“A Frelimo é como se fosse um ser vivo que se regenera e produz nova vida”
Nasceu
em Lourenço Marques, no bairro de Chamanculo, mas em 1955 deixa
Moçambique para prosseguir com os seus estudos. A repulsa pelo regime
colonial e pelo fascismo surge em si em Portugal, quando se apercebe do
contraste social entre a realidade lisboeta e as condições de miséria da
aldeia dos seus avós. O que significou, na altura, um homem branco
colocar-se contra o regime colonial, que era racista e discriminatório?
Creio
que o despertar da minha consciência foi mais em relação à injustiça da
sociedade. Eu conhecia mal a sociedade moçambicana, dado o próprio
regime que separava, uma espécie de Apartheid não declarado, e, em
Portugal, fui perceber, nessas aldeias pobres, que afinal não havia
diferença entre a injustiça que havia em relação aos pobres em Portugal e
em Moçambique. Mas, em Moçambique, era muito mais grave, porque, para
além da discriminação económica, havia uma discriminação social, racial,
claramente, para mim, uma injustiça que era preciso eliminar.
Como é que se desenvolveu este sentimento?
Entrei
em contacto com estudantes portugueses, com os quais debatemos
problemas políticos, mas, também, com os estudantes das colónias, muitos
dos quais frequentavam a chamada Casa dos Estudantes do Império, e
participei em algumas excursões, onde se discutiam problemas políticos.
Não era muito activo, porque era muito ignorante naquela época, mas
ouvia o que os mais velhos, os mais experimentados, diziam. Penso que
tive ali a consciência de que devia lutar por uma sociedade mais justa,
em particular em Moçambique.
Depois da sua formação superior, na Academia Militar, devia seguir para Açores, mas teve a
oportunidade de trocar com alguém e voltou para Moçambique, em 1962,
ciente de que podia filiar-se a uma organização e contribuir para a
auto-determinação política do território. No mesmo ano e mês em que
Samora foi a Tanzania, Março de 1963, junta-se aos guerrilheiros da
Frelimo, através de um “voo bastante tenso”. O que significou, para si,
aquele voo que revelou manifestamente a sua repulsa, revolta, contra o
regime colonial?
Aquele
voo foi, claramente, de ruptura. Eu era oficial das Forças Armadas
Portuguesas, portanto, tinha um estatuto em Moçambique, em particular,
bastante elevado. Pensei que aquela era uma boa maneira de fazer a
ruptura política com o regime colonial e fascista. Era uma boa maneira
de denunciar o colonialismo e dar um sinal àqueles que me quisessem
ouvir que, efectivamente, a melhor maneira de participar era lutando
contra a opressão colonial, uma situação injusta e condenável. Portanto,
é um voo de ruptura, claramente.
E
ao chegar a Tanzania, a recepção não foi agradável, para além de ter
tido uma aterragem bastante difícil, dada a dificuldade de comunicação
com a equipa que trabalhava no aeroporto de Dar-es-salaam. Tiveram a
infelicidade de serem detidos por entrada ilegal e, também, por
transportarem algum material bélico, que suscitou alguma desconfiança
por parte da polícia tanzaniana. Depois de oito semanas detidos, tiveram
que sair e deixar aquele país. Isso criou algum sentimento de recuo ou
de fortalecimento em relação àquilo que eram os ideais que levavam
quando deixaram Moçambique?
Não.
quando saímos, estava claro que não íamos encontrar uma recepção com
comité. Sabíamos que íamos encontrar uma situação bastante difícil. como
é que íamos explicar que dois indivíduos brancos, eu e João Ferreira,
estavam a favor de uma luta de libertação, sem ser conhecidos. Tínhamos
passado uma mensagem através das ligações que tínhamos com o ANC da
África do Sul, e prometeram passar a mensagem ao governo tanzaniano, mas
a mensagem chegou muito mais tarde. Já estávamos no Cairo e a mensagem
ainda não tinha chegado. De qualquer maneira, com mensagem ou sem
mensagem, sabíamos que íamos ter uma recepção muito dura. estávamos
preparados para isso. Aliás, até foi relativamente suave, podíamos ter
sido muito mais maltratados.
Quando
chegaram a Cairo, criaram um boletim designado “O Combatente”, cuja
linha era o apelo à unidade nacional e denúncia do colonialismo.
Entretanto, depois de três números fechou, por ordem de Marcelino dos
Santos. Porquê?
Marcelino
dos Santos chegou lá logo a seguir à criação da Organização da Unidade
Africana, entre Abril e Maio de 1963. Portanto, chegou lá e disse “vocês
andam aí a fazer jornais que não interessam, parem já com isso
imediatamente”. Nós realmente parámos, porque éramos um bocado
ignorantes, inconscientes da real situação política da época e fomos um
pouco influenciados pelos próprios egípcios, que incentivaram a fazer
aquele tipo de acções. Do mesmo jeito, queria mostrar (o Egipto) que
estava engajado na luta anti-colonial, porque até ali quem aparecia
muito nos países da África do Norte era o Marrocos, e o Egipto, com o
presidente Nasser, tinha a necessidade de se impor ou de aparecer como
apoiante das lutas de libertação em África.
Em
1966, deixa a Argélia e regressa à Tanzania para leccionar no Instituto
Moçambicano, a convite do presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, um
instituto que tinha como objectivo preparar jovens num sistema de ensino
adaptado às necessidades da luta armada de libertação. Só que, em 1968,
também conversou com Samora Machel, que lhe fez um convite para
participar nos treinos militares, em Nachingwea, mas não foi devido aos
conflitos que eclodiram no Instituto Moçambicano e, por essa razão, teve
que deixar essa oportunidade de participar em treinos militares. Até
que ponto essa divergência que eclodiu no Instituto Moçambicano
fragilizou a Frelimo?
Naturalmente
que houve uma certa divisão e uma fragilização momentânea, porque o
processo de libertação, de desenvolvimento da luta armada, de
aprofundamento da consciência política, prosseguiu. Realmente, do ponto
de vista político-militar, prosseguiu e não levou muito tempo até a
Frelimo consolidar-se como um movimento forte, que conduziu com sucesso a
luta de libertação. Houve uma fragilização, divisão, mas do ponto de
vista histórico, foi momentânea.
Havia duas linhas de orientação política nos primeiros anos da Frelimo
O que é que estava em causa?
O
que estava em causa, não sei muito bem, mas o que posso dizer é que
havia duas linhas de orientação política. certamente, hoje, já com a
distância e a experiência que temos da vida dos países, etc., não tenho
dúvida que os serviços secretos da época accionaram dentro da Frelimo
esta linha anti-revolucionária para a época, anti-luta armada,
anti-popular, para, exactamente, tentar reduzir o objectivo de
libertação total que a Frelimo defendia. Portanto, já naquela altura, os
serviços secretos dos países ocidentais, em particular, agiram. Bom,
imagino que os serviços secretos dos países socialistas na época,
chamados União Soviética, à cabeça, também agiram. Nós, desde essa
altura, fomos vítimas do conflito Leste–Oeste. Ali, o que se passou foi
uma manifestação relativamente pequena, do meu ponto vista, mas muito
grande em relação a Moçambique, que criou o conflito interno que não
tinha uma razão de ser, porque todos os moçambicanos estavam unidos na luta pela independência...
E como é que foi resolvida essa questão?
Foi
resolvida com o tempo e com acção da linha correcta dentro da Frelimo,
que era prosseguir com a luta armada, que não tinha prazo; era preciso
desenvolvê-la. Ao passo que a outra linha queria que se parasse e que se
negociasse com Portugal, o que não era a melhor maneira de se
conquistar a independência, como veio a verificar-se, na prática.
Já
estava provado que o diálogo podia conduzir a um fracasso, tendo em
conta, também, a experiência do Massacre de Mueda, em 1960, em que houve
uma tentativa de manifestação por parte da população, exigindo os
direitos de liberdade do homem, mas que foi bastante e terrivelmente
massacrada.
Foi
terrivelmente reprimida. Não havia dúvida que a única via era a luta
político-militar, porque não era uma luta militar por militar, era
política sob forma de guerrilha.
Foi
representante-adjunto da Frelimo, na Argélia, e tinha como tarefa
divulgar no mundo o desenvolvimento da luta de libertação nacional,
procurando apoio diplomático, político, financeiro e militar, assim como
encorajar os grupos já existentes. Que resultados alcançou com esta
actividade?
Os
resultados foram sempre muito positivos. Eu não era o único que fazia
essa actividade, éramos muitos, sobretudo a partir de Dar-es-salaam. Mas
o trabalho no qual participei foi muito positivo, porque pequenos
comités que se criavam na França ou na Itália, na Inglaterra, na
Holanda, em vários países, para a luta, tinham o apoio teórico, mas não
tinham informação do que se passava. Portanto, o facto de trazermos mais
informação dava a esses comités informação que lhes permitia aumentar o
apoio e mobilizar outros cidadãos daqueles países para apoiarem a luta
de libertação de Moçambique.
Foi
nessas actividades de luta na clandestinidade que teve a oportunidade
de conversar com Joaquim Chissano, que lhe ensinou a operar de forma
muito discreta como combatente da clandestinidade, tanto em Portugal,
como em Moçambique. Deu-lhe uma aula prática sobre como queimar papel
num quarto fechado sem deixar rastos. Como é que era essa técnica?
É
uma técnica muito simples, tinha que dobrar o papel de uma certa
maneira e incendiar também numa parte específica e, prontos, o papel
ardia sem fumo nem cheiro...
Durante
esse período em que esteve a operar na clandestinidade, enquanto em
Moçambique decorria a luta de libertação nacional, teve também a
oportunidade de viajar por vários países nessa missão diplomática de
divulgação daquilo que eram os objectivos da Frelimo e, várias vezes,
fê-lo com passaporte falso, tanto em 1963, como mais tarde, entre 1970 e
1975. O que é que justificou esta forma ilegal?
Não.
eu tinha acesso a documentos de viagem, até mesmo do governo argelino,
que apoiava os movimentos de libertação. Aliás, muitos membros da
Frelimo tiveram, para poderem viajar, com o apoio do país que fornecia o
passaporte. Mas o facto é que, com esses passaportes argelinos, como
país árabe, sobretudo quando começaram a aparecer acções
terroristas, o indivíduo era muito controlado (...), então, pensei que
um passaporte que me seria muito útil seria o português, e através de
uma série de mecanismos consegui um passaporte no consulado português de
Estocolmo, se não estou em erro, onde estava um companheiro que
estudava e vivia lá, o Lourenço Mitoca, que mais tarde foi assassinado
em Addis Abeba. Fui ao consulado com um passaporte português todo
desfeito e pedi um passaporte, ao que o consulado disse que podia dar-me
um válido só para regressar a Portugal, com duração de três meses. Aí é
onde houve essa falsificação da data: alterei de 1970 para 1975. Tive
sorte, porque foi bem feito.
E ficou com dois meses a mais?
Ficou
com cinco anos e dois meses a mais, o que era um bocado estranho. Mas
ninguém reparou naquilo, também ninguém via o passaporte. Se nalguma
fronteira tivesse passado o infra-vermelho, teria-se detectado que havia
uma anomalia.
Falar
de 1970 é falar do período que antecedeu o golpe de Estado em Portugal,
que veio a conduzir à assinatura dos históricos Acordos de Lusaka. Onde
é que se encontrava nessa altura em que, de alguma forma, alguns
portugueses que regressavam a Portugal, depois de uma convivência
pacífica com os moçambicanos da luta de libertação, foram, de alguma
forma, pressionar a sociedade portuguesa com vista a colocar fim ao
fascismo, através de um golpe de Estado? E como é que viveu esse
momento?
O
golpe de Estado teve lugar a 25 Abril de 1974 e nesse dia estava em
Argel. Algumas semanas antes, tinha estado na América Latina, mas
naquele dia estava na Argélia. Fizemos imediatamente contactos, mesmo
algumas linhas clandestinas de contacto, para começarmos a trabalhar de
uma forma mais aberta, mas não totalmente, porque não estávamos
totalmente garantidos de que não haveria um contragolpe logo a seguir.
Portanto, tínhamos que tomar algumas precauções. Mas o facto é que
conseguimos, e não só os moçambicanos residentes em Portugal actuaram
para fazer pressão, mas os próprios portugueses. Havia um grupo grande
de exilados na Argélia, que quando regressaram a Portugal, também
levaram estas mensagens de que era preciso encontrar solução colonial. O
que dizíamos, e derivava do Comité Central da época, que analisou o
golpe em Portugal, é que o fascismo em Portugal estava derrotado, mas o
colonialismo permanecia, então, tinha que se encontrar uma solução para
isso.
Por
isso, a Frelimo assumia que a queda do fascismo em Portugal não era
motivo suficiente para desarmar, relaxar, mas sim para continuar a
operar e com muito mais agressividade rumo à independência...
Exactamente.
e realmente foi isso que aconteceu, porque, com esta posição da Frelimo
houve reacções em Portugal, da direita, que também concordava em acabar
com o fascismo e até de alguns partidos de esquerda, que não estavam a
ver a independência de Moçambique num curto prazo. De uma maneira geral,
todos diziam que era preciso um tempo relativamente longo de transição,
passar do sistema de uma colónia para uma independência, mas que se
tinha que criar condições, informar as pessoas, enfim, um processo que
era contrário à posição da Frelimo, que disse “não, independência agora,
não daqui a um ano, dois, três ou quatro”.
Fez
parte da delegação moçambicana que se encontrou formalmente com o
representante do governo português, em Junho de 1974. Como é que
descreve essas renhidas negociações com o governo português?
Bom,
o primeiro encontro, em Junho, foi em Lusaka. O presidente Kenneth
Kaunda é que proporcionou a logística para nos encontrarmos. Foi um
encontro mais de primeiro contacto. Mas a posição da delegação
portuguesa, que trazia a posição política, não era aceitável,
exactamente por essas razões. O Presidente Samora, que conduzia a
delegação moçambicana, disse que queríamos a independência agora. eles
disseram “mas é bom vocês prepararem-se” e dissemos “nós estamos
preparados”, e questionámos “e em Portugal, quem é que estava preparado,
depois do golpe, para assumir? Também precisariam de um estágio nalgum
lugar”, e até chegámos a questionar “então, onde é que se faz esse
estágio? queremos ir fazer um curso rápido de três semanas ou quatro”.
Realmente, não resultou, mas foi um primeiro contacto muito útil, que
originou vários contactos separados em vários países, que preparou o
segundo encontro de Lusaka, que foi decisivo.
A
opção pelo marxismo-leninismo, após o III Congresso, e o facto de o
país se ter colocado contra o Ocidente penalizaram o nosso país,
particularmente por não ter aderido às instituições de Bretton Woods, o
que levou à hostilização do ocidente. Teria resultado voltar as costas
aos países que durante a luta de libertação nacional tinham apoiado
Moçambique?
Não,
não fazia nenhum sentido voltar as costas à opção marxista-leninista.
foi uma opção lógica e boa, porque era a opção que a direcção da Frelimo
achava que ia resolver os problemas do povo moçambicano. Naquela
altura, falávamos da fome, da nudez, do analfabetismo, então, uma
aliança forte com os países socialistas, os países do bloco da União
Soviética, parecia - na altura estávamos convencidos - a solução para o
povo moçambicano...
Mas era uma solução analgésica, no sentido de que, em termos de efeito, era de curto prazo...
Não.
devia ser uma solução de longo prazo, mas o que é que acontece? É que,
na altura, essa decisão levou a um aumento substancial da reacção dos
países ocidentais para pararem essa linha, quer dizer, não nos
esqueçamos que as opções políticas que se fazem criam amigos e inimigos.
E, nesse caso, Moçambique estava a tornar-se inimigo de uma grande potência...
Estava
a ficar claro para os ocidentais, Estados Unidos de América, em
particular, que é o líder do ocidente, que Moçambique podia tornar-se
mais uma peça da geoestratégia da União Soviética, que era líder do
Leste, dos países socialistas, e, portanto, era preciso aumentar de uma
maneira substancial as acções que levassem à destruição da própria
Frelimo e da sua política popular de desenvolvimento do povo. Portanto,
esta é que é a razão principal (...). Da mesma maneira que a adopção de
uma política no III Congresso, de aliança com países do leste, que era
para resolver os problemas do povo, teve a hostilidade dos ocidentais,
que agiram com todos os meios, inclusive desenvolvendo uma guerrilha
interna para destruir, desestabilizar e impedir que houvesse
desenvolvimento em Moçambique. Tudo seria muito bem se não existissem
esses serviços secretos hostis, mas, infelizmente, a realidade é essa,
ainda existem hoje e manifestam-se de outra forma...
Chegou
a haver uma discussão racional para a adopção do modelo de governação,
tendo em conta que já existiam antecedentes - como bem disse que em 68
eclodiu uma revolta no seio da Frelimo por causa da linha que se poderia
tomar para a independência?
Na
altura, fizemos uma análise, mas não era possível prever a violência
que o inimigo desta política pudesse usar em Moçambique. Pensámos que
haveria alguma posição, alguma hostilidade, mas não na dimensão que veio
a existir.
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