D e 20 a 25 de Julho de 1968, a Frelimo
realizava, em Matchedje, na província do Niassa, o seu segundo Congresso, o
primeiro em solo pátrio. Cinquenta anos depois do chamado “Congresso da
Vitória”, aquele que lançou as bases para a conquista da independência, o
partido está mergulhado numa impopularidade sem precedentes, com vozes de
dentro e de fora a defenderem que a Frelimo foi empurrada ao descrédito pela
elite predadora que assaltou e transformou o partido numa máquina de acumulação
primitiva de capital, distanciando-se do povo e mandando à sargeta os
princípios e valores que nortearam a sua criação. Na altura em que se celebra o
cinquentenário do Congresso de Matchedje, na opinião pública é dado adquirido
que a Frelimo de hoje não é mais aquela que um dia foi um movimento moralista e
aglutinador. O escândalo das dívidas ocultas, contraídas durante a
administração Guebuza, à calada da noite e ao arrepio da legislação e
instituições moçambicanas, é visto como apenas a amostra de uma corrupção
endémica que dilacera um país onde o clientelismo e a acumulação primitiva de
capital confundem-se com o DNA da elite política do partido no poder desde a
independência nacional, em 1975. E não são apenas os “apóstolos da desgraça”,
como um dia o presidente Armando Guebuza apelidou aos seus críticos, que se
mostram decepcionados com a Frelimo de hoje. Nos bastidores, muitos membros do
partido têm manifestado o seu descontentamento com o estado de coisas na
Frelimo. O histórico Jorge Rebelo, um dos membros que está na Frelimo desde as
primeiras horas, é dos poucos que tem colocado, publicamente, o dedo na ferida.
Numa entrevista ao SAVANA, em Maio de 2016, Jorge Rebelo voltou à carga,
afirmando que a Frelimo como organização de princípios e valores justos,
identificada com os anseios e aspirações do povo, “está muito deteriorada”.
Para o temido secretário do Trabalho Ideológico nos tempos de Samora Machel, se
o primeiro presidente de Moçambique ressuscitasse, hoje (2016), morreria de
desgosto no segundo seguinte. Questionado sobre qual é a actual ideologia da
Frelimo, o membro fundador foi categórico: “eu também já não sei qual é”,
lembrando, contudo, que “os estatutos do partido dizem que a Frelimo luta em
defesa dos interesses do povo moçambicano”. Rebelo não tem dúvidas de que há
gananciosos na Frelimo que se aproveitam do poder e influência para
enriquecerem, acrescentando que “há algum tempo venho criticando o que
considero errado, mas com poucos resultados”. Para o veterano da Luta de
Libertação Nacional, o problema é que a Frelimo anda ao sabor das lideranças.
“Quando temos um bom líder, como Samora, ela assume valores justos, ganha a
confiança do povo, torna-se forte. Quando o líder é medíocre ou mau, ela fica
desacreditada porque esses líderes desligam-se dos interesses do povo,
apropriam-se de tudo o que é riqueza no país, fecham-se a qualquer opinião
discordante e reprimem os que os denunciam”, critica o veterano. Na referida
entrevista, o membro histórico da Frelimo teceu duras crí- ticas contra a
administração Guebuza, nomeadamente, sobre o dossier dívidas ocultas,
lamentando que o país tenha sido levado para a sarjeta por um líder consagrado
como visionário. “Como foi possível que um camarada, que deu provas de
nacionalismo Frelimo aos 50 anos do II Congresso Encalhada no alto mar! Por
Armando Nhantumbo N esta semana em que o partido no poder lançou as
comemorações dos 50 anos do II Congresso, cujo ponto mais alto será a 25 de
Junho próximo, na localidade de Matchedje, distrito de Sanga, no Niassa, o
SAVANA foi entrevistar o docente de ciência política, João Pereira, para uma
leitura pontual sobre a Frelimo de hoje. Para Pereira, 50 anos depois do II
Congresso da Frelimo, a única memória positiva é o facto de ser o movimento que
libertou o país. É que, disse, a Frelimo tem sido, sobretudo nos últimos 25
anos, uma grande decepção. “Decepção porque grande parte da elite política da
Frelimo perdeu os seus valores como ética, integridade e solidariedade com o
povo. Hoje, a Frelimo e os seus dirigentes parecem mais má- quinas de
acumulação primitiva de capital do que servidores dos interesses mais nobres do
povo moçambicano”, precisou o académico, para quem “a Frelimo moralista,
galvanizadora ou agente transformador da sociedade, deixou de existir”. Entende
que, como partido, a Frelimo está num estado de degradação e a seguir um
caminho que não representa aqueles que foram os seus grandes e nobres valores,
e diz que é muito triste ver um partido desta dimensão neste estado por causa
da ganância. “Deve ser muito penoso para aqueles que são os saudosistas “A
Frelimo tem sido uma grande decepção” – João Pereira e patriotismo, a certa
altura se deixe dominar pela ganância e desgrace o seu país e o seu povo? Estes
apetites já existiam nele quando se engajou na luta, ou surgiram mais tarde?
Não sei a resposta. Mas em certa medida nós próprios somos responsáveis, por
não termos reagido quando começámos a detectar esses comportamentos”,
desabafou. Sobre se uma eventual responsabilização criminal a Guebuza e
elementos do seu Governo, que tiveram um papel central nas dívidas ocultas, não
provocaria rupturas na Frelimo, Rebelo respondeu que “é previsível que provoque
ruptura, porque Guebuza tem muitos apoiantes nos vários ní- veis da governação,
que ele colocou lá e que beneficiavam da ligação com ele. Creio que é por isso
que o Governo actual insiste em assumir a responsabilidade pelos desmandos do
governo de Guebuza, e recusa responsabilizá-lo. A minha opinião é: se a ruptura
acontecer, que venha. Preparemo-nos para enfrentá-la”. Para o também camarada,
Carlos Machile, a Frelimo perdeu a sua vocação e está hoje infiltrada.
Guebuzista assumido e militante ferrenho da Frelimo, Carlos Machile disse, numa
longa entrevista ao SAVANA, em Junho de 2017, que a Frelimo tem de se
democratizar, internamente, tem de ir ao povo e entender que não é produto das
elites. Considerou que a Frelimo de hoje é elitista, um elitismo que se revela
através da fuga do seu projecto social. “Onde é que pára o projecto social da
Frelimo? Onde é que pára o projecto económico da Frelimo? Onde é que pára o
projecto de cidadania da Frelimo? O projecto de construir a nova sociedade?
Naquele tempo chamava-se homem novo, mas foi abandonado e quem hoje defende
esse projecto é considerado comunista. Eu penso que o nosso partido tem de
voltar a resgatar a sua vocação”, sublinhou. Para o também antigo reitor da UP,
o que está a falhar no partido é entender o papel da Frelimo nos dias de hoje.
Defende que os grandes opositores do partido são internos porque a Frelimo está
infiltrada, pelo que é preciso cerrar as fileiras. da era da purificação das
fileiras na Frelimo. Deve ser doloroso para um Jorge Rebelo, para certas
figuras da Frelimo, para milhares de antigos combatentes sem benefícios, quando
10 ou 15 famílias da Frelimo é que têm força suficiente para beneficiar de
tudo; deve ser muito penoso para eles porque não foi isso que lhes levou a
lutar”, comentou. Afirma que os moralistas de ontem são os grandes lobistas de
hoje. “Nacionalizaram grande parte do que era propriedade privada dos colonos
para eles se tornarem os novos proprietários. Nacionalizaram grande parte das
fábricas para hoje se tornarem os grandes proprietários das fábricas, mas com a
única característica de que as fábricas deles já não produzem nem criam riqueza
para o país. Grande parte deles, aquela elite que tanto defendia o campo, a
zona rural, a transformação do campo, hoje simplesmente são lobistas e vivem do
lobby”, sublinha, repudiando que “não é essa a Frelimo que nós os moçambicanos
sonhávamos”. Diz que o partido perdeu os princí- pios no processo da
liberalização da economia, em finais da década de 80 e início da década de 90.
“A morte do presidente Samora, a saída dentro da esfera do poder de algumas
figuras emblemáticas que deixaram de ter o seu peso na estrutura do partido, a
entrada duma geração mais virada à ganância, ao controlo do poder, ao controlo
económico, ao roubo, ao saque, a fragilidade das instituições de justiça, que
foi feita de propósito para facilitar essa ganância toda, então, chegou a uma
altura em que elas próprias, as lideranças, perderam o controlo”, disse. Para
ele, as ligações com o grande lobby internacional de tráfico de influências,
das negociatas, do enriquecimento ilícito, tudo isso fez com que grande parte
das elites da Frelimo perdesse o seu norte. “A partir da década de 90 começá-
mos a ver a degradação da própria Frelimo. Até certos sectores da liderança da
Frelimo diziam até que o cabrito come onde está amarrado, só faltou dizer que
quanto maior for a corda, melhor e porque o raio de acção e da comida é maior
quer dizer quando você chega a este extremo, mostra claramente que já não havia
outra saída a não ser cabrito e esperar que em volta houvesse mais capim para
comer”, comenta. Questionado se a Frelimo vai ou não a tempo de recuperar os
seus princípios, foi peremptório em afirmar que não acredita, porquanto grande
parte das pessoas honestas, que têm valores e que podiam ser elementos
transformadores dentro da estrutura do partido, ou estão marginalizadas ou
desligaram-se do partido para evitar chatices. Anotou também que, ao nível da
Frelimo, não existe uma predisposição de ir buscar esses elementos e trazê-los
dentro do partido ou se existe, é simplesmente para acomodá-los, mas não lhes
dar espaço de transformação. “Mesmo se existir esse indivíduo vai ser um pastor
sem seguidor porque grande parte da actual elite política da Frelimo sobrevive
a partir de redes clientelistas, do roubo, da reprodução de influências, do
gangsterismo, de tudo o que é mais nefasto hoje na sociedade, é encontrado
dentro do partido Frelimo também”, remata. Vinca que a situação é tão grave
que, se alguém aparecer no partido a pregar valores, não terá seguidores. “Até
vai ser zombado, dizendo que ‘esse velhote está caduco’, como o fazem com Jorge
Rebelo, que dizem que ‘está cansado o velho’. É como você criar uma igreja e
você sozinho entrar com a bíblia querer pregar evangelho, mas ninguém está para
lhe seguir, nem para aplaudir, então, você vai ficar isolado”, metaforizou.
Lembra que antes havia um mecanismo de casting para a entrada nas fileiras da
Frelimo e lamenta que hoje qualquer indivíduo, seja ele ladrão ou não, ingressa
no partido sem passar por nenhum crivo. Pereira não tem esperança de que o
partido recupere os seus valores nobres, pelo menos, nos próximos anos. “Os
valores da ganância estão sendo transmitidos dos antigos fundadores que se
tornaram em grandes burgueses a partir da captura do Estado e da sua própria
reprodução e desenvolvimento da rede clientelista, estão a ensinar até aos seus
próprios filhos que aquele é que é o caminho e não estão a resgatar os valores
da Frelimo”, lamenta Pereira, que vê uma Frelimo moribunda e sem coragem de se
tornar naquela força aglutinadora que já foi. Diz que o mais grave é que esse é
o legado que a Frelimo vai deixar, o facto de ser o partido que espalhou
corrupção na sociedade inteira.
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