Racionalidade e Razoabilidade: Em Defesa da Democracia perante Regras “Assassinas”
José P. Castiano
Numa democracia, me parece, quando a racionalidade e a razoabilidade não andam juntas, dá uma tal confusão que pode levar ao perverso: o “assassinato” da democracia própria que, como sabemos, se baseia em regras bem pré-estabelecidas. O problema começa quando os que são supostos serem os guardiãs destas regras parecem não sentir-se obrigados a explicar com racionalidade e razoabilidades as decisões tomadas. As regras tornam-se assassinas da própria democracia, muito por conta da falta de razoabilidade. É o que me parece estar a acontecer e a carcomer a nossa “jovem” democracia moçambicana. E o resultado desta confusão seria, parafraseando uma destas frases que agente recebe dos faces, que começamos a achar “normal” aceitar perder pedaços cada vez maiores da nossa incipiente democracia numa eleição, dado que o normal seria perder uma eleição numa democracia (Regina Reinert segundo o meu “amigo” do face). Pois, parece-me estar a ser cada vez mais verdade que, na nossa democracia moçambicana, não se equacione o que sociólogo alemão Ulrich Beck – talvez pela experiência histórica que a Alemanha fez com a irracionalidade social – procurou diferenciar entre racionalidade científica e racionalidade social. Ou seja, o que eu, para simplificar, titulei racionalidade e razoabilidade, respectivamente.
Ora vejamos. “Todo” este raciocínio começa quando, há sensivelmente quatro meses atrás, estava eu em aulas numa turma de doutoramento em ciências naturais e matemáticas. Tratava-se sobre ética na actividade científica naquelas ciências duras. Coincidiu que, na altura, acabavam de serem publicadas medidas, contestadas por muitos jornalistas, as “novas” taxas, “reajustadas” (o que sempre significa aumentadas) para o registo, creio, (e não vou googlear isto agora) das rádios e televisões privadas ou comunitárias funcionarem. O aumento das taxas, temia a maior parte de jornalistas engajados, viria inibir, até restringir, senão mesmo ferir, o direito dos cidadãos à informação livre e diversificada, em termos de fontes; e isto, dizia-se, afectaria aos pobres e compatriotas vivendo nas zonas rurais, muito particularmente. De algum lado deveria provir o dinheiro para suportar os custos administrativos. A medida do aumento não parecia ser nem razoável (racionalidade social) e nem cientificamente racional. Só que, dizia eu aos estudantes, a sociedade, através dos medeas, e o “povo” , encarregar-se-iam por formular argumentos da não-razoabilidade deste anúncio. Assim ou assim, o público, na sua esfera, sempre julga, baseando-se numa argumentação mais ou menos do senso comum e social! Mas sobre a outra argumentação, baseada na racionalidade, a argumentação científica, dizia eu, era da responsabilidade – peço para não esquecerem que eu não disse “responsabilidades exclusiva” – dos cientistas. Foi pois, por isso, que coloquei os matemáticos o desafio de “olharem” mais de perto os novos preços agravados, para verem se encontravam alguma “razão” matemática, alguma coerência, nas contas, ou uma “percentagem qualquer”, que justificasse racionalmente (repito) o tal aumento. Tornou-se um exercício de sete cabeça saber de onde o raio teriam vindo aqueles aumentos. Melhor, na base de que cálculo se haviam pensado aquele agravamento de taxas. Assim, sem ir perguntar aos donos, parecia que não ser encontrável a ratio e nem a fórmula por trás daqueles aumentos. Infelizmente terminamos as aulas não achando um meio termo. Mas não desperdicei a oportunidade de lhes desafiar com a pergunta: será que a vossa responsabilidade, como matemáticos, termina aqui? (ou seja, de verificar lo que queda no demonstrado – como dizia o meu professor cubano, Juarez de nome, de matemática, no secundário). O cientista, o matemático neste caso, dizia eu, poderia ter duas opções: ou vir ao público e denunciar a irracionalidade – o que Kant preferia chamar de “uso público da razão”, apoiando a Sociedade Civil na sua resistência para defender o direito à informação livre e diversificada, por estes, na sua verdade, se acharem em perigo; ser mais uma voz militante pela defesa deste direito fundamental duma democracia, com argumentos cientificamente esgrimidos. Ou então, ele, o cientista, encontra um espaço, sempre possível em democracia, para “assessorar” o Governo para que não aprove coisas cujas fórmulas sejam difíceis, senão mesmo que impossíveis, de serem explicadas sob o ponto de vista da sua racionalidade, e entendidas sob o ponto de vista da sua razoabilidade.
Aliás, nem “tudo” parou por aí. Recentemente foi a vez de uma governante vir a público anunciando o aumento das taxas a pagar para a obtenção duma carta de condução. Instalou-se de novo a confusão na razoabilidade sobre estes aumentos astronómicos. (De novo não vou googlear para “informar”-vos sobre “novos preços”; ando já um pouco cansado sobre as notícias de “actualizações” dos preços. As últimas que entraram adentro do meu cell, por sms, foram as da televisão e para o uso do cartão nas ATMs!). A única coisa da qual me recordei, foi dos estudantes de matemática que já não estão mais à mão para me socorrer, no sentido de encontrarmos alguma racionalidade ou fórmula por trás destas actualizações ou reajustes. Como é que eu decido, de repente, que vou agravar em 50%, 100% ou ainda 1000%, se é que há alguma “percentagem qualquer” no meio deste amaranhado de reajustes? A “razão” apresentada, e que eu tive acesso público, diga-se, foi a de que havia (de novo) “contas a pagar” pelo Instituto que trata das cartas de condução, e que, estas contas, deveriam recair sobre quem pretende estar na posse de uma carta de condução. E, por algum azar, o debate público e nas redes de navegação web (evito agora dizer “sociais”) concentrou-se no facto de a governante ter, talvez (não) dito, que aos pobres não se deve pensar neles porque, carro mesmo, não podem comprar. De novo uma falta de razoabilidade à qual, mesmo que queiramos encontrar uma racionalidade, ficamos, nós os cientistas, engasgados para encontrar um modelo ou fórmula racional explicativa e razoavelmente compreensível. Como podemos ajudar, segundo este estado de coisas, no crescimento de um Estado democrático baseado em argumentação racional e razoável?
O caso recente dos resultados na autarquia da Matola mostram, deveras, a importância da ligação entre a racionalidade e a razoabilidade numa democracia. Racionalmente podemos perceber o “porquê” a Frelimo pôde ganhar. Os meus estudantes de matemática, desta vez, não teriam grandes problemas de mostrar-me, sendo eu leigo em fórmulas complexas, a Razão por trás desta vitória. Mas e a razão social? Seria assim tão fácil? Para este caso podemos calcular as “percentagens” em jogo, mas os prejuízos para a democracia por falta de razoabilidade não podemos submeter ao mesmo exame. Aliás, esta falta de razoabilidade começou já na antecâmara das eleições quando alguns candidatos a cabeças-de-listas pelos partidos foram retirados das competições, uma vez submetidos à razção das regras vigentes. Foram, desta feita, as regras que “assassinaram” a sua participação, não a razoabilidade no seu todo.
Actualmente, na minha faculdade de ciências sociais e filosofia, na UP, também houve eleições. Foram as melhores eleições ao nível da faculdade que já assisti. Estas eleições tinham todos os ingredientes necessários para que tudo corresse bem. Bons candidatos ao cargo de director. Três. Projectos razoavelmente bons. Espalhados em panfletos, cartazes mais ou menos grandes. Sessões televisadas e radiodifundidas. Não faltaram milhares de posts nos faces, instagrams, whatsapps, etc. Discussões diurnas, nas esquinas, nocturnas, em sessões de análises com alguma cervejada. Faz parte. Grupos de apoiantes da tripla concorrente, de um e do outro lado, a esgrimirem argumentos. Até a famosa “tinta” para evitar que alguém tivesse a ideia de “bisar” a votação e encher as urnas, tínhamos. “Observadores” de cada uma das “listas” (esta expressão também surgiu por aí, embora não concorressem como suas “cabeças”), também havia. Campanhou-se séria e fervorosamente em defesa da democracia interna. John Dewey ficaria satisfeito em ver a “democracia vivida” na nossa faculdade (aliás, devo dizer que uma das colegas que mais se engajou nestas campanhas acabava de defender sobre a escola democrática deste filósofo americano). A família toda estava unida na luta por um pedaço de democracia; até que, quando o pano caiu, ou este estava “provisoriamente” caído, tal como na Matola, a família lutadora pela democracia começa a dividir-se. Razão? Ou melhor culpa? A culpa para a tamanha contenda foi um “tal de Hondt”, que os contestantes dos resultados vieram a descobrir, diga-se, que servira de base para o cálculo, matematicamente racional, para o apuramento “provisório” (o raio do nome que provoca uma certa trégua), segundo o regulamento eleitoral vigente. A racionalidade (professores têm um peso de 50%, CTA 30% e estudantes 20%) está lá, para o contento dos meus estudantes se eu voltasse para à aula. O problema é que a racionalidade não compra a razoabilidade. Esta “diz” que uma vitória, embora racionalmente justificada, não poderia ser atribuída a um candidato que teve menos cerca de 1000 votantes, em relação ao outro candidato, porque estes eram estudantes, aos quais cabia um peso de apenas 20%. Assim, o seu “peso” parecia, para os cálculos da Comissão Eleitoral, não ser o suficiente para que ganhasse aquele que arrecadou mais votos. De novo o jogo das percentagens voltam a criar um conflito entre a racionalidade e a razoabilidade. Assim que escrevo, este “caso” ainda não teve o seu desfecho “normal”.
No entanto, a questão fica para a nossa “jovem” democracia emergente: o legalismo ou jurisdicismo, o matematicismo, o regularismo, etc., ou seja, o racionalismo, são suficientes para manter uma certa base de coesão e consenso sociais (objectivo final da democracia para que as pessoas lutem politicamente e não com armas)? Por quanto tempo vamos sobreviver pacificamente com a fórmula “regras são regras”? Mas este seria um ponto errado, a meu entender, para discutir. Regras são regras. Não se mudam depois do jogo acabar e antes do anúncio do presumível vencedor. Discutem-se primeiro e entra-se em acordo sobre elas. O meu problema, porém, é que os nossos políticos não se preocupam em encontrar uma (pelo menos uma) explicação racional, a fórmula mágica, o modelo de cálculo, por trás das suas decisões e anúncios públicos. Isto é o que me preocupa: sentir-se a necessidade (e o dever sobretudo) de se fazer explicar publicamente duma forma racional, antes mesmo de entrarmos para a questão da sua razoabilidade. A política precisa de dialogar mais com a ciência para o bem da democracia moçambicana, sob o risco de os anúncios públicos sobre as “actualizações” dos preços, sobre o “reajuste” das taxas, sobre os “resultados provisórios” das eleições, e não sei que mais, caírem cada vez mais irracionais, para um público cada vez mais exigente sobre a explicação racional. A comunicação política e pública, numa democracia nova como a nossa, pressupõe um cuidado e rigor antecipado sobre a explicação e os argumentos, para que não fiquemos somente na razão, mas também na razoabilidade.
Por outras palavras, racionalidade e razoabilidade devem juntar-se, por mais difícil que seja. Senão, o jogo da política passará a ser ridículo; ou seja, todos fingem estar sérios, quando, na verdade, cada um gostaria de se rir do outro. Ou seja, a democracia ser assassinada pelo “ridículo” político. Temos que aprender enquanto é cedo: também pela boca das regras assassina-se uma democracia baseada na racionalidade e pouco na razoabilidade das mesmas. Este tipo de “assassinato” democrático é novo no nosso debate público em Moçambique. Mas, se olharmos para o Brasil e os Estados Unidos, notaremos que aqueles que deveriam ser os guardiãs das regras democráticas, estão, em nome delas, a ser os “assassinos” das democracias representativas. Só os podemos neutralizar interrogando permanentemente a racionalidade e a razoabilidade do que se diz ser a “medida”. Com regras também se assassina a democracia!
Sem comentários:
Enviar um comentário