Ainda havia muito medo nos olhos de todos. O mais velho, um professor campeão de tênis, ao lado da mulher, da filha, do genro e das três netas, apesar de tudo, conseguia falar de esperança. Eles fizeram parte talvez da primeira leva de refugiados de Moçambique a chegar ao Brasil naquela época de pânico que tomava conta da colônia portuguesa no continente africano.
Era janeiro de 1975 quando o cargueiro italiano “Calagaribaldi” finalmente atracou no Porto de Santos. A passagem de ano em alto-mar foi um divisor de águas para a família Prata Dias. Todos se abraçaram a bordo e agradeceram a Deus por estarem ali sãos e salvos, embora no rumo do desconhecido.
Encontrei um professor Prata Dias ainda em pânico. Em seu primeiro contato com um brasileiro, na porta do camarote, ele começou a contar a aventura que foi conseguir as vagas no navio, após uma espera de 48 dias até a chegada do cargueiro italiano.
“Posso dizer que Moçambique foi totalmente transformada em campo de batalha, e a indecisão é o ponto marcante na vida de inúmeras famílias, que não sabem o que fazer. Algumas, com posses, foram para países distantes; outras, com menos recursos, invadem a fronteira com a África do Sul; e há os que simplesmente esperam, para ver o que vai acontecer nos próximos dias”. Foram suas primeiras palavras a um jornalista cheio de perguntas a fazer.
O professor completava: “Há muito pânico e receio, e a incerteza do que está para acontecer tem levado famílias ao desespero, fugindo e deixando parentes, terras e até roupas”. Das 300 mil pessoas que moravam na região de Lourenço Marques, capital e principal porto do país, cerca de 130 mil já tinham fugido, muitas a pé.
Moçambique vivia tempos de guerra civil, de ódio racial, na luta por sua independência de Portugal, liderada pela Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo. Lisboa tinha vivido a Revolução dos Cravos em abril de 1974 que depôs o regime ditatorial e as colônias buscavam a independência a qualquer custo. A família Prata Dias já estava no Brasil quando isso aconteceu, em junho de 1975.
Com medo de ser assassinados, os portugueses de Moçambique tomaram rumos diferentes. O professor Manuel Alexandre Baptista Prata Dias, então com 53 anos, fez o que achou que deveria fazer: lutou por passagens em um navio qualquer, para qualquer lugar. Juntou seus familiares, encaixotou os 312 troféus e centenas de medalhas que ganhou durante 23 anos em torneios de tênis, alguns internacionais, catalogou seus documentos como professor de Educação Física com especialidade em tênis, com diploma dos Liceus do Ultramar, e às vésperas do Natal de 1974 conseguiu embarcar.
A bordo ele soube que o navio iria para o Porto de Santos. No mar, lendo uma revista, encantou-se com imagens de Porto Alegre e decidiu: adotaria a cidade para reiniciar a vida. Tudo o que tinha na bagagem eram planos. Um deles, de lecionar numa universidade e de voltar a dar aulas de tênis.
Senti muita determinação do professor com relação ao seu futuro no Brasil, até então totalmente desconhecido e incerto, e procurei transmitir essa firmeza de meta como um exemplo a ser seguido, na reportagem publicada na época. Mais incerto e desconhecido, para ele e sua família, era o futuro em Moçambique. “Queremos uma vida melhor”, disse, ao lado da mulher Maria Teresa, da filha Maria, do genro José Armando Ribeiro Fernandes e das netas Lycia, Ariana e Ágata.
O professor tinha uma curiosidade em seu currículo. Ele nasceu a bordo de um navio alemão, o “Wangoni”, numa viagem dos pais entre dois portos sul-africanos, e sua certidão de nascimento trazia como sendo natural do navio. Quando completou 18 anos, em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, foi chamado pela Alemanha para integrar o quadro do Exército, já que havia nascido no navio, considerado território alemão. Ele não foi e no ano seguinte resolveu mudar a certidão como nascido em Moçambique.
O "Wangoni", a bordo do qual Manuel Prata Dias nasceu em 1922, sob bandeira alemã. Em 1940, os alemães tentaram recrutá-lo para a guerra.
Ele mudou a certidão de nascimento para dizer que nascera no território então português de Moçambique. E ficou em Lourenço Marques.
O professor lembrou esse fato para dizer que se tivesse ido para a Alemanha teria mudado o seu destino. Acabaria mudando muitos anos depois por força de outra guerra, em seu país.
Nunca mais ouvi falar da família. Soube muitos anos depois que o seu sonho de lecionar tênis foi realizado até à morte. Um dos clubes em que foi técnico foi o Grêmio Náutico União, de Porto Alegre. Alguns de seus alunos, como havia acontecido no passado, agora no Brasil, tornaram-se campeões de tênis. Um deles, Miguel Kelbert, sempre faz questão de referir-se a ele como o seu primeiro e saudoso professor.
Escrevi depois muitas outras histórias de refugiados que chegaram ao Porto de Santos, ao acaso ou não, fugindo de Angola e de outros países, fugindo do medo, fugindo do futuro incerto, em tentativas de recomeçar a vida em condições mais favoráveis. A história dos Prata Dias, no entanto, por algum motivo, sempre me vem à memória.
São histórias que lembram a dos milhares de imigrantes que, como meus antepassados e os antepassados de muitos leitores, vieram para o Brasil e aqui se firmaram no trabalho nas cidades, em fábricas, ou no campo, plantando café e colhendo seus descendentes. São cidadãos de além-mar, campeões de além-mar, trazidos por navios ou aviões, a reconfirmar que, quando se quer, tudo é possível e tudo é vitória.
José
Carlos Silvares
(Recebido
por email)