A ÁRVORE VENENOSA
Não se pode plantar uma árvore venenosa dentro do quintal; nem sequer na quinta adjacente ao quintal da casa. É proibido! A sua utilidade para matar os nefastos ratos e baratas que, quase sempre que o PAPAI de casa recebe ilustres hóspedes na sala de estar saem de baixo do divã e pulam para cima da cristaleira, criando um grande embaraço, não poderá ser evocada como razão plausível para ter aquela árvore dentro de casa. É absolutamente interdito porque a aliciante beleza exterior dos seus frutos pode induzir as crianças (os legítimos herdeiros do PAPAI) a consumi-los e, desse consumo, resultar uma tragédia. Por amor aos próprios filhos, o PAPAI deve odiar a árvore venenosa.
A prepotência é uma árvore venenosa. Os seus frutos – a violência - são nocivos para a sociedade humana, inclusivo para o prepotente que pode, a qualquer momento tornar-se, ele mesmo, um dos vítimas da sua própria árvore.
A prepotência é, fundamentalmente, um sentimento falso de superioridade, ou de auto afirmação, da pessoa que se acha superior a demais. O prepotente julga-se um ser humano superior aos outros, por qualquer razão: ou porque acha-se fisicamente mais forte do que os outros, ou porque acha-se socialmente melhor posicionado do que os outros – utiliza estas pretensões (ou outras) para desvirtuar todas as normas sociais e estabelecer, a seu favor, um regime arbitrário. Uma pessoa prepotente muitas vezes também é classificada como arrogante, porque se considera superior aos outros, tratando-os de forma desrespeitosa.
Como se pode notar, quando é definida em termos da pessoa na sua dimensão individual e privada, a prepotência é um defeito. O prepotente, neste caso, é uma pessoa desprezível. Mas, quando é definida em termos de relacionamentos sociopolíticos, o seu significado descreve uma pessoa ou um regime absoluto que abusa (usa arbitrariamente) do seu poder e autoridade para oprimir as pessoas que estão sob o seu comando. Neste caso, a prepotência torna-se um perigoso veneno para aquela sociedade.
Enquanto as instituições e as pessoas que tutelam os direitos fundamentais apregoam, por exemplo, que a vida deve ser interrompida apenas por causas naturais, restando proibido que uma pessoa tire a vida de outra, ou uma pessoa coloque a outra numa situação de perigo de vida, o prepotente acha-se dono das vidas de todas as pessoas que olha com desprezo; o prepotente acha-se com direito de pôr em risco as vidas dos que ele considera inferior, por qualquer motivo, inclusivo para defender os seus caprichosos interesses. Para o prepotente a única vida preciosa é a sua e a dos seus, a dos restantes não conta para nada. Para estes últimos viver é um favor que se lhes presta!
Mais ainda, enquanto os defensores dos direitos fundamentais sustêm que o direito à vida também é um direito à saúde, à alimentação, à educação, e todas as formas que garantem a dignidade da pessoa humana, para o prepotente, o único que tem direito à saúde, à alimentação e à boa educação e todas as formas que garantem a dignidade da pessoa humana é ele, os seus filhos, e as pessoas da sua classe, porque só ele e os seus são “pessoas” no verdadeiro sentido da palavra. Os restantes estão numa posição intermediária entre pessoa e qualquer outra coisa.
A prepotência cria uma diferenciação entre cidadãos: os da primeira classe (o prepotente e uns poucos privilegiados) e os da segunda classe (os restantes cidadãos); e ela (a prepotência) autoriza os cidadãos da primeira calasse a perpetrar todo o tipo de violências (fruto da prepotência) contra os cidadãos da segunda classe. Os cidadãos da primeira classe cometem sistematicamente, por exemplo, a violência psicológica contra os cidadãos da segunda classe, fazendo-os padecer a sua condição de inferioridade; humilhando-os e fazendo-os conceber a sua condição como perpétua e insuperável, salvo se estes se associarem àqueles, na condição de submissos. Os cidadãos da primeira calasse cometem também violência social contra os da segunda, condenando-os à miséria e perpetuando a miséria destes através de sistemas político e socioeconómico fechados. Os cidadãos da segunda classe são também utilizados para fazer guerras e combater batalhas necessárias para perpetuar o status quo; as suas vidas não contam para nada, podem morrer nas matas, sem nenhum direito a uma digna sepultura, nem direito de ser chorados pelos membros das próprias famílias.
Para os cidadãos da segunda classe a saúde não é um direito. De facto, os hospitais e centros de saúde disponíveis e acessíveis para estes cidadãos, não são exatamente lugares de assistência médica e medicamentosa, são, antes, uns ninhos de encubação de epidemias, donde o paciente sai com mais doenças de quantas trazia da própria casa. O mais deplorável é que não existe (e provavelmente não existirá) nenhuma vontade de melhorar este estado de coisas porque os cidadãos da primeira classe – aqueles para quem a saúde e a vida contam alguma coisa – têm um poder financeiros que lhes permite viajar para o exterior à busca da sua assistência médica.
Os cidadão da primeira classe violentam os da segunda, inclusivo nas suas consciências. Estes estão proibidos de manifestar a sua insatisfação em relação à estrutura opressiva à qual estão sujeitos. Eles devem mostrar-se satisfeitos e desejosos de colaborar como com o estado das coisas. Isto explica porque é que são estes mesmos cidadãos da segunda classe os executores eficaz das repreensões; os autores matérias dos crimes hediondos - os componentes dos esquadrões da morte; são eles os viciadores dos resultados eleitorais, os que empurram compulsivamente os contestadores aos cárceres; os protetores dos cidadãos da primeira classe (os prepotentes); os fabricantes e difusores da opinião pública conveniente.
Como se poder ver, uma vez instaurado o sistema de violência, o prepotente (cidadão da primeira classe) deixa que os cidadãos da segunda classe se violentem uns aos outros. A violência que os cidadãos da segunda classe infligem uns contra os outros cresce até tornar-se uma cultura. Quando começa a identificar-se com a cultura, o prepotente regozija-se porque acha que os outros já aceitaram a própria condição de cidadãos da segunda classe, e já renunciaram qualquer tentativa de alterar o equilíbrio.
Infelizmente, esta é a altura em que o fruto venenoso da prepotência vitima o próprio prepotente. De facto, a excessiva depreciação do valor da vida dos cidadãos da segunda classe que, basicamente, é engendrada em função dos interesses da prole dos cidadãos da primeira classe, acaba induzindo esta mesma prole a pensar que a sua própria vida também não tem nenhum valor; de tanto ouvir falar das encomendas de assassinatos, por qualquer capricho, ou razões fúteis, aqueles a quem a violência devia beneficiar acabam adoptando-a para própria ruína.
O jovem Zófimo Muiuane está na prisão porque baleou mortalmente a sua jovem esposa Valentina Guebuza, ambos, aparentemente, beneficiários da cultura de prepotência e violência que se consolidaram ao longo do percurso da nossa história de povo soberano. Embora alguns, como a chefe da bancada do partido no poder, Margarida Talapa, possam preferir iludir a questão no famoso estigma da “violência doméstica contra a mulher”, é evidente que, quando o que até bem pouco tempo era um mal reservado aos cidadãos da segunda classe, começa a ameaçar também os cidadãos da primeira classe, é um sinal claro que os tecidos sociais já estão imbuídos e ensopados daquele mal; significa que o fruto da árvore venenosa já foi consumido pelos filhos.
O jovem Zófimo poderá envelhecer ou terminar o resto dos seus dias na prisão. Mas há outros “zófimos” que baleiam (ou mandam balear) todos os dias muitos “valentinos”, e estão em liberdade, a comer e a beber do bom e do melhor. Se não se investir politicamente e socialmente na “eliminação” destes zófimos que impunemente continuam a semear terror e a consolidar a cultura da morte, ainda teremos muitos outros assassinatos de “valentinas” por baleamento.
Nos sistemas democráticos se insiste muito na correspondência entre boa governação e respeito pelos direitos humanos, não tanto porque não exista, naquelas sociedades, ninguém que se julgue superior aos outros e pretenda um tratamento especial, mas porque procuram distanciar-se dessa “árvore venenosa”, cujo fruto – a violência - poderia escapar do controlo racional. Os direitos humanos são, assim, tidos como prerrogativas essenciais concedidas ao indivíduo (mais tarde alargadas aos grupos), que toda a autoridade política (e todo o poder em geral) tem a obrigação de garantir o seu respeito. Os direitos da pessoa humana constituem as proteções mínimas que permitem ao indivíduo viver uma vida digna desse nome, defendido das usurpações do arbítrio estatal (ou outro); são, por conseguinte, uma espécie de espaço “sagrado”, intransponível. Uma outra maneira de formular a questão sobre os direitos humanos é dizer que eles representam as regras do jogo mínimas que devem ser respeitadas pelos governantes e pelos governados para que uma vida digna desse nome seja possível.
O espaço privado do indivíduo surge com efeito como dirigido, à primeira vista, contra o poder político (contra as suas invasões, contra o seu despotismo, contra o seu arbítrio); mas, num outro sentido (também essencial), este espaço implica exatamente o contrário, isto é, os direitos humanos representam um apelo dos indivíduos e dos grupos ao poder político, dado que os direitos da pessoa humana devem valer também contra os outros membros da sociedade, e que, para isso, é necessário que o indivíduo possa apelar... à sanção do poder político.
Trata-se, portanto, por um lado de enfrentar o poder político (limitar as suas tendências despóticas, o seu “poder a mais”), e ao mesmo tempo de reforçar (fazer de modo que ele tenha a força) – que ele possua o monopólio da violência política – necessária para sancionar os atentados aos direitos fundamentais que ocorrem entre governados.
É imperativo arrancar a árvore venenosa do quintal porque ela pode, eventualmente, vitimar as crianças!
Alfredo Manhiça
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