quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Apresentação do Livro A Filosofia do Conhecimento Científico de Gaston Bachelard: Uma Urgência para a Epistemologia Africana? de autoria de José Patimane Blaunde. (Imprensa Universitária, UEM. Maputo, 2018)


Apresentação do Livro A Filosofia do Conhecimento Científico de Gaston Bachelard: Uma Urgência para a Epistemologia Africana? de autoria de José Patimane Blaunde. (Imprensa Universitária, UEM. Maputo, 2018)
Por: José P. Castiano
Há várias estratégias que os apresentadores da nossa praça moçambicana usam. Vou iniciar pela estratégia mais comum que consiste em apresentar e analisar o título do livro. É muito mais fácil. Na verdade é uma boa estratégia, apesar de ser angustiante. Acreditem que, nos casos em que estou sentado nesse vosso lado, quando vou à apresentações de livros – e isto tem sucedido várias vezes nos últimos tempo – e o apresentador começa por anunciar que pretende iniciar pelo título, ponho-me logo a pensar, após fingir estar a prestar muita atenção, a partir do meu lugar de assistência: Ha, este aqui não leu o livro todo! Só nos quer atrapalhar com o título e continuar com a famosa frase ´não poderei falar de todo o livro, senão não irão lê-lo e nem comprá-lo´. Ou então, fico ainda a pensar, da minha poltrona, deste vosso lado: de certeza que ele vai prosseguir com algumas perguntas banais sobre o livro (que qualquer um, na verdade, pode fazer bastando para isso sobreolhar o título, sem ler o livro todo), para depois dizer, adoptando um tom bastante inteligente e dramático: só irei levantar algumas provocações para vos pôr a pensar; e termina convidando para a compra do livro (pronto, o convite e a obrigação de comprarem já está feito. Comprem o livro por favor!).
Na verdade, o livro que o Blaunde teve a coragem de nos oferecer (e peço uma salva de palmas por esta coragem) intitula-se A Filosofia do Conhecimento Científico de Gaston Bachelard: Uma Urgência para a Epistemologia Africana? Então comecemos, segundo esta estratégia, pelo título. Duas questões saltaram-me logo à vista: porquê o autor não acrescentou neste título Laàyê, ficando de seguinte formulação: filosofia de conhecimento de Bachelard e de Lalàyê? Sentí muito a falta de Lalàyê no título. Porquê? Vocês irão ler não é? Então compreenderão a razão por trás do facto de eu notar esta omissão. Basta dizer, por agora, que o nosso autor assume muitas posições profundas de Lalàyê na 3a parte do livro intitulada Epistemologia Africana. Entre tantos manos autores africanos que o Blaunde desfila nesta parte não escapou Tempels, Crahay, Bidima, Cheik Anta Diop e outros. Lalèyê parece ter sido o nfiti nkulu (feiticeiro-mor) africano algumas vezes presente, algumas vezes escondido, mas sempre subjacente, assumindo o papel quase de mediador entre Bachelard e a epistemologia africana que, para Blaunde, urge. Se eu estivesse aí sentado, estaria agora a pensar: mas isto é óbvio, basta olhar para o índice do livro... Este tipo ainda dá mostras de não lido o livro mesmo... (há outros autores que desfilam que assumem a categoria de a-nfiti menores; este é o caso dos manos Jean Marc Ela, Bakabana, Paulin Hountondji e, fazer o quê mesmo, também Léopold Sédar Senghor; estes terão inspirado muito a este jovem autor).
Aliás, ainda pensando bem no título, este jovem é mesmo atrevido. Então ele fala atrevidamente de “urgência” de uma “epistemologia africana”? Existe uma tal epistemologia que seja estrictamente africana? Não saberá ele que, na nossa praça filosófica moçambicana, existem alguns “puritanos” que defendem que uma filosofia somente pode ser a “pura” e “universal”? ou, para ser mais condescendente, “universalista”? É por saber isso, talvez, que, a certa altura, Blaunde, num estilo acutilante de escrita, escreve na pág. 255: “... não é necessário ser nativo do continente negro para estudar a nossa filosofia. O importante aqui é realizar uma filosofia que se interessa pelos africanos e pelos seus problemas” – procurando justificar-se perante os presumíveis puristas. Pois, para Blaunde, o centro para a indagação filosófica que justifique a urgência (já agora, porquê não emergência?) duma epistemologia “africana” é a condição humana de existência do africano hoje, segundo os seus problemas e circunstâncias. Neste ponto Tempels, este pai da “força vital”, lhe socorre-lhe. Pois, Blaunde escreve na pag. 262: “O que significa produzir uma filosofia que interessa em primeiro lugar aos africanos? Pois bem – responde-se a si mesmo o nosso autor – trata-se de falar sobre os problemas concretos destes povos, como fez Tempels” (o quê? – pergunto-me eu torcendo o nariz – Tempels fez isso?). “Como missionário, continua Blaunde na sua cruzada, ele estava em contacto com o povo congolês, tinha entendido a sua vida e aprendido a falar a sua língua: ele cantava, brincava e participava nas cerimónias fúnebres”. (Oba, que beleza! – diriam os antigos escravizados brasileiros – que legal esse cara foi para os africanos!). Na sua caminhada para a tal epistemologia africana, o Blaunde dedica muito respeito pela ontologia, particularmente a da força vital de Tempels, homem este que “estava completamente mergulhado e implicado na vida deste povo”, lê-se na pag. 263.
“Hoje em dia, não há que duvidar da existência da Filosofia Africana. Pessoalmente, passei por esta fase” (i.e., fase de duvidar sobre a existência duma Filosofia Africana) – confessa-nos o autor. Mas em Janeiro de 2012, decidiu efectuar a sua pesquisa por vários países africanos para estudar a situação ... Segundo o autor, teve a oportunidade de visitar a antiga faculdade de filosofia dos Padres Jesuítas em Canisius-Kimwenza (Universidade Católica de Kinshasa), a Universidade de Lumbubashi (onde Tempels apresentou o seu primeiro livro), passou um mês na Universidade do Cairo e de Alexandria no Egipto e, finalmente, foi parar à Universidade Cheikh Anta Diop no Senegal – pode ler-se nas pags. 271-272. (Agôoohra!!! – diriam os manos beirenses – afamba maningue muana (este jovem andou muito!) Leu todos os livros este mano – a minha mãe, analfabeta, imaginava compreender o que seria um doutoramento.) O que estava à procura este jovem por todo lado? A resposta encontramos no subtítulo Por uma Filosofia Africana. É aqui onde ressurge o seu conselheiro-mor Bachelard a soprar ao Blaunde o seu conselho fundamental: “Seria preciso fundar uma filosofia do detalhe epistemológico, uma filosofia científica diferencial que corresponderia à filosofia integral dos filósofos” (pag. 287). E é na base deste conselho que Blaunde, duas páginas adiante, propõe o objecto duma tal filosofia que pretende ser africana (289): “Podemos dizer que a ontologia, a axiologia e a teleologia são as grandes linhas de pesquisa da filosofia africana...” – acrescentando, logo de seguida que “(h)oje em dia, todos os esforços dos filósofos africanos devem concentrar-se numa mudança de paradigma científico”. Deixe-me explicar o que este mano propõe aqui: primeiro ele diz que o objecto da filosofia africana deve ser o homem africano e seus problemas concretos, porém ela, a filosofia, deve manter a sua especificidade de interrogação racional e permanecer crítica. E o que significa isto? Significa que o seu objecto primeiro é a ontologia (nela encontra-se respostas sobre o “porquê” e o “como”); o segundo objecto é a axiologia (a filosofia africana deve aferir os valores, as regras e as normas das sociedades africanas no plano individual e colectivo); em terceiro lugar o seu objecto deve ser a teleologia (“a morte – para os africanos – não é um fim, mas uma mudança de vida para uma vida espiritual”; ou seja, com Bassong, Blaunde diz: “os africanos libertaram a noção de imortalidade”). (Acho que todos se dão conta que em África é tabu matar aos mortos na sua totalidade – há “mortos-vivos”, os antepassados, para usar uma expressão de Mbiti). Mas isto é o que Blaunde aprendeu lá pelos sítios por onde andou. Vamos parar por aí? Não. É preciso, diz Blaunde, advogar por uma ruptura, um corte, uma mudança – à qual ele mais adiante e adentrados no livro, atrevidamente, irá chamar por “capacidade de contradizer” em distância ao até agora o seu mestre-mor: Bachelard.
Mas eu falava de estratégias de começar a apresentar um livro. O tema é esse. Assim, uma outra estratégia – a que eu chamo por “ganhar tempo” – que os apresentadores de livros usam é, logo no início, fazer exactamente o contrário do que adentrar-se pelos conteúdos. Que é “perder” tempo com apresentações e elogios sobre a figura do autor, os seus feitos, sua inteligência, etc... Perde-se tempo com elogios ao autor, tais como .... (sabem que não me ocorre nenhum por falta de experiência nesta estratégia?). Pois, por aqui basta dizer José Blaunde é docente na Faculdade de Filosofia na Universidade Eduardo Mondlane que decidiu surpreender-me um dia com o manuscrito deste livro no aeroporto, quando eu estava a embarcar para Tete. Eu ia embarcar para Tete, Província onde ele, em 1970, nasceu, em Mutarara. Tete é a província do malambe (diz-se que é um bom afrodisíaco), do khongwe (prato saboroso e laxivo, diz-se), do peixe telápia (que lá localmente chamam por txamo quando seco). Mas também é terra do crocodilo, donde muitos recolhem a sua força vital. Não me ocorre nenhum elogio ao Blaunde senão o facto de ele ter provado a sua abnegação em publicar este livro cuja a base foi o texto do seu doutoramento (quantos ainda estão por publicar o seu doutoramento? É um martírio reler, mas sobretudo reescrever um texto já escrito...)
Gostaria de terminar explorando uma terceira e última estratégia de apresentar um livro. É a de fazer de contas que compreendemos o livro. E isto faz-se de uma forma muito simples, deveras enganosa. Procuramos passagens nas quais pensamos estar a ideia principal, a dita tese principal do autor. De facto, cada um de nós descobre as suas próprias teses (e diferentes) de cada vez que lê um livro. Eu penso, desta vez, que a principal tese do Blaunde é ter apresentado, com este livro, duas “rupturas”: a primeira é uma “ruptura” com o próprio conceito “ruptura” de Bachelard; a segunda “ruptura” é com o objecto geralmente assumido como sendo da filosofia africana até agora.
Sobre a primeira “ruptura” com o seu mestre Bachelard: Ele afirma, na pág. 291, que, segundo Bachelard, os ídolos do passado constituem um dos principais obstáculos para o crescimento do conhecimento científico (para a “descolagem conceptual” duma filosofia africana do conhecimento – diríamos com Crahay), com o qual devemos fazer uma ruptura (o outro obstáculo apontado por Bachelard seria a “opinião” que “está sempre errada”, “pensa mal”, “nem sequer pensa” e que “traduz necessidades em pensamento”). No entanto, e ainda segundo Bachelard – diz-nos Blaunde – esta ruptura não deve ser entendida como um corte com o passado, senão como uma mudança que nos permitiria estar livres do peso para construir um novo conhecimento. Aos filósofos africanos se lhes é exigido estabelecer uma ligação com o passado; porém, esta ligação deve ser de forma “crítica” e “não dogmática”. Para expressar isto, Blaunde usa palavras muito complicadas para serem entendidas facilmente pela geração selfie ou que sofre de selfite. Ora vejamos: “...opomo-nos – escreve Blaunde na pag. 292 (é mais ou menos por estas bandas onde os filósofos gostam de esconder os segredos do seu livro; por exemplo) – à descontinuidade contínua de Bachelard e defendemos a continuidade discontínua” (it. meus). (E neste emaranhado de palavras recordei-me de que o seu colega Zeferino Uarrota, filósofo, também da UEM, já teria também defendido uma tese de mestrado sob o título “Do descontinuismo contínuo de Karl Popper ao continuismo descontínuo de Thomas Kuhn”, ou algo assim parecido. Isto mostra, para mim, já um pouco antiquado que sou, que a nova geração de filósofos formados, como o Blaunde, têm, no seu substracto e no quadro dos seus estudos e escritos sobre a filosofia africana, preocupações epistemológicas muito fortes. Teremos ainda muitas surpresas nas próximas publicações desta geração). Mas vou deixar aos presentes deslumbrarem-se pela forma como Blaunde esgrime os seus argumentos neste “descontinuismo continuo” ou “continuismo descontínuo” todo. Uma nota à parte minha: Parece-me que a tradição e o passado são muito pesadas para serem “continuadas” pela filosofia africana; ao mesmo tempo, parece-me que a tradição e o passado são demasiado assustadores para serem descontinuadas (como fazemos hoje facilmente com os cursos universitários) pela filosofia africana: continuamos ou descontinuamos? That is the question... que me parece, em Blaunde, neste livro, atingir um ponto de inflexão.
A segunda “ruptura” blaundiana (aqui sim, já posso finalmente usar este termo que estava a evitar até agora) é o que ele chama “capacidades de contradizer” (pag. 408). É aqui onde está o segredo do livro; é o tal ponto de chegada que (juro, palavra-de-honra) tinha prometido a mim mesmo escrever no meu texto, porém não ler em vós alta para vocês o que isso quer dizer. Enfim, vocês devem comprar o livro. Blaunde escreve sobre este conceito: “A condição para aceder à ciência, pensamos, provém, acima de tudo (it. meu), da capacidade de contradizer o passado, o contradizer o imediato e contradizer o já ensinado”. E página adiante: “Para nós (...), quando se usa o termo ´contradizer´, não se trata de ruptura, pois, na ruptura, não existe continuidade com o antigo.” Assim, segundo Blaunde, quando se acusa a alguém que “você sempre contradiz” estamos a acusar esta pessoa de estar a opor-se às ideias, às experiências ou aos princípios que alguém está interessado em nos inculcar. Para Blaunde é a teoria da falsificabilidade (falibilidade?) popperiana que está aqui subjacente.
No fim das contas, Blaunde nos brinda, com este livro, as suas respostas à questão da “descolagem conceptual” que, em 1963, Krahay já se colocava: sob que condições pode despontar uma epistemologia africana? O velho Bachelard deve estar a remover-se – lá em baixo ou lá em cima, de acordo com as nossas crenças – pelas respostas que o Blaunde dá neste livro.
No livro sobre A Filosofia com Humor, Pedro González Calero, o autor, conta duas anedotas que gostaria recuperar para este propósito do livro. A primeira é sobre como Nietzcshe olhou para Sócrates. Este era conhecido tanto pela sua sabedoria como pela sua feieza para os padões altos de beleza que se punham em Atenas. No entanto, Nietzsche dirá que, para Sócrates compensar a sua fealdade e, deste modo, oferecer algo de interessante pelas ruas de Atenas, este dedica-se à dialéctica (arte da discussão). Assim ele pôde demonstrar que a racionalidade é superior que o resto das coisas mundanas. Ora para Nietzsche começa aí a decandência da filosofia: ao reprimir os instintos humanos e outrogar a razão uma superioridade. Blaunde quer, com este livro, impor à filosofia africana, um element critic – condição para a sua rupture – à sabedoria. Não estará aí o segredo e a origem da subalternalização da filosofia Africana ao sempre querer crescer de forma comparada?
A segunda anedota é sobre um outro filosofo que, tal como Nietzsche, desconfiava da razão: Arthur Schoppenhauer. Este, no fim dos seus dias, ganhara uma certa reputação como filósofo, que não tinha conseguido durante toda a sua vida. Chegou a ser abordado por um professor catedrático que lhe pedira conselhos. Schoppenhauer respondeu que ele deveria fazer como os escorpiões na escuridão: cravar em si próprio o seu aguilhão envenenado! Scheppenhauer odiava tanto aos catedráticos que costumava dizer não temia ser pasto dos vermes após a sua morte, como temia que os catedráticos destroçassem a sua obra O Mundo como Vontade e Representação após a sua morte. E é o que veio a acontecer. Blaunde, prepara-te para que, não somente os catedráticos, como também os universalistas e os puristas filosofos da nossa praça comecem a destroçar a sua obra. Mas, digo, só assim é que ela será reconhecida como merecedora de um lugar nas prateleiras da jovem filosofia, desta vez sim, moçambicana.
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Comentários
Tomas Mario Adorei as duas anedotas: muito mordazes! Muito interessante, Prof. Castiano! Abraço.
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José PC Tomas Mario foi uma honra ter sido lido por si. Abraços ao Ubuntu
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