Os trágicos acontecimentos registados durante o mês de Agosto em Angola haviam sido ansiosamente seguidos
em Moçambique. Recordemos que a par dos distúrbios em Luanda se verificaram um
pouco por toda a parte em Moçambique pequenos incidentes, que no entanto não
se revestiram de grande significado imediato. Das hipotéticas deambulações dos
chamados mercenários de Jorge Jardim pelos distritos da Beira e de Vila Pery,
passando pelas sucessivas paralisações dos
portos de Lourenço Marques, da
Beira e de Nacala, até à crescente actividade de guerrilhas da FRELIMO,
com especial incidência nos distritos de
Vila Pery, Beira e Tete — neste último
com constantes sabotagens da linha férrea abastecedora das obras de
Cabora Bassa — tudo levava a crer que cedo ou tarde a situação poderia agravar-se.
Ainda no mês de Agosto, Samora Machel
tornou pública a intenção da FRELIMO, em prosseguir a luta armada cada vez mais
abertamente até que as autoridades portuguesas se decidissem a reatar negociações à luz das condições que para tanto a
FRELIMO julgava imprescindíveis. 2 de Setembro, anuncia-se, por
intermédio de Samora Machel — que em Dar-es-Salam deu uma conferência à
Imprensa internacional — que Portugal aceitava finalmente as condições impostas
pela FRELIMO e que as negociações seriam reatadas em Lusaka, a partir de 5 de
Setembro. Esclarecia-se assim que o Governo Português aceitava o reconhecimento
do direito inalienável à independência moçambicana, com a transferência de
poderes para o povo do território, e reconhecia a FRELIMO como único representante legítimo do povo de
Moçambique.
«Não vamos negociar a independência. O
nosso objectivo é o de estabelecer a forma como o poder será transferido para a
FRELIMO, o que corresponde aos interesses tanto do povo de Moçambique, como do
povo português» — afirmou Machel, nessa conferência de Imprensa.
Também a
provável participação da FRELIMO num governo
provisório em Moçambique foi rejeitada pelo presidente do movimento, que
asseverou a sua certeza de
que o povo moçambicano estava mais do que suficientemente preparado para uma
independência sob a orientação da FRELIMO. Samora Machel, ao
fazer estas afirmações, baseava-se certamente na colaboração que começara nas últimas semanas a
verificar-se entre as autoridades portuguesas e elementos da FRELIMO, para a manutenção
da ordem nos distritos mais nortenhos do território.
Soube-se,
entretanto, que se registavam movimentos de tropas da FRELIMO junto à cidade da Beira, suspeitando-se de que aquele grupo emancipalista pretenderia
assumir uma posição de força que lhe permitisse
voz mais activa nas conversações a realizar em Lusaka. Em Lourenço Marques, por outro lado,
cresce a ansiedade face às declarações de
Samora Machel. O Dr. Antero Sobral, secretário de Estado do Trabalho de
Moçambique, e representante do Governo do território às conversações que se
irão travar em Lusaka, afirma
categoricamente que negros e brancos de Moçambique confiam na FRELIMO.
Em Vila Pery,
durante um comício de apoio à FRELIMO, o comandante Inguala faz um violento
ataque a Jorge Jardim, apodando-o de «bandido, lacaio do imperialismo, ladrão dos interesses do povo moçambicano».
Miguel Murupa1, Joana Simeão e Uria Simango são também acusados de traição. Em Lisboa, é anunciada a constituição
da delegação portuguesa às conversações de Lusaka: ministros Melo Antunes,
adjunto do primeiro-ministro, Mário Soares,
dos Estrangeiros, e Almeida Santos, da Coordenação Interterritorial,
além de representantes das Forças Armadas e
do já citado representante do Governo moçambicano.
A 4 de Setembro, uma quarta-feira,
Lourenço Marques apresenta todo o aspecto de um domingo, na sequência de
pedidos feitos à população para que nesse dia não trabalhasse, numa
manifestação de apoio aos representantes da FRELIMO nas negociações. O Governo
do território, numa atitude «inteligente e diplomática», segundo observadores
na capital moçambicana, anunciou a tolerância de ponto para esse dia. Fechou o
comércio, não trabalhou a indústria, e
apenas as repartições oficiais consideradas de necessidade
imprescindível funcionaram. E entretanto
feito um convite pela Associação Académica,
pelos sindicatos, pelas direcções dos bancos, pelas associações
comerciais, industriais, agrícolas e de proprietários, e ainda pêlos Democratas de Moçambique,
para que a população se concentre no Estádio da Machava, antigo Estádio
Salazar, que tem capacidade para cerca de sessenta mil pessoas.
Chega nesse dia a Lourenço Marques o
industrial António Champallimaud, para,
segundo afirma, uma visita às
empresas de que é principal accionista — cimentos, nitratos e adubos,
companhias de seguros, Banco Pinto & Sotto Mayor: mais de três milhões de
contos, em resumo. Em Londres, já a caminho da Zâmbia,
Mário Soares afirma a esperança de que Moçambique se torne independente em
Junho ou Julho de 1975, e revela que será a FRELIMO a escolher o Governo de Transição que até essa data funcionará, nele
sendo obrigatoriamente incluído um
Alto Comissário representante do chefe de Estado português.
Em Lourenço Marques, ainda a 4 de
Setembro, é distribuído um comunicado do
Partido de Coligação Nacional
(formado por Uria Simango, elemento dissidente da FRELIMO e cabecilha
da COREMO; por Joana Simeão, ex-dirigente do extinto GUMO; pelo reverendo
Gwengere), no qual se produz um violento
ataque aos democratas moçambicanos. A 5, iniciam-se
as negociações em Lusaka, verificando-se
pelas afirmações feitas então por elementos de ambas as delegações que a boa
vontade para um acordo final era mútua.
Em Moçambique, de Norte a Sul,
inicia-se a confraternização entre guerrilheiros e militares do exército
português. Ao Estádio da Machava e à praça de touros de Lourenço Marques,
acorrem milhares de moçambicanos, com esmagadora predominância de negros, mas também com muitos brancos, em comícios
de apoio à FRELIMO. Pelas ruas das cidades sucedem-se as manifestações. Em Lisboa, paralisam os serviços do
aeroporto, à excepção dos da TAP, por terem entrado em greve geral os
trabalhadores das companhias aéreas estrangeiras; e de Brazzaville chega a
notícia de que Portugal iniciaria em 1975 as negociações para a descolonização
de Angola. A 6, em Lusaka, é assinado o
cessar-fogo em todo o território, e chega-se a acordo quanto à transferência
de poderes para a FRELIMO. O protocolo é assinado a 7.
Da vizinha África do Sul, surgem logo
notícias de que o governo de Pretória era favorável à independência de
Moçambique sob a égide da FRELIMO. Salisbúria, por seu turno, mantém silêncio,
e estão ainda presentes no espírito de todos as declarações de Ian Smith, bem recentes, segundo as
quais Moçambique correria para «o suicídio
económico e político», caso não mantivesse abertas à Rodésia as vias de
comunicação vitais àquele país para o seu normal abastecimento. Das conversações em Lusaka, pois, saiu
o acordo total para a transmissão de poderes, e é fixada a data de 25 de Setembro de 1975, aniversário da
FRELIMO, para o empossamento do Governo Transitório.
1 Miguel Murupa: antigo
elemento preponderante da Frelimo. Caído em desgraça, entrega-se às autoridades
portuguesas — e tem uma ascensão meteórica
nas relações públicas oficiais do governo
colonialista.