Ngungunhane
QUANDO TUDO ACONTECEU...
1850: Data aproximada de nascimento de Ngungunhane - 1858: Morte de Manukuse, fundador do império de Gaza, avô de Ngungunhane - 1884: Morte de Muzila, pai de Ngungunhane e subida deste ao poder - 1885, Fevereiro: Conferência de Berlim e partilha de África pelas potências europeias - 1890, 11 de Janeiro: Ultimato britânico ao governo português - 1894, Agosto: Rebelião dos tsongas na região de Lourenço Marques - 1895, 11 de Novembro: O exército português vence os ngunis, arrasa e incendeia Mandlakasi, capital do império de Gaza - 1895, 28 de Dezembro: Mouzinho de Albuquerque aprisiona Ngungunhane em Chaimite, a aldeia sagrada dos ngunis - 1896, 13 de Março: Ngungunhane, sete das suas mulheres, seus filho e tio e dois régulos são desembarcados em Lisboa, em estado de festa pelas capturas - 1896, 23 de Junho: Ngungunhane chega à ilha Terceira, Açores, onde fica desterrado até à morte - 1906, 23 de Dezembro: Morte de Ngungunhane - 1985, 15 de Junho: as ossadas, provavelmente falsas, chegam à República de Moçambique.
O LEÃO DE GAZA
A sucessão de Muzila é disputada por três dos filhos: Mafemane, o primogénito, Mudungazi, filho da sua preferida, e Como-Como.
Mafemane é assassinado a mando de Mudungazi enquanto Como-Como e dois outros irmãos fogem para o Transvaal.
O caminho está aberto para a subida ao trono de Mudungazi.
Após um tempo em que a morte de Muzila é conservada em segredo, mata-se um búfalo a que se tira a pele para envolver o corpo do rei. À medida que o cadáver se decompõe, suspenso no interior da palhota real, é recolhido o sangue num recipiente e misturado com vários ingredientes. Faz-se então a bebida sagrada que é dada ao herdeiro.
Ele é agora Ngungunhane, cognome com vários significados. Para uns é "o terrível" ou "o invencível", para outros as grutas do mesmo nome para onde são lançados vivos os condenados à morte. Ou então o "Leão de Gaza", o nome que a história guardou.
Já investido, Ngungunhane abre a sepultura do pai onde também estão os cadáveres de uma velha e de um cão que lhe haviam sido imolados.
Desfilam diante do recinto sagrado o herdeiro, os gados do defunto e o seu exército. No dia seguinte, é a vez dos outros régulos e chefes prestarem o homenagem a Ngungunhane que termina com a saudação real bayete! repetida a uma voz. A sagração ao novo rei está encerrada.
VUIAZI, A PAIXÃO
Tem um harém de cerca de 300 mulheres — 30 ou 40 vivem nas palhotas que rodeiam o kraal em Mandlakasi (Manjacaze) as outras estão disseminadas pelas aldeias vizinhas — mas não lhe são contados mais de 20 filhos e filhas, apesar do apetite sexual desmesurado que lhe é atribuído.
Vânia, Sibaeca e Sonie. São as três sucessivas favoritas principais, ou mulheres grandes, que tem Ngungunhane. Dispõem de importantes privilégios, são respeitadas, ricas, servidas por um bando de escravas. Apenas elas têm direito a usar o chifoco (penteado cilíndrico alto) e a adornar-se com as trinta pulseiras em cada braço. Nenhuma das três rainhas grandes o vai acompanhar no desterro para Portugal.
Aquela que Ngungunhane mais quis não a pôde desposar. Foi Vuiazi, mãe de Godide, o filho que irá encantar as damas no Arsenal em Lisboa e morrer tuberculoso na ilha açoreana da Terceira, em 1911. Vuiazi era a mais bela jovem de Gaza. Pele clara e acobreada, alta, pernas grandes e esguias, dentes de imaculado marfim, bamboleante andar. Linda e fácil, nunca se recusou aos homens que a desejavam. Foi a paixão de Ngungunhane, ainda ele se chamava Mudungazu.
Muzila proibiu o casamento do filho com uma jovem que já tinha sido de tantos outros homens e Vuiazi desapareceu sem deixar rastro. Quando subiu ao trono, Ngungunhane rendeu-lhe homenagem ao instituir um modo de juramento em que os súbitos pronunciavam Vuiaze.
AS FESTAS DE FEVEREIRO
O imperador de Gaza faz da corte um festim permanente. Dança-se, canta-se, bebe-se e come-se em desregrado em todas as celebrações religiosas, nas cerimónias de alegria ou de dor, nos festejos dos nascimentos, da morte, dos casamentos, nas vitórias das guerras. Ou quando uma mulher procura engravidar de um homem que não o marido porque ele é estéril, faleceu sem deixar filho varão ou por ter prole reduzida. Grita-se, ama-se com muitos risos.
Mas ninguém é mais exuberante que Ngungunhane. Sobretudo nas festas do Nkwayo que decorrem por todo o mês de Fevereiro em Mandlakasi. São as festas reais feitas em homenagem ao imperador e onde se executa, sumariamente, quem guardar silêncio ou se divirta ou dance fora dos cânones estabelecidos pelo imperador.
Começam quando Ngungunhane, acompanhado pelas suas mulheres, saúda Impibekassano, mãe substituta do régulo depois da morte de Uzio, sua mãe biológica, e milhares de guerreiros louvam o poder invencível, o heroísmo, a força e a juventude do "Leão de Gaza" em intermináveis cânticos sagrados.
O frenesim das festas do Nkwayo aumentam ao longo do mês, entram pela noite fora. Atingem o auge no último dia encerrando com o banho purificador de Ngungunhane na lagoa para depois dançar nu no meio do seu povo.
OLHARES SOBRE NGUNGUNHANE
Onze anos dura o poder absoluto de Ngungunhane no vasto império nguni.
Os que com ele privaram deixam testemunhos dispares e contraditórios sobre a sua personagem e o seu desempenho político. As imagens da história reflectem essa diversidade de olhares.
Georges Liengme é um missionário e médico suíço que viveu os três anos anteriores ao desmoronamento do império junto ao kraal (residência ou curral) de Ngungunhane. (São dele um notável conjunto de fotos, do quotidiano do régulo e da sua corte). Sem deixar de realçar a prudência que norteava os actos de governação do monarca e a sua capacidade de ouvir opiniões e de se informar antes de tomar decisões importantes, Liengme traça um retrato de um bêbado inveterado capaz de emborcar quantidades impressionantes de "cerveja cafre", de aguardente ou de vinho do Porto, abundantemente fornecidos pelos comerciantes e representantes da administração portuguesa. " É o régulo, no fim de contas, o que bebe menos", escreve o médico suíço a propósito das constantes celebrações de casamentos de Ngungunhane "com mulheres que se deixam virgens" e das "orgias frequentes" a que se dedicava. A mesma opinião é partilhada pelo historiador francês René Pélisser que fala do normal "estado de embriaguez crónica" do rei.
Liengme conta em abundância as deploráveis cenas que lhe é dado assistir do alcoolismo generalizado dos homens e mulheres ngunis. Impotente, o médico suíço insurge-se vendo as jovens embriagadas que saem aos tombos da casa do intendente português.
Quando da morte de Mango, o filho do rei mais inteligente e culto, um dia depois de se recolher na palhota com um garrafão de 25 litros de aguardente oferecido pelo residente-chefe português, Ngungunhane, a insistências de Liengme, promete proibir o consumo de álcool. Envia um garrafão a cada régulo avisando ser este o último. Quem desobedecer será morto.
Os chefes dizem cumprir a ordem do monarca e, depois de ingerida a última gota de aguardente, cospem na sua presença para uma cova em sinal de desprezo pela bebida. Promessa vã. Nem Ngunguhane dá o exemplo aos seus súbditos nem os comerciantes brancos querem perder tão lucrativo negócio.
"Diabólico e monstruoso", — diz ainda Liengme de Ngungunhane — "toda a sua política era de tal modo falsa, absurda, cheia de duplicidade, que se tornava difícil conhecer o seus verdadeiros sentimentos".
O intendente português junto da corte nguni, Matheus Serrano, descreve assim o seu primeiro encontro com o régulo:
"O Gungunhana recebeu-me com manifesta urbanidade. É ele um homem reforçado, cheio de carnes, de estatura regular, tipo simpático, e agradável na conversa. Mostra ser inteligente e de grande agudeza de espírito. Fala mansamente, com intermitências, como de quem sofre falta de ar ou tem a garganta ferida".
Também o tenente Aires de Ornelas, enviado da administração portuguesa, o olha com simpatia: "Só direi que admirei o homem, discutindo tanto tempo com uma argumentação lúcida e lógica".
O major Caldas Xavier enaltece-lhe "o bom senso e tacto administrativo", Douglas Wheeler, diplomata inglês, considera-o "um político hábil e arguto". Outros referem-lhe a astúcia e o hábil manejo nas negociações para obter concessões aliciantes.
Exímio na arte do "dividir para reinar", o "Leão de Gaza" governa o império com despotismo e mão férrea. Como o avô e o pai, chacina as etnias submetidas, queima as suas aldeias, rouba e pilha os seus bens. Senhor de muitos milhares de escravos, adopta as moças capturadas para depois engrandecer a sua fortuna com o recebimento do lobolo (dote) do casamento.
Manhã cedo, 13 de Março de 1896, o vapor "África" fundeia a meio do Tejo, frente a Cacilhas. Fragatas, canoas, botes, dezenas de embarcações a remos e à vela rodeiam o navio que largou Lourenço Marques dois meses antes.
Lisboa está em festa. Milhares de pessoas acorrem ao cais para ver o último trofeu de guerra da monarquia. É a "fera cruel", o "pesadelo de todos os governos portugueses", o "régulo sanguinário", como o classificam os jornais nos últimos anos. É Ngungunhane (Gungunhana na ortografia colonial) capturado por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, a 28 de Dezembro de 1895.
Depois de horas de insistências, alguns jornalistas conseguem permissão de subir a bordo. Encontram o grupo de 16 prisioneiros a estibordo num exíguo espaço mal iluminado com dois patamares de beliches. Nas esteiras superiores está Ngungunhane com sete das suas rainhas: Namatuco, Machacha, Patihina, Xisipe, Fussi, Muzamussi e Dabondi. No beliche inferior amontoam-se Godide, filho primogénito de Ngungunhane, o régulo Matibejane e as suas três mulheres, o régulo Zixaxa, Molungo, tio de Ngungunhane, e Gó, o cozinheiro do imperador.
Aos jornalistas impressiona o cheiro nauseabundo de dois meses de clausura.
"Quando entramos nos alojamentos — lê-se no Diário de Notícias no dia seguinte — estavam todos os pretos deitados e o Gungunhana, que ocupava uma extremidade da tarimba, tinha o rosto coberto. Alguém lhe descobriu a cara e o preto despertou, olhando para todos com olhos desconfiados. Pouco depois, como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior numero e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição".
Ngungunhane está exausto e horrorizado. Desde a captura em Chaimite que receia o fuzilamento. Chora, implora, treme, esconde o rosto com as mãos, oferece tudo o que já não tem para obter a libertação, dinheiro, gado, ouro, marfim, escravos, terras. Aos que o rodeiam pergunta sem cessar: "Digam-me o que querem de mim. Vai morrer? Para que lhes sirvo eu? Deixem-me regressar que morro se não vejo as minhas terra", traduz o intérprete.
Quando lhe apontam o Palácio da Ajuda pede ao comissário régio de Moçambique António Enes para ser recebido por D. Carlos. Quer implorar perdão, jurar fidelidade ao monarca a quem anos atrás enviara duas embaixadas recebidas com pompa. Talvez ele o deixe retornar ao seu vasto império.
Às três e meia da tarde os prisioneiros desembarcam no Arsenal. Há cada vez mais gente a desfrutar o espectáculo. O ar altivo, as roupas e os enfeites das mulheres despertam a curiosidade. "Quase todas altas e mais cor de castanha que pretas (…) carapinha bem penteada (…) feições finas, bonitas mesmo", admira-se a imprensa.
No interior do Arsenal, Godide torna-se objecto de curiosidade particularmente das esposas dos funcionários. É jovem, alto, fala português, não está assustado como o pai. Quando consta que sabe assinar o nome, as distintas damas assediam-no com risinhos histéricos para obter o autógrafo do bem disposto prisioneiro.
O grupo é metido numa jaula em forma de carruagem com destino ao forte de Monsanto. Atravessa as ruas da Baixa lisboeta, a Avenida, Palhavã, Sete Rios, Benfica, Calhariz. O povo é tanto que nalguns locais o cortejo dificilmente avança. Os dichotes e as humilhações que os prisioneiros sofrem são de tal monta que a imprensa protesta pela passividade da polícia.
Como a curiosidade da população ainda não está saciada, ficam em exibição como uma peça da fauna africana no Jardim Botânico de Belém. Quando chegara de Chaimite, o governador de Moçambique também exibira Ngungunhane e parte da sua corte numa plataforma erguida junto à sua residência em Lourenço Marques.
A REBELIÃO TSONGA
Ngungunhane é surpreendido pela rapidez dos acontecimentos. Fica sem resposta o seu pedido de protecção à Rainha Vitória com que procura jogar no conflito entre Londres e Lisboa. Os dois governos chegam a acordo na delimitação dos territórios africanos, rubricado em Junho de 1891, e onde Gaza fica, sem margem para dúvidas, no interior de Moçambique. O imperador é intimado assumir-se como súbdito de Portugal.
Em Agosto de 1894, os tsongas da região de Lourenço Marques — Terras da Coroa, chamam-lhe os portugueses — revoltam-se depois de repetidos abusos das autoridades coloniais. Os régulos Mahazule, Nwamatibyane e Amgundjuana reúnem milhares de guerreiros, cercam durante mais de dois meses Lourenço Marques preparando o assalto à cidade.
O Governador-Geral, brigadeiro Magalhães e Meneses, chega da Ilha de Moçambique, a capital da colónia, ordena o levantamento de trincheiras e arma canhões. Dispensa a oferta de Cecil Rhodes para servir de medianeiro e consegue suster, em 14 de Outubro, o ataque dos assaltantes que deixam no terreno mais de uma centena de corpos.
A revolta dos tsongas faz soar o alarme em Lisboa que envia para Moçambique o antigo ministro da Marinha António Enes como Comissário Régio, dispondo de poderes superiores ao de Governador-Geral. Acompanham-no um grupo de oficiais da elite aristocrática do exército que irá fazer carreira na administração colonial.
Partidário da pacificação pela força das armas, Enes promete na despedida à Rainha Amélia "trazer preso aos pés de Sua Majestade o famoso tirano da África do Sul", ele que é da opinião que "o Estado não deve ter o menor escrúpulo em obrigar e, se necessário for, forçar esses rudes negros da África, esses ignorantes párias, esses semi-idiotas selvagens da Oceânia a trabalhar".
Chegado a Lourenço Marques prepara o ataque aos tsongas. Entrega o comando da expedição de 37 oficiais e 800 soldados aos majores Ribeiro Júnior e Caldas Xavier que marcham sobre Marracuene, na margem direita do rio Incomáti. O confronto dá-se na madrugada de 2 de Fevereiro de 1895. A força portuguesa, disposta em quadrado, vale-se do poder dos canhões e metralhadoras e vence os tsongas que abandonam no chão mais de 70 cadáveres. Vinte e quatro mortos e 28 feridos são as baixas contabilizadas do lado português.
Os régulos Nwamatibyane e Amgundjuana refugiam-se em Gaza (Mahazule não combate em Marracuene da mesma forma que recusara participar no ataque a Lourenço Marques) e ficam sobre a protecção de Ngungunhane que lhes aceita a vassalagem.
BRAÇO DE FERRO
O rei nguni recusa entregar os chefes tsongas à tropa portuguesa como exige o Comissário Régio.
Lisboa dá instruções claras, lembrando a António Enes que "tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito".
O braço de ferro mantém-se. Ngungunhane recusa o ultimato do Comissário Régio transmitido por José de Almeida, o secretário da Companhia de Moçambique que está acreditado na sua corte. As exigências portuguesas significam a submissão total do poder nguni: fornecimento de mão-de-obra, impostos leoninos, liberdade de circulação, construção de postos militares.
Reunido o Conselho de Estado de Gaza, o poder de fogo já exibido pela tropa portuguesa e as divisões que alastram no seio dos ngunis reflectem-se na disposição da maioria em aceitar o ultimato. Ngungunhane ignora a opinião dos conselheiros e apenas se declara disposto a ceder num ponto: entregar os chefes tsongas na condição dos soldados portugueses passarem para lá das fronteiras do reino.
Georges Liengme nada consegue fazer na intermediação entre os dois adversários irredutíveis.
Enes dá ordem de avançar às tropas, reforçadas com mais efectivos chegados de Portugal.
Ngungunhane diz a José de Almeida que "vai abrigar-se à bandeira de outros brancos". Mas os emissários aos centros de decisão na África do Sul trazem-lhe recusas de ajuda.
A 8 de Setembro, a força comandada pelos capitães Freire de Andrade e Paiva Couceiro que parte de Lourenço Marques em direcção a Mandlakasi é atacada em Magul por 13 mangas (regimentos) africanas, cerca de seis mil homens. Os soldados portugueses, em número de 275, recorrem mais uma vez à táctica do quadrado, defendido por arame farpado.
Como sempre, os guerreiros de Ngungunhane lançam-se em formação de meia lua contra as metralhadoras e peças de artilharia. A desproporção do poder de fogo é enorme. São dizimados. Morrem 400 africanos contra apenas cinco soldados brancos.
Depois desta nova derrota, o imperador nguni ainda tenta negociar com o Comissário Régio e envia mais emissários a Durban e à Cidade do Cabo na esperança de obter auxílio britânico. Nada consegue.
DERROTA EM COOLELA E MANDLAKASI
António Enes quer cumprir o prometido à Rainha Amélia. Manda o coronel Eduardo Galhardo, à frente de 600 oficiais e soldados portugueses e 500 auxiliares africanos, tomar a capital nguni. A coluna está equipada com 38 carros de combate e seis canhões.
Ngungunhane conta com cerca de 13 mil homens, o que não chega a um terço do que, poucos anos antes, recrutaria sem dificuldade. O seu poder absoluto está claramente enfraquecido. Vários régulos, entre os quais três tios do imperador, não se apresentam para a batalha. Magigwani, o reputado comandante-chefe das mangas ngunis parte para Bilene em busca dos reforços que nunca chegarão.
O confronto acontece em Coolela, a 7 de Novembro. A situação repete-se. O quadrado, o arme farpado, as metralhadoras, os canhões e as novas carabinas de repetição Kropatscheck que tinham substituído as velhas Mannlicher, esmagam os regimentos de Ngungunhane. Morrem cinco soldados brancos contra muitas centenas de guerreiros de Gaza.
Antes de encetar a fuga de Mandlakasi, Ngungunhane reúne-se com os conselheiros e acusa tios e primos de traição pela ausência na frente de combate.
A 11 de Novembro, o coronel Galhardo entra sem oposição em Mandlakasi, que os auxiliares pilham e ele manda incendiar.
Ngungunhane refugia-se em Chaimite, a aldeia sagrada onde está a campa de Manukuse, o fundador do Império de Gaza. Oferece sacrifícios humanos ao avô e a outros antepassados em troca de protecção divina.
António Enes quer a captura de Ngungunhane. É a promessa devida à rainha e o receio do régulo poder reorganizar os seus exércitos.
Confere plenos poderes ao major de cavalaria Mouzinho de Albuquerque nomeando-o, a 10 de Dezembro, governador de Gaza, que passa a ser um novo distrito militar.
Acossado, Ngungunhane entrega ao inimigo o régulo tsonga Nwamatibyane, que se acolhera sob a sua protecção.
Mouzinho ignora mais este gesto de desespero do "Leão de Gaza". Explica-se no "Relatório sobre a prisão do Gungunhana": "tinha-se enraizado no meu espírito a ideia que eu havia de prender ou matar o Gungunhana".
CHAIMITE
No dia de Natal, parte à captura de Ngungunhane apenas com dois tenentes, um médico e 49 praças. Nos três dias de marcha forçada, juntam-se-lhe vários régulos que se oferecem para combater o monarca nguni.
Por duas ocasiões, este envia ao encontro de Mouzinho emissários com presentes para a coluna não avançar mais. Manda-lhe entregar uma vez 560 libras de ouro e alguns dentes de marfim, noutra é o próprio filho primogénito Godide que traz mais 510 libras de ouro e 63 búfalos.
Na madrugada de 28, Mouzinho avista as paliçadas de Chaimite. Os homens dos régulos dissidentes só progridem no terreno à força da espadeirada. É grande o terror que o imperador ainda lhes provoca.
Mouzinho precipita-se para uma estreita abertura da cerca, por onde cabe apenas um homem, seguido dos soldados brancos. A ousadia resulta em cheio. Surpresos, os cerca de 300 fiéis, armados de espingardas, da aguerrida manga "Zinhone-Muchope" (aves brancas), último reduto de defesa de Ngungunhane, não esboçam qualquer resistência e fogem.
Lê-se no "Relatório": "este acto de cobardia dos pretos foi providencial, pois fuzilando-me a 10 metros de distância (…) teriam possivelmente morto todos os oficiais, os auxiliares teriam fugido logo, e as praças brancas, sem ter quem as dirigisse, teriam sido trucidadas…".
Grita Mouzinho por Ngungunhane. A cena descrita pelo próprio:
"Não se pode fazer ideia com que respondeu às primeiras perguntas que lhe fiz. Mandei-lhe prender as mãos atrás das costas (…) e disse-lhes que se sentasse. Perguntou-me onde e, como lhe apontasse para o chão, respondeu-me muito altivo que estava sujo. Obriguei-o então à força a sentar-se no chão (coisa que ele nunca fazia), dizendo-lhe que ele já não era régulo dos mangonis [ngunis] mas um matonga [tsonga] como qualquer outro".
Capturado Ngungunhane, Mouzinho de Albuquerque ordena o fuzilamento do induna (conselheiro) Mahune e de Queto (tio do imperador) que considera os instigadores da rebelião. Ainda ele:
"Exprobrei a Mahune (que era a alma danada de Ngungunhane) o ter sido sempre inimigo dos portugueses, ao que ele só respondeu que sabia que devia morrer. Não é possível morrer com mais sangue-frio, altivez e heroicidade; apenas disse sorrindo que era melhor desamarrá-lo para poder cair quando lhe dessem os tiros".
A derrota do imperador dos ngunis não faz cessar a resistência em Gaza. A repressão colonial também não dá tréguas. É o próprio Comissário Régio a assumir nos seus famosos relatórios a política de terror, fria e selectiva, que põe em prática para submeter a população.
Um mês depois de Chaimite, é aprisionado o régulo Mahazul e a 24 de Fevereiro de 1896 o célebre Finish que fustigava as canhoneiras portuguesas no Limpopo.
Irmãos, filhos e tios de Ngungunhane são executados, presos ou impelidos para o exílio no Transvaal. Isso acontece até aos régulos que tinham traído o seu chefe e combatido contra ele em Coolela e Mandlakazi.
A resistência sofre um rude golpe em 21 de Julho de 1897. É a morte em combate de Magigwani, o valente régulo, de etnia khosa, que fora o comandante-em-chefe dos exércitos do "Leão de Gaza".
Mas durante muito tempo ainda as autoridade coloniais vão preocupar-se com a rebelião latente que fermenta em Gaza. No relatório de 1910, o governador Freire de Andrade reconhece o seu fracasso em conseguir a extradição do Transvaal dos chefes ngunis que do exílio incitam as suas tribos a combater os portugueses.
DESTERRO NOS AÇORES
7H30, 23 de Junho de 1896. Os guardas do Forte de Monsanto descem às celas dos prisioneiros para os preparar para a última viagem.
No dia anterior, o governo tomara, finalmente, a decisão de os desterrar para a Ilha Terceira, nos Açores. Tentara guardar segredo para que não se repetisse a agitação, quase distúrbios, da populaça, verificada três meses antes. No entanto, a imprensa tinha conseguido furar o sigilo e cinco repórteres estão de plantão junto aos portões do forte.
Os prisioneiros entram em pânico quando os vão buscar. Sobretudo Ngungunhane que se convence que chegou, finalmente, o momento da sua execução. Recusa vestir-se, rola pelo chão, faz o gesto de ser lhe cortada a cabeça. Pergunta, como à chegada a Lisboa: "Vai morrer?".
As dez mulheres parecem enlouquecidas quando se dão conta que vão separá-las dos companheiros. Tal como o cozinheiro Gó, ficam no forte até serem dispersas por terras angolanas.
A muito custo, os guardas vestem Ngungunhane com as roupas novas mandadas fazer para a viagem. As calças de brim estão tão apertadas que se rompem ao subir para o "trem de praça". Zixaxa troça da triste figura do rei destronado. Desde Moçambique que ele e Ngungunhane lançam um ao outro as culpas da rebelião nguni e nutrem um ódio recíproco.
Ao chegar ao Arsenal, esperam-nos o ministro da Marinha, jornalistas, cavalheiros e damas munidos de convites especiais. Godide dá mais autógrafos.
Ngungunhane tem de ser levado em braços para a canhoneira "Zambeze". Está exausto, perdeu o último vestígio de dignidade, mas já desistiu de implorar a audiência a D. Carlos.
São todos revistados porque o comandante do navio teme que escondam facas para se suicidarem. Depois empurram-nos para o "bico da proa da coberta de vante" onde ficam alojados.
A imprensa fustiga o governo pelo "cúmulo da crueldade" de separar os prisioneiros das mulheres.
A sucessão de Muzila é disputada por três dos filhos: Mafemane, o primogénito, Mudungazi, filho da sua preferida, e Como-Como.
Mafemane é assassinado a mando de Mudungazi enquanto Como-Como e dois outros irmãos fogem para o Transvaal.
O caminho está aberto para a subida ao trono de Mudungazi.
Após um tempo em que a morte de Muzila é conservada em segredo, mata-se um búfalo a que se tira a pele para envolver o corpo do rei. À medida que o cadáver se decompõe, suspenso no interior da palhota real, é recolhido o sangue num recipiente e misturado com vários ingredientes. Faz-se então a bebida sagrada que é dada ao herdeiro.
Ele é agora Ngungunhane, cognome com vários significados. Para uns é "o terrível" ou "o invencível", para outros as grutas do mesmo nome para onde são lançados vivos os condenados à morte. Ou então o "Leão de Gaza", o nome que a história guardou.
Já investido, Ngungunhane abre a sepultura do pai onde também estão os cadáveres de uma velha e de um cão que lhe haviam sido imolados.
Desfilam diante do recinto sagrado o herdeiro, os gados do defunto e o seu exército. No dia seguinte, é a vez dos outros régulos e chefes prestarem o homenagem a Ngungunhane que termina com a saudação real bayete! repetida a uma voz. A sagração ao novo rei está encerrada.
VUIAZI, A PAIXÃO
Tem um harém de cerca de 300 mulheres — 30 ou 40 vivem nas palhotas que rodeiam o kraal em Mandlakasi (Manjacaze) as outras estão disseminadas pelas aldeias vizinhas — mas não lhe são contados mais de 20 filhos e filhas, apesar do apetite sexual desmesurado que lhe é atribuído.
Vânia, Sibaeca e Sonie. São as três sucessivas favoritas principais, ou mulheres grandes, que tem Ngungunhane. Dispõem de importantes privilégios, são respeitadas, ricas, servidas por um bando de escravas. Apenas elas têm direito a usar o chifoco (penteado cilíndrico alto) e a adornar-se com as trinta pulseiras em cada braço. Nenhuma das três rainhas grandes o vai acompanhar no desterro para Portugal.
Aquela que Ngungunhane mais quis não a pôde desposar. Foi Vuiazi, mãe de Godide, o filho que irá encantar as damas no Arsenal em Lisboa e morrer tuberculoso na ilha açoreana da Terceira, em 1911. Vuiazi era a mais bela jovem de Gaza. Pele clara e acobreada, alta, pernas grandes e esguias, dentes de imaculado marfim, bamboleante andar. Linda e fácil, nunca se recusou aos homens que a desejavam. Foi a paixão de Ngungunhane, ainda ele se chamava Mudungazu.
Muzila proibiu o casamento do filho com uma jovem que já tinha sido de tantos outros homens e Vuiazi desapareceu sem deixar rastro. Quando subiu ao trono, Ngungunhane rendeu-lhe homenagem ao instituir um modo de juramento em que os súbitos pronunciavam Vuiaze.
AS FESTAS DE FEVEREIRO
O imperador de Gaza faz da corte um festim permanente. Dança-se, canta-se, bebe-se e come-se em desregrado em todas as celebrações religiosas, nas cerimónias de alegria ou de dor, nos festejos dos nascimentos, da morte, dos casamentos, nas vitórias das guerras. Ou quando uma mulher procura engravidar de um homem que não o marido porque ele é estéril, faleceu sem deixar filho varão ou por ter prole reduzida. Grita-se, ama-se com muitos risos.
Mas ninguém é mais exuberante que Ngungunhane. Sobretudo nas festas do Nkwayo que decorrem por todo o mês de Fevereiro em Mandlakasi. São as festas reais feitas em homenagem ao imperador e onde se executa, sumariamente, quem guardar silêncio ou se divirta ou dance fora dos cânones estabelecidos pelo imperador.
Começam quando Ngungunhane, acompanhado pelas suas mulheres, saúda Impibekassano, mãe substituta do régulo depois da morte de Uzio, sua mãe biológica, e milhares de guerreiros louvam o poder invencível, o heroísmo, a força e a juventude do "Leão de Gaza" em intermináveis cânticos sagrados.
O frenesim das festas do Nkwayo aumentam ao longo do mês, entram pela noite fora. Atingem o auge no último dia encerrando com o banho purificador de Ngungunhane na lagoa para depois dançar nu no meio do seu povo.
OLHARES SOBRE NGUNGUNHANE
Onze anos dura o poder absoluto de Ngungunhane no vasto império nguni.
Os que com ele privaram deixam testemunhos dispares e contraditórios sobre a sua personagem e o seu desempenho político. As imagens da história reflectem essa diversidade de olhares.
Georges Liengme é um missionário e médico suíço que viveu os três anos anteriores ao desmoronamento do império junto ao kraal (residência ou curral) de Ngungunhane. (São dele um notável conjunto de fotos, do quotidiano do régulo e da sua corte). Sem deixar de realçar a prudência que norteava os actos de governação do monarca e a sua capacidade de ouvir opiniões e de se informar antes de tomar decisões importantes, Liengme traça um retrato de um bêbado inveterado capaz de emborcar quantidades impressionantes de "cerveja cafre", de aguardente ou de vinho do Porto, abundantemente fornecidos pelos comerciantes e representantes da administração portuguesa. " É o régulo, no fim de contas, o que bebe menos", escreve o médico suíço a propósito das constantes celebrações de casamentos de Ngungunhane "com mulheres que se deixam virgens" e das "orgias frequentes" a que se dedicava. A mesma opinião é partilhada pelo historiador francês René Pélisser que fala do normal "estado de embriaguez crónica" do rei.
Liengme conta em abundância as deploráveis cenas que lhe é dado assistir do alcoolismo generalizado dos homens e mulheres ngunis. Impotente, o médico suíço insurge-se vendo as jovens embriagadas que saem aos tombos da casa do intendente português.
Quando da morte de Mango, o filho do rei mais inteligente e culto, um dia depois de se recolher na palhota com um garrafão de 25 litros de aguardente oferecido pelo residente-chefe português, Ngungunhane, a insistências de Liengme, promete proibir o consumo de álcool. Envia um garrafão a cada régulo avisando ser este o último. Quem desobedecer será morto.
Os chefes dizem cumprir a ordem do monarca e, depois de ingerida a última gota de aguardente, cospem na sua presença para uma cova em sinal de desprezo pela bebida. Promessa vã. Nem Ngunguhane dá o exemplo aos seus súbditos nem os comerciantes brancos querem perder tão lucrativo negócio.
"Diabólico e monstruoso", — diz ainda Liengme de Ngungunhane — "toda a sua política era de tal modo falsa, absurda, cheia de duplicidade, que se tornava difícil conhecer o seus verdadeiros sentimentos".
O intendente português junto da corte nguni, Matheus Serrano, descreve assim o seu primeiro encontro com o régulo:
"O Gungunhana recebeu-me com manifesta urbanidade. É ele um homem reforçado, cheio de carnes, de estatura regular, tipo simpático, e agradável na conversa. Mostra ser inteligente e de grande agudeza de espírito. Fala mansamente, com intermitências, como de quem sofre falta de ar ou tem a garganta ferida".
Também o tenente Aires de Ornelas, enviado da administração portuguesa, o olha com simpatia: "Só direi que admirei o homem, discutindo tanto tempo com uma argumentação lúcida e lógica".
O major Caldas Xavier enaltece-lhe "o bom senso e tacto administrativo", Douglas Wheeler, diplomata inglês, considera-o "um político hábil e arguto". Outros referem-lhe a astúcia e o hábil manejo nas negociações para obter concessões aliciantes.
Exímio na arte do "dividir para reinar", o "Leão de Gaza" governa o império com despotismo e mão férrea. Como o avô e o pai, chacina as etnias submetidas, queima as suas aldeias, rouba e pilha os seus bens. Senhor de muitos milhares de escravos, adopta as moças capturadas para depois engrandecer a sua fortuna com o recebimento do lobolo (dote) do casamento.
Manhã cedo, 13 de Março de 1896, o vapor "África" fundeia a meio do Tejo, frente a Cacilhas. Fragatas, canoas, botes, dezenas de embarcações a remos e à vela rodeiam o navio que largou Lourenço Marques dois meses antes.
Lisboa está em festa. Milhares de pessoas acorrem ao cais para ver o último trofeu de guerra da monarquia. É a "fera cruel", o "pesadelo de todos os governos portugueses", o "régulo sanguinário", como o classificam os jornais nos últimos anos. É Ngungunhane (Gungunhana na ortografia colonial) capturado por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite, a 28 de Dezembro de 1895.
Depois de horas de insistências, alguns jornalistas conseguem permissão de subir a bordo. Encontram o grupo de 16 prisioneiros a estibordo num exíguo espaço mal iluminado com dois patamares de beliches. Nas esteiras superiores está Ngungunhane com sete das suas rainhas: Namatuco, Machacha, Patihina, Xisipe, Fussi, Muzamussi e Dabondi. No beliche inferior amontoam-se Godide, filho primogénito de Ngungunhane, o régulo Matibejane e as suas três mulheres, o régulo Zixaxa, Molungo, tio de Ngungunhane, e Gó, o cozinheiro do imperador.
Aos jornalistas impressiona o cheiro nauseabundo de dois meses de clausura.
"Quando entramos nos alojamentos — lê-se no Diário de Notícias no dia seguinte — estavam todos os pretos deitados e o Gungunhana, que ocupava uma extremidade da tarimba, tinha o rosto coberto. Alguém lhe descobriu a cara e o preto despertou, olhando para todos com olhos desconfiados. Pouco depois, como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior numero e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição".
Ngungunhane está exausto e horrorizado. Desde a captura em Chaimite que receia o fuzilamento. Chora, implora, treme, esconde o rosto com as mãos, oferece tudo o que já não tem para obter a libertação, dinheiro, gado, ouro, marfim, escravos, terras. Aos que o rodeiam pergunta sem cessar: "Digam-me o que querem de mim. Vai morrer? Para que lhes sirvo eu? Deixem-me regressar que morro se não vejo as minhas terra", traduz o intérprete.
Quando lhe apontam o Palácio da Ajuda pede ao comissário régio de Moçambique António Enes para ser recebido por D. Carlos. Quer implorar perdão, jurar fidelidade ao monarca a quem anos atrás enviara duas embaixadas recebidas com pompa. Talvez ele o deixe retornar ao seu vasto império.
Às três e meia da tarde os prisioneiros desembarcam no Arsenal. Há cada vez mais gente a desfrutar o espectáculo. O ar altivo, as roupas e os enfeites das mulheres despertam a curiosidade. "Quase todas altas e mais cor de castanha que pretas (…) carapinha bem penteada (…) feições finas, bonitas mesmo", admira-se a imprensa.
No interior do Arsenal, Godide torna-se objecto de curiosidade particularmente das esposas dos funcionários. É jovem, alto, fala português, não está assustado como o pai. Quando consta que sabe assinar o nome, as distintas damas assediam-no com risinhos histéricos para obter o autógrafo do bem disposto prisioneiro.
O grupo é metido numa jaula em forma de carruagem com destino ao forte de Monsanto. Atravessa as ruas da Baixa lisboeta, a Avenida, Palhavã, Sete Rios, Benfica, Calhariz. O povo é tanto que nalguns locais o cortejo dificilmente avança. Os dichotes e as humilhações que os prisioneiros sofrem são de tal monta que a imprensa protesta pela passividade da polícia.
Como a curiosidade da população ainda não está saciada, ficam em exibição como uma peça da fauna africana no Jardim Botânico de Belém. Quando chegara de Chaimite, o governador de Moçambique também exibira Ngungunhane e parte da sua corte numa plataforma erguida junto à sua residência em Lourenço Marques.
A REBELIÃO TSONGA
Ngungunhane é surpreendido pela rapidez dos acontecimentos. Fica sem resposta o seu pedido de protecção à Rainha Vitória com que procura jogar no conflito entre Londres e Lisboa. Os dois governos chegam a acordo na delimitação dos territórios africanos, rubricado em Junho de 1891, e onde Gaza fica, sem margem para dúvidas, no interior de Moçambique. O imperador é intimado assumir-se como súbdito de Portugal.
Em Agosto de 1894, os tsongas da região de Lourenço Marques — Terras da Coroa, chamam-lhe os portugueses — revoltam-se depois de repetidos abusos das autoridades coloniais. Os régulos Mahazule, Nwamatibyane e Amgundjuana reúnem milhares de guerreiros, cercam durante mais de dois meses Lourenço Marques preparando o assalto à cidade.
O Governador-Geral, brigadeiro Magalhães e Meneses, chega da Ilha de Moçambique, a capital da colónia, ordena o levantamento de trincheiras e arma canhões. Dispensa a oferta de Cecil Rhodes para servir de medianeiro e consegue suster, em 14 de Outubro, o ataque dos assaltantes que deixam no terreno mais de uma centena de corpos.
A revolta dos tsongas faz soar o alarme em Lisboa que envia para Moçambique o antigo ministro da Marinha António Enes como Comissário Régio, dispondo de poderes superiores ao de Governador-Geral. Acompanham-no um grupo de oficiais da elite aristocrática do exército que irá fazer carreira na administração colonial.
Partidário da pacificação pela força das armas, Enes promete na despedida à Rainha Amélia "trazer preso aos pés de Sua Majestade o famoso tirano da África do Sul", ele que é da opinião que "o Estado não deve ter o menor escrúpulo em obrigar e, se necessário for, forçar esses rudes negros da África, esses ignorantes párias, esses semi-idiotas selvagens da Oceânia a trabalhar".
Chegado a Lourenço Marques prepara o ataque aos tsongas. Entrega o comando da expedição de 37 oficiais e 800 soldados aos majores Ribeiro Júnior e Caldas Xavier que marcham sobre Marracuene, na margem direita do rio Incomáti. O confronto dá-se na madrugada de 2 de Fevereiro de 1895. A força portuguesa, disposta em quadrado, vale-se do poder dos canhões e metralhadoras e vence os tsongas que abandonam no chão mais de 70 cadáveres. Vinte e quatro mortos e 28 feridos são as baixas contabilizadas do lado português.
Os régulos Nwamatibyane e Amgundjuana refugiam-se em Gaza (Mahazule não combate em Marracuene da mesma forma que recusara participar no ataque a Lourenço Marques) e ficam sobre a protecção de Ngungunhane que lhes aceita a vassalagem.
BRAÇO DE FERRO
O rei nguni recusa entregar os chefes tsongas à tropa portuguesa como exige o Comissário Régio.
Lisboa dá instruções claras, lembrando a António Enes que "tudo o que não fosse o aniquilamento total de Gungunhana não corresponderia aos sacrifícios pesadíssimos que o país tinha feito".
O braço de ferro mantém-se. Ngungunhane recusa o ultimato do Comissário Régio transmitido por José de Almeida, o secretário da Companhia de Moçambique que está acreditado na sua corte. As exigências portuguesas significam a submissão total do poder nguni: fornecimento de mão-de-obra, impostos leoninos, liberdade de circulação, construção de postos militares.
Reunido o Conselho de Estado de Gaza, o poder de fogo já exibido pela tropa portuguesa e as divisões que alastram no seio dos ngunis reflectem-se na disposição da maioria em aceitar o ultimato. Ngungunhane ignora a opinião dos conselheiros e apenas se declara disposto a ceder num ponto: entregar os chefes tsongas na condição dos soldados portugueses passarem para lá das fronteiras do reino.
Georges Liengme nada consegue fazer na intermediação entre os dois adversários irredutíveis.
Enes dá ordem de avançar às tropas, reforçadas com mais efectivos chegados de Portugal.
Ngungunhane diz a José de Almeida que "vai abrigar-se à bandeira de outros brancos". Mas os emissários aos centros de decisão na África do Sul trazem-lhe recusas de ajuda.
A 8 de Setembro, a força comandada pelos capitães Freire de Andrade e Paiva Couceiro que parte de Lourenço Marques em direcção a Mandlakasi é atacada em Magul por 13 mangas (regimentos) africanas, cerca de seis mil homens. Os soldados portugueses, em número de 275, recorrem mais uma vez à táctica do quadrado, defendido por arame farpado.
Como sempre, os guerreiros de Ngungunhane lançam-se em formação de meia lua contra as metralhadoras e peças de artilharia. A desproporção do poder de fogo é enorme. São dizimados. Morrem 400 africanos contra apenas cinco soldados brancos.
Depois desta nova derrota, o imperador nguni ainda tenta negociar com o Comissário Régio e envia mais emissários a Durban e à Cidade do Cabo na esperança de obter auxílio britânico. Nada consegue.
DERROTA EM COOLELA E MANDLAKASI
António Enes quer cumprir o prometido à Rainha Amélia. Manda o coronel Eduardo Galhardo, à frente de 600 oficiais e soldados portugueses e 500 auxiliares africanos, tomar a capital nguni. A coluna está equipada com 38 carros de combate e seis canhões.
Ngungunhane conta com cerca de 13 mil homens, o que não chega a um terço do que, poucos anos antes, recrutaria sem dificuldade. O seu poder absoluto está claramente enfraquecido. Vários régulos, entre os quais três tios do imperador, não se apresentam para a batalha. Magigwani, o reputado comandante-chefe das mangas ngunis parte para Bilene em busca dos reforços que nunca chegarão.
O confronto acontece em Coolela, a 7 de Novembro. A situação repete-se. O quadrado, o arme farpado, as metralhadoras, os canhões e as novas carabinas de repetição Kropatscheck que tinham substituído as velhas Mannlicher, esmagam os regimentos de Ngungunhane. Morrem cinco soldados brancos contra muitas centenas de guerreiros de Gaza.
Antes de encetar a fuga de Mandlakasi, Ngungunhane reúne-se com os conselheiros e acusa tios e primos de traição pela ausência na frente de combate.
A 11 de Novembro, o coronel Galhardo entra sem oposição em Mandlakasi, que os auxiliares pilham e ele manda incendiar.
Ngungunhane refugia-se em Chaimite, a aldeia sagrada onde está a campa de Manukuse, o fundador do Império de Gaza. Oferece sacrifícios humanos ao avô e a outros antepassados em troca de protecção divina.
António Enes quer a captura de Ngungunhane. É a promessa devida à rainha e o receio do régulo poder reorganizar os seus exércitos.
Confere plenos poderes ao major de cavalaria Mouzinho de Albuquerque nomeando-o, a 10 de Dezembro, governador de Gaza, que passa a ser um novo distrito militar.
Acossado, Ngungunhane entrega ao inimigo o régulo tsonga Nwamatibyane, que se acolhera sob a sua protecção.
Mouzinho ignora mais este gesto de desespero do "Leão de Gaza". Explica-se no "Relatório sobre a prisão do Gungunhana": "tinha-se enraizado no meu espírito a ideia que eu havia de prender ou matar o Gungunhana".
CHAIMITE
No dia de Natal, parte à captura de Ngungunhane apenas com dois tenentes, um médico e 49 praças. Nos três dias de marcha forçada, juntam-se-lhe vários régulos que se oferecem para combater o monarca nguni.
Por duas ocasiões, este envia ao encontro de Mouzinho emissários com presentes para a coluna não avançar mais. Manda-lhe entregar uma vez 560 libras de ouro e alguns dentes de marfim, noutra é o próprio filho primogénito Godide que traz mais 510 libras de ouro e 63 búfalos.
Na madrugada de 28, Mouzinho avista as paliçadas de Chaimite. Os homens dos régulos dissidentes só progridem no terreno à força da espadeirada. É grande o terror que o imperador ainda lhes provoca.
Mouzinho precipita-se para uma estreita abertura da cerca, por onde cabe apenas um homem, seguido dos soldados brancos. A ousadia resulta em cheio. Surpresos, os cerca de 300 fiéis, armados de espingardas, da aguerrida manga "Zinhone-Muchope" (aves brancas), último reduto de defesa de Ngungunhane, não esboçam qualquer resistência e fogem.
Lê-se no "Relatório": "este acto de cobardia dos pretos foi providencial, pois fuzilando-me a 10 metros de distância (…) teriam possivelmente morto todos os oficiais, os auxiliares teriam fugido logo, e as praças brancas, sem ter quem as dirigisse, teriam sido trucidadas…".
Grita Mouzinho por Ngungunhane. A cena descrita pelo próprio:
"Não se pode fazer ideia com que respondeu às primeiras perguntas que lhe fiz. Mandei-lhe prender as mãos atrás das costas (…) e disse-lhes que se sentasse. Perguntou-me onde e, como lhe apontasse para o chão, respondeu-me muito altivo que estava sujo. Obriguei-o então à força a sentar-se no chão (coisa que ele nunca fazia), dizendo-lhe que ele já não era régulo dos mangonis [ngunis] mas um matonga [tsonga] como qualquer outro".
Capturado Ngungunhane, Mouzinho de Albuquerque ordena o fuzilamento do induna (conselheiro) Mahune e de Queto (tio do imperador) que considera os instigadores da rebelião. Ainda ele:
"Exprobrei a Mahune (que era a alma danada de Ngungunhane) o ter sido sempre inimigo dos portugueses, ao que ele só respondeu que sabia que devia morrer. Não é possível morrer com mais sangue-frio, altivez e heroicidade; apenas disse sorrindo que era melhor desamarrá-lo para poder cair quando lhe dessem os tiros".
A derrota do imperador dos ngunis não faz cessar a resistência em Gaza. A repressão colonial também não dá tréguas. É o próprio Comissário Régio a assumir nos seus famosos relatórios a política de terror, fria e selectiva, que põe em prática para submeter a população.
Um mês depois de Chaimite, é aprisionado o régulo Mahazul e a 24 de Fevereiro de 1896 o célebre Finish que fustigava as canhoneiras portuguesas no Limpopo.
Irmãos, filhos e tios de Ngungunhane são executados, presos ou impelidos para o exílio no Transvaal. Isso acontece até aos régulos que tinham traído o seu chefe e combatido contra ele em Coolela e Mandlakazi.
A resistência sofre um rude golpe em 21 de Julho de 1897. É a morte em combate de Magigwani, o valente régulo, de etnia khosa, que fora o comandante-em-chefe dos exércitos do "Leão de Gaza".
Mas durante muito tempo ainda as autoridade coloniais vão preocupar-se com a rebelião latente que fermenta em Gaza. No relatório de 1910, o governador Freire de Andrade reconhece o seu fracasso em conseguir a extradição do Transvaal dos chefes ngunis que do exílio incitam as suas tribos a combater os portugueses.
DESTERRO NOS AÇORES
7H30, 23 de Junho de 1896. Os guardas do Forte de Monsanto descem às celas dos prisioneiros para os preparar para a última viagem.
No dia anterior, o governo tomara, finalmente, a decisão de os desterrar para a Ilha Terceira, nos Açores. Tentara guardar segredo para que não se repetisse a agitação, quase distúrbios, da populaça, verificada três meses antes. No entanto, a imprensa tinha conseguido furar o sigilo e cinco repórteres estão de plantão junto aos portões do forte.
Os prisioneiros entram em pânico quando os vão buscar. Sobretudo Ngungunhane que se convence que chegou, finalmente, o momento da sua execução. Recusa vestir-se, rola pelo chão, faz o gesto de ser lhe cortada a cabeça. Pergunta, como à chegada a Lisboa: "Vai morrer?".
As dez mulheres parecem enlouquecidas quando se dão conta que vão separá-las dos companheiros. Tal como o cozinheiro Gó, ficam no forte até serem dispersas por terras angolanas.
A muito custo, os guardas vestem Ngungunhane com as roupas novas mandadas fazer para a viagem. As calças de brim estão tão apertadas que se rompem ao subir para o "trem de praça". Zixaxa troça da triste figura do rei destronado. Desde Moçambique que ele e Ngungunhane lançam um ao outro as culpas da rebelião nguni e nutrem um ódio recíproco.
Ao chegar ao Arsenal, esperam-nos o ministro da Marinha, jornalistas, cavalheiros e damas munidos de convites especiais. Godide dá mais autógrafos.
Ngungunhane tem de ser levado em braços para a canhoneira "Zambeze". Está exausto, perdeu o último vestígio de dignidade, mas já desistiu de implorar a audiência a D. Carlos.
São todos revistados porque o comandante do navio teme que escondam facas para se suicidarem. Depois empurram-nos para o "bico da proa da coberta de vante" onde ficam alojados.
A imprensa fustiga o governo pelo "cúmulo da crueldade" de separar os prisioneiros das mulheres.
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