As longas horas que viraram a Venezuela do avesso /premium
A auto-proclamação de Juan Guaidó inaugurou uma tarde quente nos corredores da diplomacia mundial — e nas ruas venezuelanas, onde morreram 14 pessoas. Mas Maduro, à varanda, manteve-se irredutível.
16h30, hora de Lisboa (12h30 em Caracas)
“Juro assumir as competências do Executivo nacional como Presidente nacional da Venezuela, para pôr fim à usurpação e levar a uma transição até termos eleições livres”. Foram menos de 30 palavras, ditas em poucos segundos na Praça João Paulo II de Caracas, mas serviram para pôr em rebuliço um país e o mundo.
Juan Guaidó, deputado eleito e presidente da Assembleia Nacional — não reconhecida pelo Governo de Nicolás Maduro —, subiu a um púlpito transparente, onde era visível apenas o escudo da Venezuela. Perante uma multidão de milhares de pessoas, que participavam na manifestação de apoio à oposição deste dia 23 de janeiro (data em que se assinala o golpe de Estado de 1958 que depôs o ditador Marcos Pérez Jiménez), o político oposicionista de 35 anos falou assim perante aqueles venezuelanos.
À sua volta, viam-se bandeiras venezuelanas e muitos, muitos telemóveis a filmar o discurso. Quem não percebeu o quão significativo era aquele momento, não tardou a lá chegar.
17h10
Passou menos de meia-hora desde que Guaidó se auto-proclamou Presidente interino do país. Os rumores já circulavam, com fontes a dá-los como certos à Reuters e à CNN, e rapidamente foram confirmados de forma oficial: o Presidente norte-americano, Donald Trump, reconhecia oficialmente Guaidó como Presidente interino da Venezuela.
“O povo da Venezuela falou contra o regime de Maduro de forma corajosa e exigiu liberdade e Estado de Direito”, justificava-se assim a decisão no comunicado da administração Trump. Mas o Presidente norte-americano, num forte gesto de respaldo à oposição da Venezuela, instou outros a segui-lo: “Encorajamos os outros governos do hemisfério ocidental a reconhecer o presidente da Assembleia Nacional Guaidó como Presidente interino da Venezuela”.
Estava dado o pontapé de saída para uma catadupa de posições diplomáticas para todos os gostos: primeiro, os latino-americanos a favor de Guaidó, rápidos a disparar; depois, os defensores de Maduro, após o Presidente falar; e, por fim, os cautelosos, mais longe, na Europa. Mas já lá iremos.
18h00
Em Davos, monta-se uma conferência de imprensa improvisada. O Presidente da Colômbia, Iván Duque, o homólogo brasileiro, Jair Bolsonaro, a ministra dos Negócios Estrangeiros do Canadá, Chrystia Freeland, e a vice-presidente do Peru, Mercedes Araoz, juntam-se para uma declarações de apoio a Guaidó.
A Colômbia, diz Duque, “acompanha este processo de transição da democracia para que o povo venezuelano se liberte da ditadura”. Já Bolsonaro coloca no Twitter uma mensagem onde diz reconhecer Guaidó “como Presidente Encarregado da Venezuela”. A América Latina começa a posicionar-se.
18h30
Movimentações no campo de Maduro: Diosdado Cabello, vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) do Presidente, convoca uma vigília em frente ao Palácio presidencial de Miraflores. “Dou instruções ao PSUV para que nos organizemos e estejamos aqui, em frente ao Palácio”, declarou.
18h35
Mais países do Grupo de Lima começam a posicionar-se. Marito Abdo, Presidente do Paraguai, declara apoio à oposição venezuelana e deixa uma promessa: “Contem connosco para abraçar de novo a liberdade e a democracia.”
Já Sebastián Piñera, chefe de Estado do Chile, deixa um recado ao Presidente: “Maduro é parte do problema e não da solução e a única saída pacífica da crise da Venezuela são eleições livres”, sentencia.
A exceção latino-americana é o México: “Por agora” não há razões para reconhecer Guaidó e não Maduro como Presidente, explica um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros. O foco do México de Lopez Obrador é o de pedir diálogo entre as duas partes para que se encontre “uma saída democrática”. Um ponto para Maduro, que ainda não tinha recolhido apoios em praça pública.
19h00
Enquanto, nos gabinetes diplomáticos, os telefones não param de tocar, em Caracas sentem-se na pele os efeitos do anúncio de Guaidó. Milhares continuam nas ruas e os confrontos com a polícia tornam-se cada vez mais violentos, com recurso a gás lacrimogéneo.
A esta hora, o jornal venezuelano El Nacional dá a notícia de que quatro jovens terão morrido nos confrontos com a polícia em Barinas, alegadamente mortos a tiro. Somam-se ao outros cinco que também morreram, um durante a manhã e quatro durante a noite, em circunstâncias pouco claras.
19h30
Mais apoios para Guaidó, mas ainda do mesmo lado do Atlântico: Maurício Macri, Presidente argentino, reconhece o político da oposição como Presidente interino. Pouco depois, será a vez de Lenín Moreno, chefe de Estado do Equador que pede “eleições limpas e transparentes” na Venezuela.
19h50
Da Casa Branca, sopram novos ventos que ameaçam vendaval. Donald Trump aproveitou para responder a algumas perguntas dos jornalistas sobre a situação na Venezuela, sublinhando que os EUA consideram o Governo de Nicolás Maduro “ilegítimo”. Questionado sobre se considerava enviar militares norte-americanos para a Venezuela, Trump optou por aplicar pressão em Maduro: “Não estamos a considerar nada, mas todas as opções estão em cima da mesa.”
20h00
O Presidente eleito em maio de 2018 — numas eleições cujo resultado não foi reconhecido pela oposição nem pela ONU, pelo Grupo de Lima e pela UE — reagiu apenas a esta hora. Perante a multidão que se concentrou à porta do Palácio Miraflores, na vigília marcada por Cabello, Maduro fez um discurso onde acusou os Estados Unidos de levarem a cabo uma tentativa de golpe de Estado e anunciou o corte de relações diplomáticas entre os dois países. Aos EUA, deixou um pedido: “Saiam desta terra”. E à oposição, um aviso: “Os gringos não têm amigos, têm interesses”.
20h20
Ainda Maduro não tinha terminado o seu discurso — que se prolongaria por mais meia hora — já surgia um apoio declarado à sua legitimidade: Evo Moráles, Presidente da Bolívia, saía em defesa do companheiro contra “as garras do imperialismo [que] procuram ferir de morte a democracia”. E acrescentava, em nome dos países da América Latina: “Nunca mais vamos ser o quintal dos EUA.”
20h50
Maduro está quase a proferir as últimas palavras do seu discurso quando Guaidó emite um comunicado, dirigido às várias missões diplomáticas internacionais na Venezuela. Nele, o Presidente auto-proclamado diz desejar “que mantenham a sua presença no país” e reforça que a ordem dada por Maduro (para a expulsão dos diplomatas norte-americanos) “emana de pessoas ou entidades que, pelo seu carácter usurpatório, não têm autoridade legítima para se pronunciar a esse respeito”.
20h52
Quase ao mesmo tempo, a Guatemala reage oficialmente, reconhecendo a legitimidade de Guaidó.
E também Portugal pronuncia-se, no Twitter do Ministério dos Negócios Estrangeiros: “Acompanhamos minuto a minuto a evolução da situação na Venezuela. A nossa preocupação principal é a segurança da comunidade portuguesa. Estamos também em contacto permanente com os nossos parceiros mais próximos, designadamente na União Europeia.”
Antes disso, em Madrid, o ministro Augusto Santos Silva tinha alinhado pela bitola do homólogo espanhol, Josep Borrell, e mantido a cautela ao pedir uma “unidade de ação na Europa”. “Para nós, não chega que os Estados Unidos o reconheçam”, disse, referindo-se a Guaidó, citado pelo ABC.
21h20
Seria preciso mais meia hora para “a Europa” começar a pronunciar-se — e a posicionar-se em defesa de Guaidó.
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, decidiu pegar no seu smartphone às 21h20 e deixar uma mensagem com uma postura firme contra Maduro: “Espero que toda a Europa se una em apoio às forças democráticas na Venezuela. Ao contrário de Maduro, a Assembleia Nacional, incluindo Juan Guaidó, tem um mandato democrático dos cidadãos venezuelanos.”
21h25
Mais um ponto para Maduro. Depois de o líder chavista ter apelado ao apoio dos militares, o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, responde-lhe que pode contar com ele: “os soldados da Pátria”, disse, não aceitarão “um Presidente imposto à sombra de interesses obscuros”.
21h50
Bem negros são também os números de mortos registados nos confrontos com a polícia. A esta hora, o El País avança com uma nova contagem: 14 pessoas terão morrido nos confrontos em Barinas, Bolívar, Amazonas, Táchira e Caracas. Quatro na madrugada, um de manhã e 9 durante a tarde.
22h
“É, na essência, um golpe.” É assim que o Kremlin reage, pela voz do político Vladimir Dzhabrailov, ao que se passou até aqui na Venezuela, esta quarta-feira. É o primeiro apoio de peso para Maduro vindo de fora do seu continente — isto se não contarmos com a Turquia que, segundo o Presidente, lhe declarou lealdade, mas não o confirmou oficialmente.
“Penso que os EUA estão a tentar levar a cabo uma operação para organizar a próxima revolução pró-ocidental na Venezuela”, acrescentou ainda Andrei Klimov, vice-presidente do Comité de Negócios Estrangeiros do Parlamento russo.
22h30
E eis que, meia hora depois, Bruxelas reage oficialmente dando a palavra à sua Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros, Federica Mogherini. Primeiro, com um apelo: “Os direitos civis, a liberdade e a segurança de todos os membros da Assembleia Nacional, incluindo do seu presidente, Juan Guaidó, têm de ser totalmente respeitados.”
O reconhecimento oficial do político venezuelano como Presidente interino, contudo, não apareceu. Seis horas depois de Juan Guaidó se ter nomeado Presidente interino do país e ter colocado a Venezuela e o mundo em alvoroço, a Europa evitava colocar-se firmemente no campo no campo da oposição a Maduro, como fizeram Trump, Bolsonaro e Duque, ou, mais timidamente, o Canadá, o Peru, as Honduras e a Guatemala, entre outros. Evitava também, pelo contrário, seguir as pisadas dos que continuam a seguir Maduro como a Bolívia ou a Rússia.
Em vez disso, Mogherini optou por evitar a polarização, fincando firmemente os pés no centro, com o foco noutro ponto: “A UE pede que tenha início um processo político imediato que leve a eleições livres e credíveis, em conformidade com a ordem constitucional”. Resta saber como é possível fazê-lo num país onde dois homens dizem “eu é que sou o Presidente”.
Agora que entramos em 2019...