domingo, 13 de janeiro de 2019

Teoria russa faz abanar ciência do envelhecimento na UE e nos EUA

Artigo saído nas redes sociais, sem verificação científica prévia e replicado pelos media tradicionais, põe em causa identidade da mulher mais velha do mundo e método de certificação da sua idade.

A reputação da gerontologia ocidental e dos cientistas franceses e norte-americano que confirmaram Jeanne Calment como a mais velha supercentenária do mundo, ao celebrar 122 anos em 1997, está a ser questionada por uma teoria oriunda da Rússia.
O caso tem múltiplas facetas e aspetos estranhos, mal explicados, cuja mistura - política, ciência, redes sociais, regras do jornalismo digital e um título apelativo: "Jeanne Calment: o segredo da longevidade" - lhe deu massa crítica suficiente para rebentar no início deste ano.
O artigo em causa afirma que a mulher tinha menos de 100 anos e não era Jeanne Calment mas a filha Yvonne. Esta, que morreu oficialmente em 1936 com 36 anos, teria assumido o nome da mãe para evitar o pagamento de impostos sobre a herança, sustenta o seu autor, Nikolay Zak, de 35 anos.
Há um limite natural para a vida humana? Se há, é possível superá-lo? Ou não há limite, que crescerá com o aumento do número de pessoas com mais de 100 anos?
Segundo o Washington Post (WP), que este fim de semana voltou a falar de um caso cuja primeira notícia é atribuída ao escritório da Agência France Press em Moscovo - depois replicada por muitos outros órgãos de informação tradicional em todo o mundo - no primeiro dia de 2019, essa notícia coincidiu com o envio de um email para os dois gerontologistas franceses e o norte-americano que certificaram o caso, colocando a idosa francesa no famoso Guinness, o Livro dos Recordes Mundiais.
O autor dessa mensagem de correio eletrónico foi o médico russo Valery Novoselov, que também alude a queixas apresentadas à polícia de Moscovo, ao FBI e ao Instituto Nacional do Envelhecimento dos EUA.

Investigação através da Net

O artigo da polémica foi escrito por Nikolay Zak, formado em matemática que trabalha como soprador de vidro na Universidade Estadual de Moscovo, que considera a gerontologia como um passatempo e já não publicava qualquer texto há uma década, quando era estudante de doutoramento.
Em pano de fundo nesta história e que tanta atenção deu a Jeanne Calment, que vivia em Arles, está o fascínio humano pela longevidade e algumas dúvidas científicas: há um limite natural para a vida humana? Se há, como é possível superá-lo? Ou não há limite, acompanhando o aumento do número de pessoas com mais de 100 anos? Neste caso, porque é que o recorde de Jeanne Calment resistiu duas décadas?
Nikolay Zak, que disse ter feito a sua investigação a partir da Rússia e com base nos registos da vida de Jeanne Calment disponíveis na Internet, viu o artigo ser recusado por um jornal científico russo e depois por um site norte-americano especializado - pelo que o autopublicou numa rede social destinada a académicos e cientistas, no início de dezembro.
A profusão de notícias que se seguiu por todo o lado representou, segundo o Washington Post, "tanta publicidade que levaria a maioria dos cientistas a salivar, notável por um artigo que nem sequer tinha sido publicado por um jornal ou revisto pelos pares".
Na origem desse artigo está um trabalho que o investigador russo Leonid A. Gravilov publicou em 2000, argumentando que a idade da francesa constituía um acaso estatístico - e o rumor que há anos circula em França, de acordo com demógrafos invocados pelo jornal norte-americano: a fuilha de Jeanne Calment assumira a identidade da mãe.
Segundo cientistas ouvidos pelo Washington Post, os três anosque separam Calment da norte-americana Sarah Knauss, que morreu em 1999 com 119 anos, representam um "ano-luz" em termos estatísticos nessas idades tão avançadas. Acresce que uma improbabilidade e uma impossibilidade estatísticas são coisas diferentes,

Estranhas coincidências

A Rússia, onde a idade média de vida dos cidadãos é inferior à da generalidade dos países ocidentais, é mal vista entre quem estuda o envelhecimento avançado na Europa e nos EUA, devido às lacunas que apresenta nesse domínio.
"Os russos são talvez um dos subgrupos mais conhecidos da população que dá informações erradas sobre longevidade", disse S. Jay Olshansky, professor de Saúde Pública na Universidade do Illinois, em Chicago.
Steve Hall, antigo espião da CIA que passou quatro anos como chefe de operações na Rússia, adiantou ao WP: "Se quer realmente irritar um russo, compare-se a expectativa de vida dos homens russos com o resto do mundo."
Hall considerou ainda plausível haver uma campanha russa de desinformação contra o mundo da ciência e da investigação clínica no Ocidente. "Quando se começa a combinar esta ideia da Rússia como um grande poder ... E quando se alarga essa mentalidade ao mundo da ciência, à ideia de como a Rússia trata bem dos seus cidadãos", é natural "entender que algo assim pode acontecer".
Nesse quadro, Jeanne Calment seria um exemplo quase perfeito para questionar a ciência em torno dos supercentenários, admitiu Robert Young, diretor do Grupo de Pesquisa em Gerontologia dos EUA, administrador do Clube 110, um fórum digital dedicado aos supercentenários - e o consultor do Guinness que validou a investigação dos franceses Jean-Marie Robine e Michel Allard sobre a idade de Jeanne Calment.
"Se conseguir mostrar que a primeira pessoa dessa lista é falsa, quase que se consegue derrubar todo o sistema", sustentou Robert Young, que há meses vinha a registar pormenores estranhos relacionados com o caso de Jeanne Calment.
Modificações na página da Wikipédia dedicada à francesa, abertura de contas no site do Clube 110 que procuravam desacreditar o caso, passando pela divulgação não autorizada - na página de Facebook do russo Valery Novoselov (autor do email enviado aos três gerontologistas) - de uma mensagem de alerta difundida internamente pelo próprio Young enquanto gestor daquele fórum já o tinham deixado alerta para o que o WP disse ser uma "campanha coordenada de desinformação".
"Parece haver uma campanha de desinformação e propaganda anti-Jeanne Calment (anti França = anti UE = anti Ocidente) intencional oriunda da Rússia e tem como alvo muitos destinatários, incluindo o Clube 110", escrevera Robert Young na referida mensagem, apelando ao bloqueio temporário de novas contas que suscitassem reservas.
Dos nove especialistas em gerontologia, demografia e estatística ouvidos pelo Washington Post sobre esta história e que examinaram o trabalho de Nikolay Zak, todos - excluindo Robert Young - "menos um" afirmaram que ele estava incompleto, "se não mesmo completamente deficiente".
Curiosamente, quem também mostrou reservas ao trabalho de Nikolay Zak foi o investigador que em 2000 questionou as conclusões sobre a idade de Jeanne Calment. Para Leonid A. Gavrilov, que continua a defender a revisão do processo, a investigação de Zak corresponde ao trabalho de um estudante que selecionou os dados.

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