segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Carta aberta aos cidadãos moçambicanos

Caros compatriotas
Na manhã de domingo foi anunciada uma greve geral dos médicos moçambicanos.
Esta posição é o culminar de anos de tentativa pacífica de solucionar a deplorável
situação dos médicos na função pública e acho que têm o direito de saber como
chegamos a esta situação extrema.
Quando um indivíduo iniciava a sua carreira como médico em 1975, tinha como
salário líquido ± 15.000 mt que na altura equivaliam a ± 454 U$D, e dava para viver
confortávelmente, a título de exemplo, com 9 salários dava para comprar um Honda
Civic novo; hoje, 37 anos depois e nas vésperas da reforma, como especialista
consultor no topo de carreira e personalidade reconhecida internacionalmente na área,
recebe um salário base de 29.629 mt que adicionado aos subsídios dá um total líquido
± 42.000 mt, ou seja ±1400 U$D.
Um médico em pós-graduação com 7 anos de carreira tenho um salário base de
15.531mt (535 U$D) e líquido de ± 24000 mt (827 U$D), que não chega ao dia 5
do mês seguinte, tenho quase a certeza que auferiria mais lavando carros ou como
empregado em algumas casas. E hoje para comprar um Honda Civic novo custa no
mínimo 60 salários.
Um enfermeiro geral recebe um salário base de ± 5100 mt e um líquido de ± 7800 mt
(268 U$D); um servente de hospital recebe um salário líquido de ±2700 mt (93 U$D).
Podem verificar isto no endereço:
http://www.meusalario.org/mocambique/main/salario/
sector-publico-mocambique/salario-do-sector-da-saude
- e existem documentos
oficiais que mostram o mesmo.
Na história desta Pátria amada, os médicos foram, desde sempre (incluindo o período
da guerra civil e até recentemente), os únicos profissionais de nível superior a serem
colocados nos distritos, diga-se de passagem sobretudo com fins políticos, pois somos
frequentemente solicitados (em particular fora de Maputo) a participar em tarefas
político-partidárias em detrimento do exercício da nossa profissão. Temos aceitado de
bom grado, porque estamos conscientes de que nos formamos à custa do Povo e para
o servir. No entanto não fizemos nenhum voto de pobreza e estamos muito ressentidos
com o modo como o Governo nos tem tratado.
A políticas do Governo foi de sempre colocar médicos nos distritos e nunca foi
rejeitada, mas sentimo-nos injustiçados quando quase sempre somos alojados (por
vezes literalmente em lojas convertidas em casas) em habitações precárias, muitas
vezes sem água e/ou electricidade, e a trabalhar sem horário e com poucos meios
para satisfazer as necessidades dos doentes, e vemos um jovem como nós mas que
escolheu a magistratura ser colocado só onde há água e electricidade, receber cerca
de duas vezes mais, ter direito a casa e outras regalias que não imaginam e trabalhar
em regime horário normal durante 9 meses por ano. Não invejamos a sua situação
mas temos dificuldade em compreender e aceitar por achar que não merecemos, esta
discriminação negativa por parte do Governo.
Sentimo-nos revoltados e impotentes por ver alguns dos nossos enfermeiros e
serventes fazerem cobranças ilícitas para que um paciente possa passar a fila e
ser atendido nos serviços de urgência em detrimento de doentes que chegaram
primeiro e por vezes em estado mais grave, e que por cansaço cometerem omissões
e erros na prescrição de medicamentos. Mas que moral temos nós como chefes
das equipas de saúde de repreender os elementos da nossa equipa que têm uma
família para sustentar e filhos para educar, que recebem um salário inferior ao de
muitos empregados domésticos e infringem as normas do trabalho ao fazer turnos nos
hospitais e nas clínicas e não conseguem nem física ou psíquicamente dar aos doentes
o tratamento que não só necessitam como merecem?.
Sendo a prática da medicina por lidarmos com a vida dos nossos compatriotas, uma
profissão de elevada responsabilidade, e que exige o sacrifício do convívio da nossa
família, sentimo-nos injustiçados por não podermos dar às nossas esposas e filhos o
que os nossos colegas dos bancos das Universidades conseguem propiciar às suas
famílias. Com os salários que o Governo nos paga como podemos viver nos mesmos
bairros e os nossos filhos frequentarem as mesmas creches e escolas. Não sabemos
o que responder quando os nossos filhos nos perguntam porque é que escolhemos ser
médicos em vez de outras profissões ou mesmo comerciantes. Talvez a resposta seja
que na escala de valores da nossa sociedade existem actividades mais importantes e
por isso mais remuneradas que as de salvar vidas.
Quando alguns de nós, exercemos actividade privada para nos tentarmos equiparar
aos nossos pares na sociedade, somos criticados por supostamente descurarmos os
cuidados aos pacientes do Serviço Nacional de Saúde em detrimento dos pacientes
privados e no entanto o próprio Vice–Ministro da Finanças afirma "nós não temos
como pagar, mas voces até têm onde ir buscar mais dinheiro".
Gostaríamos que ficassem claros de que a grande maioria dos médicos exerce
medicina privada não como opção mas por necessidade e tal só acontece em algumas
capitais provincias, pois caso contrário abandonariam o Estado para se dedicarem
exclusivamente à privada. Gostaria sobretudo que soubessem que dos cerca de
1200 médicos formados pela UEM, um em cada 4, alguns dos quais especialistas
conceituados, na procura de melhores condições de vida, abandonou o SNS para ir
trabalhar em ONG’s, trocaram a clínica pela saúde pública. Quem de vós se sente
à vontade para criticá-los quando trocaram um salário de 24.000 mt por salários
geralmente superiores a 60.000 mt e que podem ultrapassar os 200.000 mt ?.
Sentimo-nos insultados, humilhados e revoltados quando o Governo diz que não
ter dinheiro não só para nos pagar melhor, mas sobretudo para melhorar as nossas
condições de trabalho que poderiam contribuir para salvar mais vidas, mas tem
dinheiro dos impostos de todos nós, para pagar aos nossos colegas sul-africanos
e outros, não só os tratamento como ainda os check ups de rotina, dos quadros
superiores dos três poderes. Só podemos concluir que nos maltratam e nos desprezam
porque não precisam de nós. É assim que o Senhor Presidente acha que vamos
cultivar a auto-estima?
O Governo diz não ter o dinheiro que precisa para a Saúde. Não cumpre a
percentagem orçamental proposta pela OMS. Concordamos, mas gostaríamos de
saber como é que após 37 anos de Independência ainda não descobriram que os
seguros de saúde podem ser uma fonte de financiamento alternativo, para não falar
dos microimpostos aos megaprojectos. Viajam por tudo o que é sítio neste mundo e o
que é que aprenderam? O nosso estado de exasperação é por que nos parecer que
os problemas do Povo e os nossos e ao invés do que propalam, são a menor das suas
preocupações.
Como funcionários públicos do Estado sabemos que na função pública muitos têm
salários maus e estamos solidários com todos os profissionais. No entanto, está
documentado que em certos sectores as coisas funcionam de maneira bem diferente,
por exemplo, um servente do Banco Moçambique recebe entre 20000 a 30000mt, um
motorista no mesmo banco recebe entre 20000 a 50000 mt, um ajudante de escrivão
judiciário tem um salário base de 17584 mt, um secretário judicial tem um salário base
de 31970 mt, um juiz em topo de carreira tem um salário base de 37366 mt, um
comissário geral tributário/aduaneiro tem 47453 mt, muitos deles têm emolumentos de
100% e regalias como casa e viatura de serviço, combustível, despesas caseiras e
outras , mas a bom da verdade têm um compromisso de exclusividade. E os
deputados?
À excepção dos deputados, não quero dizer que está errado pagar-lhes mais, gostaria
era de saber porque razão o médico que dedica todo o seu tempo e mais algum ao
trabalho tem um reconhecimento em termos salariais menor que um auxiliar de
escrivão e não é equiparado a outros licenciados que auferem bem mais.
Há na função pública pesos e medidas claramente diferentes.
Ao longo da nossa história no pós independência, em nenhum momento foi feita a
revisão dos salários dos médicos como aconteceu para outras classes, inúmeros
dirigentes prometeram mundos e fundos, mas nunca cumpriram, e eles têm a sua
assistência médica garantida no sector privado ou fora do país à custa dos nossos
impostos.
Em 2011 o actual Ministro da Saúde prometeu aos médicos em especialização um
subsídio que os pudesse ajudar a enfrentar as dificuldades que enfrentam pois é difícil
ter que se dedicar o tempo todo à aprendizagem e pagar as contas apenas com o
magro salário e até ao momento nada foi feito.
Em Novembro de 2011 foram apresentadas as preocupações do sector saúde ao
Presidente Guebuza, e as reivindicações actuais foram referidas, e foi prometido que
se iria resolver o assunto e até ao momento nada foi feito.
A actual direcção da Associação Médica de Moçambique (AMM) foi eleita e tomou
posse em Maio de 2012 e nesta cerimónia o actual Ministro da Saúde manifestou a sua
satisfação e apelou à e comprometeu-se na colaboração entre as duas instituições.
Mas desde o início das actividades só foram encontradas dificuldades, até em aspectos
que iriam benificiar o médico, por exemplo, bloquearam e impediram a execução de
um acordo que permitiria a criação de uma página web que se pretendia que fosse
também uma fonte de informação científica para os associados.
Estão documentadas as inúmeras solicitações de esclarecimento sobre a situação do
estatuto e revisão salarial que sabíamos estar em curso e nunca houve resposta.
Perante este silêncio é convocada em Novembro de 2012 uma assembleia geral que
deliberou a prossecução de tentativas esclarecimento da situação por cartas enviadas
ao MISAU, GABINETE DO PRIMEIRO MINISTRO, PRESIDÊNCIA DA ASSEMBLEIA
DA REPÚBLICA todos estes com conhecimento do Secretário Geral do Partido
FRELIMO e a resposta foi o silêncio.
A AMM parte então para o pré aviso de greve que disperta a atenção do Governo e de
imediato se realiza um encontro entre Primeiro Ministro e o MISAU, AMM e Ordem dos
Médicos e deste saiu uma deliberação para se encontrar uma solução.
Na sequência o MISAU e AMM iniciam negociações para rever o estatuto e o salário
em comissões específicas da qual participam apenas médicos funcionários públicos.
Foi então que o MISAU apresenta uma proposta salarial inicial em que haveria uma
subida do salário base do recém formado para 20.000mt para o recém formado e
38.000mt para o especialista consultor, feitas as contas a subida real do salário líquido
seria dos ±24000 mt actuais para ±28000mt para o recém formado e dos ±42000 mt
para ±48000mt. Esta nunca fora discutida com os representantes da classe e já tinha
cabimentação orçamental em Junho de 2012, em documento assinado pelo Ministro
das Finanças:
Esta proposta é apresentada em reunião geral de médicos hoje histórica pela afluência.
Nunca em momento algum da história da AMM uma reunião juntou tantos médicos, e o
anfiteatro da Faculdade de Medicina foi pequeno para perto de 400 que ocuparam o
espaço todo da sala e de fora ficaram vários, além dos que pela internet
acompanharam este encontro, estima-se que certa de 1/4 dos médicos moçambicanos
na função pública tenham estado no presentes. Esta assembleia chumbou a proposta
do governo pois ficou claro ela não dignificava o médico e seguindo o princípio de se
lutar por um salário base digno suplementado por subsídios que podem ser retirados a
qualquer momento e delegou-se a direcção da AMM para avançar para a negociação
com uma proposta de um mínimo de 40000mt de salário de base tendo em vista o que
se paga a outras classes de profissionais na função pública, pois o médico não é mais
nem menos válido que os outro profissionais que auferem esses salários.
Nas negociações foram acordados a composição das comissões e prazos (com
documento assinado pelas partes) para o término das negociações com soluções
aprovadas, 5 de Janeiro para a comissão de revisão salarial e 31 de janeiro para a
comissão de revisão do estatuto.
A comissão de revisão do estatuto fez o seu trabalho sem grandes precalços.
Contrariamente ao acordado, deveriam integrar a comissão de revisão salarial
membros do Ministério das Finanças e da Função Pública mas nunca foi explicada a
sua ausência, esta negociação foi conduzida a passos de camaleão com ausência
injustificada pelo MISAU a 24 de Dezembro, não sendo permitida a participação da
AMM nos encontros nas finanças, para só no dia 3 de Janeiro apresentarem à AMM
uma proposta salarial no mínimo indecente pois era menor que a inicialmente
chumbada, com um salário base inicial de 18000mt que foi obviamente chumbada e
ficou o MISAU de apresentar uma nova proposta no dia seguinte.
A alegação apresentada foi que o orçamento do Estado já tinha sido aprovado, que
não havia muito espaço para manobra pois não havia mais dinheiro, além de que uma
revisão no salário base do médico implicaria uma revisão de toda a estrutura salarial
dos funcionários. ESTAMOS A FALAR DE 1274 MÉDICOS. Ora não há dinheiro para
rever os salários mas há dinheiro para viaturas de luxo, helicópteros, passagens em
primeira classe, pontes para lado nenhum, durante as conversas na mesa de
negociação houve quem lamentasse que por causa da falta de dinheiro não tinha sido
possível aos directores adquirirem viaturas novas em 2012, e pergunto o que foi feito
às anteriores? E às anteriores a essas? Passaram-nas aos familiares? Alega-se que
não há dinheiro mas o Governo gasta com cada médico cubano que está no país
$6000 por mês. Alega-se que não há dinheiro mas foi publicado no Jornal Notícias
recentemente que a Assembleia da República vai rever em Março o seu Estatuto e
Regimento, será que verificaram que estão com despesas muito altas (880 milhões de
meticais por ano) e vão reduzí-las?
A reunião de dia 4 de Janeiro não aconteceu e a AMM viu-se obrigada a anunciar
as directrizes para a greve, e é quando médicos séniores conselheiros da AMM são
chamados a um encontro com o MISAU e altos dirigentes do Ministério das Finanças
que expôem a situação actual de insatisfação da classe e descrédito em que cairam
pelas falhas sucessivas ao longo dos anos e recente e ao apresentarem aquela
contraproposta salarial. Neste encontro foram dadas instruções para se encontrar uma
nova proposta.
Sabe-se que ela existe mas não foi apresentada no prazo acordado, e
provávelmente,
se fosse uma proposta aceitável - um meio termo com garantias de se continuar a
melhorar até se atingir o desejado,
a AMM - aberta à negociação como claramente
mostrou estar,
cancelaria esta paralisação.
O Governo volta a pautar-se pelo silêncio, o mesmo silêncio que levou à Assembleia
geral de Novembro e o mesmo silêncio que levou ao pré aviso de greve.
Mas este silêncio foi apenas na mesa de negociações e pois o Ministro da Saúde
vem a público atacar alguns membros da AMM, refere-se a valores propostos não
verdadeiros e a valores também não verdadeiros que paga aos poucos especialistas
nas províncias mas não diz que não paga isso aos de Maputo, coloca-se contra os
médicos e tenta colocar a opinião pública contra os médicos. Há exemplos recentes
do caminho a que tal comportamento levou, ou não? E sobre o tal subsídio extra que
é pago aos médicos especialistas, que a anterior Direcção do MISAU havia retirado,
os tais $500 para renda de casa são na verdade 13000mt e as rendas de casa são de
20000mt em muitas capitais provinciais, além do factode tais subsídios de “topping up”
não contarem para a reforma.
Depois sai a público um comunicado de imprensa ameaçando os médicos e é
publicitado que a greve dos médicos é ilegal. Vários juristas consultados são de
opinião contrária pois o facto de a greve não estar regulamentada no Estatuto Geral
do Funcionário e Agentes do Estado não a torna ilegal pois existe outros instrumentos
legais que a tornam legal, nomeadamente a Constituição da República, a Lei do
Trabalho e o Estatuto da Ordem dos Médicos e seu Código Deontológico.
Meus compatriotas a greve é legal, vai ser realizada sim e durante a sua duração vão
ser garantidos os serviços médicos mínimos. Gostaria de convidar os compatriotas que
alegam a ilegalidade deste movimento para publicarem os seus salários, regalias e os
subídios não publicados em Boletim da República.
A todos peço que compreendam a nossa situação e que queremos apenas ser tratados
como outros profissionais da função pública.
Para finalizar quero lembrar que Moçambique é hoje um país independente porque
um grupo de jovens apercebeu-se de uma série de injustiças e juntou-se e formou a
FRENTE DE LIBERTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE.
Um médico jovem e atento.

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