segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A CONSTITUIÇÃO E AS IMUNIDADES DO DEPUTADO-LADRÃO



Pelo menos um “milagre” podemos desde já atribuir ao magistério de João Lourenço: ter transformado os piores torcionários e violadores das liberdades fundamentais angolanos em arautos permanentes dos direitos humanos.
Nunca, em tão pouco tempo, tantos mudaram o seu discurso, deixando de proclamar o respeito pelas ordens superiores do presidente José Eduardo dos Santos, passando a anunciar a necessidade imperativa de respeito dos direitos fundamentais do cidadão. Bendigamos João Lourenço por este autêntico “milagre”!
Tal transformação retórica tem sido especialmente candente nos casos que envolvem deputados da Assembleia Nacional. Esbracejou-se acerca da detenção, em pleno avião, de Manuel Rabelais, acenam-se novos fantasmas acerca da possível detenção de Higino Carneiro e de outros deputados. Em relação a estes altos representantes do povo soberano, alega-se sempre que nada lhes pode ser feito sem autorização da Assembleia Nacional, uma vez que estão protegidos pela imunidade parlamentar.

O que é a imunidade parlamentar?

É tempo de tentar definir o sentido e alcance da imunidade parlamentar nos termos previstos na Constituição da República de Angola (CRA), que naturalmente orientarão qualquer interpretação da lei ordinária.
As imunidades atribuídas aos deputados estão previstas no artigo 150.º da CRA, que estabelece o seguinte:
  • “1. Os Deputados não respondem civil, criminal nem disciplinarmente pelos votos ou opiniões que emitam em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional, no exercício das suas funções.
  • 2. Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional ou, fora do período normal de funcionamento desta, pela Comissão Permanente, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos.
  • 3. Após instauração de processo criminal contra um Deputado e uma vez acusado por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo.”
A imunidade parlamentar é uma garantia dada por todo o mundo aos parlamentares. A sua finalidade é salvaguardar o funcionamento adequado do Parlamento, permitindo-lhe desempenhar as suas tarefas sem interferências externas indevidas, especialmente do poder executivo e do poder judicial. Quer isto dizer que a imunidade parlamentar é uma garantia funcional, isto é, foi historicamente estabelecida para proteger a liberdade do Parlamento enquanto corpo representativo da nação, permitindo-lhe discutir e deliberar sem medo do rei ou de outros poderes. O que está em causa na imunidade parlamentar não são os negócios privados dos deputados, nem a protecção de interesses pessoais, mas sim a garantia de que os deputados, dentro do Parlamento, são livres de criticar o governo, de decidir sem medo de represálias.
Obviamente, muitas vezes podem ser criadas situações de aparente responsabilidade criminal pessoal de um deputado para o constranger politicamente. Por isso, as garantias de imunidade são dadas de forma genérica. Contudo, essa generalização deve ser sempre interpretada teleologicamente, tendo em conta a sua finalidade; e a finalidade da imunidade, repete-se, é assegurar a liberdade do debate político e democrático, não é servir de santuário a possíveis criminosos.
Consequentemente, os textos constitucionais sobre as imunidades parlamentares são elaborados tendo em conta este equilíbrio, entre proporcionar liberdade política, mas não proteger potenciais criminosos. Não são textos que conferem garantias absolutas, outrossim, promovem um balanço entre os vários interesses.

O artigo 150.º da CRA

Nesse sentido, foi redigido o artigo 150.º da CRA. Este artigo é composto por três números, em que são definidos os pressupostos e a operação da imunidade parlamentar.
No número 1.º do artigo 150.º, temos a cláusula típica da imunidade parlamentar, que isenta os deputados de qualquer responsabilidade pelos votos ou as opiniões que emitam no exercício das suas funções em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional. Quer isto dizer que, quando enquadrado pelo seu trabalho na Assembleia, o deputado não pode ser processado por votar de determinada maneira, criticar o governo, ou discordar de alguma decisão judicial, tenha tal sido feito no plenário ou em qualquer comissão. Se um deputado do MPLA quiser votar contra uma proposta feita pelo MPLA, pode fazê-lo sem temer um processo criminal, cível ou disciplinar. Há aqui uma garantia genérica de liberdade do deputado no exercício das suas funções políticas.

As imunidades do deputado-ladrão

A questão torna-se mais importante quando o deputado actua fora das suas funções políticas na Assembleia Nacional. São estes os casos que estão na ordem do dia. Quais as imunidades que um deputado tem quando, em qualquer circunstância, se apoderou de dinheiro que não era seu? Para simplificar: quais as imunidades do deputado-ladrão?
Nestes casos, obviamente, não se aplica o n.º 1.º do artigo 150.º, que isenta o deputado de qualquer responsabilidade. Logo, a primeira conclusão é que o deputado-ladrão pode ser responsabilizado civil e criminalmente. Essa responsabilização criminal (deixemos de fora, por facilidade de raciocínio, a responsabilidade civil) é feita exactamente nos mesmos termos que em relação a qualquer cidadão, salvo o previsto nos n.º 2 e 3 do mesmo artigo 150.º. Apenas estas restrições se aplicam.
O n.º 2 permite a detenção ou prisão de deputados sem autorização da Assembleia Nacional, desde que em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos. Nos restantes casos, menos gravosos, é necessária a autorização da Assembleia Nacional para proceder a essa detenção ou prisão. Já referimos no Maka Angola as variadas diferenças entre detenção, prisão preventiva e prisão, pelo que não as vamos repetir aqui.
O importante a sublinhar é que há circunstâncias em que o deputado pode ser preso sem autorização da Assembleia, e outras em que é necessária essa autorização. A palavra-chave é flagrante delito. Se estiver em flagrante delito a praticar um crime de alguma gravidade, o deputado pode ser imediatamente detido ou preso. Flagrante delito quer dizer que a pessoa é apanhada enquanto está a cometer o crime. Parece simples, mas não é. Geralmente, são considerados três tipos de flagrante delito: flagrante delito em sentido estrito (está a cometer o crime); quase flagrante delito (acabou de cometer); e presunção legal de flagrante delito (o agente é perseguido ou, mesmo não sendo perseguido, é encontrado – já não no local do crime – mas algum tempo depois, acompanhado de objectos ou indícios do crime).
Por sua vez, quanto à prática criminal, existem crimes de execução instantânea e crimes de execução duradoura ou permanente. Nestes últimos, a prática criminal prolonga-se no tempo. Por exemplo, alguém que tenha desviado dinheiro e estabeleça um circuito em constante movimento para branquear o montante de que se apropriou. O desvio de dinheiro é um crime instantâneo, mas o branqueamento contínuo é um crime permanente, portanto, o uso desse dinheiro pode ser considerado um flagrante delito de crime de branqueamento de capital.
Quer isto dizer que, nos crimes de cariz económico-financeiro, sobretudo na parte referente ao branqueamento, poderemos conceber inúmeras situações em que o flagrante delito é duradouro, e por isso a prisão ou detenção sem autorização da Assembleia Nacional pode justificar-se.
Finalmente, temos o n.º 3 do artigo 150.º, que dá ampla margem aos investigadores criminais. Na realidade, salvo a restrição expressa anteriormente no n.º 2 quanto à detenção e prisão, que já vimos ser bastante elástica em casos graves do foro económico-financeiro, este n.º 3 do artigo 150.º da CRA permite a instauração livre de qualquer procedimento criminal contra um deputado. Aliás, esse procedimento pode avançar sem consulta à Assembleia Nacional, até à acusação com despacho de pronúncia ou equivalente. Só nessa altura, repete-se a citação, “o Plenário da Assembleia Nacional deve deliberar sobre a suspensão do Deputado e retirada de imunidades, para efeitos de prosseguimento do processo”.

Conclusão

Em conclusão, a imunidade parlamentar só é absoluta em relação a votos e opiniões expressas dentro do trabalho da Assembleia Nacional.
Por crimes praticados fora deste âmbito, as autoridades têm plena liberdade de instaurar processos e investigar até ao despacho de pronúncia acusatório. Só aí intervirá a Assembleia Nacional, para autorizar a continuação do processo.
A prisão e detenção de deputados é permitida sem autorização da Assembleia Nacional em casos graves de flagrante delito. O conceito de flagrante delito inclui os crimes de execução duradoura ou permanente, pelo que, nestas situações, haverá lugar à possibilidade de detenção ou prisão sem autorização da Assembleia Nacional. A utilização permanente de dinheiro desviado dos cofres públicos para efectuar transacções variadas, inserindo, de forma habitual e sistemática, montantes obtidos ilicitamente na economia formal, pode ser encarada como a prática de um crime de branqueamento duradouro e justificar a detenção ou prisão preventiva sem autorização da Assembleia Nacional, e mesmo a acusação, o julgamento e a prisão definitiva sem essa intervenção.

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