Quando a mãe Joana e o Nhanga se queixarem amargamente do aumento do preço do pão, não se esqueçam do passado recente. Lembrem-se da farra em que José Eduardo dos Santos (JES) e os seus ministros andaram nas últimas décadas, praticando um esbanjamento de dinheiros públicos inaudito e criminoso, como agora se comprova.
Entrou nos tribunais um processo criminal cujos factos descritos são o espelho da completa selvajaria financeira que reinou durante o mandato de JES. O dinheiro público serviu para tudo, desde senhas de alimentação para o Kero à constituição de frotas privadas de táxis, passando por participações pessoais em bancos e fretamentos de aviões sem qualquer regra. O dinheiro saiu dos cofres públicos ao ritmo de milhões de cada vez e sem qualquer controlo. É uma fotografia do que se suspeitava ter sido a ruinosa gestão financeira de JES, e que agora se confirma.
No passado dia 16 de Janeiro foi produzida pelo magistrado do Ministério Público José Martinho Nunes a acusação criminal no âmbito do processo n.º 23/18, em que é principal arguido Augusto Tomás, ex-ministro dos Transportes. Constam também, como arguidos, altas figuras do seu ministério ou a ele ligados, como Isabel Cristina Ceita de Bragança, Rui Manuel Moita, Manuel António Paulo, Eurico Pereira da Silva.
Augusto Tomás é acusado da prática de sete crimes: um crime de peculato em forma continuada, um crime de violação das normas orçamentais em forma continuada, um crime de abuso de poder, dois crimes de participação económica em negócio, um crime de branqueamento de capitais e, finalmente, um crime de associação criminosa.
O crime continuado
O crime continuado consiste na prática repetida do mesmo crime. Por exemplo, o facto de roubar uma maçã todos os dias pode ser encarado como um crime continuado, ou então trata-se da prática de vários crimes, um por cada dia. A moderna doutrina penalista prefere adoptar o conceito de crime continuado para estas situações, o que permite aplicar apenas uma pena única, mas evita prescrições (impunibilidade por ter passado muito tempo).
Esta acusação tem a particularidade muito interessante de enquadrar vários comportamentos não no Código Penal, mas na mais recente legislação referente a crimes económico-financeiros, como a Lei da Probidade Pública (2010), a Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais (2011) e a Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento (2014). Leis deste século e não do século XIX. Por esse facto, é de aplaudir a evolução do Ministério Público (MP), que no passado revelou dificuldade em lidar com estas novas realidades jurídicas.
A peça apresentada pelo MP é rica em factos, e é sobre eles que nos vamos debruçar. Quanto a questões de direito e dogmática penal, tem algumas falhas, mas competirá aos advogados de defesa enumerá-las e apontá-las. A nós interessa-nos o simbolismo dos factos, bem sabendo que todos gozam, à luz da Constituição, da presunção de inocência e que compete ao MP, em julgamento, provar aquilo que afirma.
Augusto Tomás nasceu em Cabinda em 1957, licenciou-se em Economia na Universidade Agostinho Neto e concluiu um mestrado em Economia do Desenvolvimento na mesma instituição e na Universidade de Coimbra. Desde pelo menos 1989 que ocupava cargos de destaque na estrutura política angolana. É um veterano dos governos de JES. Nesse longínquo ano, foi nomeado vice-ministro da Indústria, depois foi governador de Cabinda, ministro da Economia e Finanças, vice-presidente da Comissão Económica do Conselho de Ministros e ministro dos Transportes. Nesta medida, Tomás não é um novato que chegou ao governo recentemente e se baralhou com as regras ou cometeu erros primários. É um homem do sistema, que criou o sistema e o usou em seu próprio benefício de forma despudorada, de acordo com os factos elencados pelo MP.
Os carregadores
da associação criminosa
As situações levantadas e descritas pela acusação são variadas e ocorreram entre 2008 e 2017, mas todas têm um elemento comum: o uso abusivo dos fundos públicos.
No núcleo da acusação está o Conselho Nacional de Carregadores (CNC), um instituto público dependente do Ministério dos Transportes, que tinha responsabilidades no controlo do comércio marítimo internacional, mas que na prática terá funcionado como um tesouro privativo do ministro e seus associados.
O descontrolo e pagamento de despesas em clara violação da lei abundam na peça processual. Corrompendo as regras orçamentais, o CNC pagava os subsídios de alimentação dos funcionários do Ministério dos Transportes. Mais de cinco milhões de dólares foram gastos em senhas depois descontadas nos supermercados Jumbo e Kero. Escusado será dizer que os donos do Kero são Manuel Vicente e os generais “Kopelipa” e Dino do Nascimento. Haverá aqui coincidência? Ou será este o modo de operação do regime, em que tudo funciona em circuito fechado? No mesmo sentido, existem gastos ilegais superiores a três milhões de dólares em fretamentos de viagens com a empresa de aviação aérea Bestfly. Trata-se da empresa de jactos privados associada ao próprio Augusto Tomás, que integrava o consórcio da nova sociedade de aviação fantasma que João Lourenço travou no início do seu mandato. Obviamente, este é um mero exemplo de dinheiros gastos em empresas de amigos, violando flagrantemente as regras orçamentais.
Mais grave é o desvio puro e duro de verbas do Estado para iniciativas privadas, como descreve o MP. Para a Nova Somil, empresa de Augusto Tomás, foram transferidos 80 mil dólares sem justificação. Valor mais elevado, superior a sete milhões de dólares, foi para a CIMA – Companhia Industrial de Montagem e Metalomecânicas de Angola SA, constituída em 2010, cujo objecto era a montagem de autocarros chineses. Aparentemente, esses milhões apenas correspondiam a 15 por cento do capital social da empresa, com o valor de 7500 dólares – uma sociedade anónima privada. Seguiram-se algumas engenharias legais pelas quais os accionistas beneficiários desse capital, Francisco Itembo e Abel Cosme, directores, respectivamente do CNC e da Unicargas, passaram os direitos sobre essas acções para o CNC e a Unicargas. Pelo que se percebe da construção do esquema, o Ministério dos Transportes financiou a empresa em sete milhões de dólares e ficou com uma participação de 15 por cento, no valor de 7500 dólares, que obviamente não lhe cabia. Os restantes milhões foram “oferecidos” aos sócios privados…
Outra “oferta” generosa a privados aconteceu no sector dos táxis. Mais propriamente na empresa Afritáxi. Aqui, Augusto Tomás mandou transferir mais de três milhões de dólares para a empresa ainda em formação, o que lhe permitiu comprar várias viaturas de marca Kia. Neste caso, o Ministério, por via indirecta, nem com 15 por cento ficou. O mais curioso é que Rafael Marques tenha denunciado este cambalacho em 2015, no Maka Angola.
Também a AGSM, empresa dedicada à montagem de veículos do grupo Volkswagen, em que assume relevância como sócia Tchizé dos Santos, beneficiou de transferências ordenadas por Augusto Tomás. O ex-ministro ordenou o envio de mais de nove milhões de dólares quando a empresa enfrentou dificuldades financeiras, e nunca, obviamente, recebeu pelo menos oito milhões de volta. Mas não temos dúvidas de que Tchizé saberá explicar a situação e defender o seu benfeitor Augusto Tomás.
Ainda merecem referência os milhões gastos com uma HFA – Holding Financeira Angola, que recebeu 7,5 milhões de dólares do governo. Mais uma sociedade, tal como a Afritáxi, que antes de ser constituída formalmente recebe dinheiro e nunca o devolve. O dinheiro acabou por servir para comprar um por cento do Banco de Negócios Internacional (BNI), hoje liderado pelo famoso banqueiro Mário Palhares, sobre quem também já escrevemos.
Descontrolo
Estes constituem apenas alguns factos expostos na acusação. Não são os únicos, mas revelam dois aspectos fundamentais nas consequências políticas que este processo judicial pode ter. A primeira consequência é a comprovação de que as receitas do orçamento de Estado funcionaram primacialmente como um tesouro pessoal do ministro, que dispôs do dinheiro como muito bem entendeu. Houve um total descontrolo e dispêndio arbitrário de dinheiro. E isso leva-nos à segunda consequência. Muito desse dinheiro roubado ao Estado angolano foi direitinho para a cúpula do poder do MPLA nos tempos de JES. O dinheiro teve como destino os vários predadores do regime. Além do ministro e seus associados, somos confrontados com os nomes de Manuel Vicente e Tchizé dos Santos. Será que estes recebiam dinheiro do governo sem inquirir a sua proveniência?
O processo contra Augusto Tomás não o envolve apenas a ele e aos seus co-arguidos. Envolve o sistema de rapina instituído pelo MPLA de JES. Demonstra como o país foi dilapidado. Sejamos claros: Augusto Tomás é um mero exemplo, mas não é o único. Esta investigação do Ministério Público, bem-feita em termos factuais, abre a porta oficial ao mundo da corrupção em Angola.
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