Editorial
A
notícia de que os familiares dos cidadãos moçambicanos desaparecidos se
preparam para criar uma associação (Leia nesta edição) destinada a
criar as bases para um processo judicial a ser movido contra o Estado
Moçambicano serve para confirmar a precariedade do nosso sistema de
justiça. Há mais de 35 anos, tinha lugar num campo de treino militar da
Frelimo em território tanzaniano uma espécie de “julgamento” envolvendo
cidadãos moçambicanos detidos pela Frelimo à revelia dos tribunais, uns,
raptados no estrangeiro, outros, e que depois foram “sentenciados” à
“reeducação”, pena não prevista em nenhum Código Penal em vigor em
Moçambique. A Frelimo desempenhou em simultâneo, no âmbito desse
processo, o papel de acusador e de “juiz”. Os acusados não tiverem
direito a defesa legalmente constituída. Este simulacro de justiça
serviu para ilustrar o tipo e qualidade de justiça que estava reservada
para os cidadãos moçambicanos na nação soberana prestes a nascer.
O
fim trágico a que as vítimas dos julgamentos stalinistas de Nachingwea
ficaram votadas, a ponto de hoje os familiares dessas mesmas vitimas
sentirem-se na contingência de terem de formar uma associação para
proteger e salvaguardar os seus legítimos interesses, era assunto que,
em primeira instância, deveria ser dirimido por instituições de direito
moçambicanas, mormente a Procuradoria-Geral da República (PGR), mas como
sempre a tendência partidária tem prevalecido e esta instituição pura e
simplesmente não age.
A
realidade crua e nua é que a PGR, ao contrário do que se rezam os seus
estatutos, não é uma instituição virada para a defesa dos legítimos
interesses dos cidadãos. Acima de tudo, ela protege o partido político,
que teima em continuar “força dirigente do Estado e da sociedade”.
Que mais será necessário dizer a quem ainda tem dúvidas da partidarização do Estado?
Ao
fim de 35 anos de Independência, e perante a declaração pública de
destacadas figuras da Frelimo assumindo responsabilidade –
orgulhosamente assumida, acrescente-se – pela tragédia de Nachingwea, e
as acusações ventiladas nas páginas da comunicação social independente,
mencionando nomes, indicando locais, datas e a identidade de figuras
responsáveis pelo sucedido no âmbito do que já é conhecido por “Processo
de Nachingwea”, a PGR nada fez e continua a fingir que nada disso lhe
diz respeito. Por outras palavras, colocou-se à margem de um crime
político e demitiu-se das suas funções, permitindo que os autores morais
e materiais permaneçam intocáveis. Mais: faz ouvidos de mercador a
queixas que lhe foram apresentadas por familiares de cidadãos
moçambicanos desaparecidos, forçando esses mesmos familiares a
recorrerem a instâncias internacionais de Direito dado que em Moçambique
a justiça, conforme a própria PGR o confirma pela sua comprovada
atitude, não funciona, não serve os interesses legítimos dos cidadãos e
protege quem lhe convém violando os seus próprios estatutos e
desprestigiando o Estado.
É
pois, neste contexto de injustiça, de desprezo pelas normas do Direito,
pela vedação do acesso às instâncias de Direito em Moçambique, que está
em vias de surgir uma Associação que, ao que se prevê, terá de ir bater
à porta, não da PGR, mas de instituições como a Comissão Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos ou do Tribunal Africano dos Direitos
Humanos e dos Povos para fazer valer um legítimo direito: o da
determinação do paradeiro das pessoas desaparecidas, das circunstâncias
do seu desaparecimento, e do apuramento das responsabilidade para, à
face da lei, se atribuírem indemnizações justas aos familiares das
vítimas.
A
PGR colocou-se a ela própria no dilema em que agora se encontra ao
renunciar ao cumprimento do seu dever estatutário. Não poderá, por
conseguinte, tentar contornar o caso e muito menos subverter os fins das
Justiça, travando, uma vez mais, o acesso das vítimas a instâncias em
que possam, efectivamente, ser ouvidas. Como dizem os britânicos, a PGR cannot have both ways,
o que na nossa língua oficial daria algo como: a Procuradoria-Geral da
República perdeu a oportunidade de fazer justiça e agora não pode
impedir que os prejudicados recorram a quem faça na realidade justiça.
Canal de Moçambique – 26.05.2010
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