com formação de governos, mas sem essa cultura de reconciliação, sem a tolerância social, naturalmente estamos a prepararmo-nos para a guerra para ter paz.
O que mais o alegra e o que mais o entristece no país?
Agrada-me sermos um país de esperança, de múltiplas oportunidades, por isso, Moçambique é muito atractivo para muita gente que vem cá investir. O que mais me entristece é nós os moçambicanos não termos conseguido ainda olharmo-nos nos olhos e dizer você é feio ou bonito, e depois irmos tomar um copo com o outro.

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