sexta-feira, 10 de março de 2017

A luta ideológica (Na morte de Américo de Carvalho)


Editorial Novo JornalPublicado 10/03/2017 13:42:00
Há algumas décadas, ser de esquerda correspondia, regra geral, a um percurso que representava uma miscelânea de pensamentos e emoções que juntavam em si valores humanistas, uma visão do mundo esclarecida e uma prática de vida que deixava para quem defendia políticas em defesa dos trabalhadores em geral um lastro ético, moral e de consciência da necessidade de transformar um mundo ao serviço dos então grandes senhores do capital.
Foto: DR
Anos volvidos, grande parte dessa esquerda - nomeadamente a considerada mais moderada como os chamados sociais-democratas ou socialistas - misturou-se com grande afã com os promotores principais do grande festim do capitalismo e do imperialismo e de modos vários facilitou esta generalizada e perigosa fase de "ismos" vários cada vez mais radicais, encostados que foram à direita política, económica, financeira, cultural e sociológica.
Os mesmos que, de ar doutoral e enfatuado, se atrevem a pronunciar dislates como uns que vamos ouvindo e lendo aqui e acolá, onde afirmam, na pequenez da suprema ignorância, que "já não há esquerda nem direita" e onde, pragmaticamente, abrem caminho para os "jeitos e as facilidades" da direita do grande capital - corrupta, antipatriótica, amoral, religiosa (que dá sempre jeito a caridadezinha e o perdão de qualquer deus).
Os mesmos que, já sem grande vergonha, se vão revelando satisfeitos com a vitória trumpiosa nos Estados Unidos, o golpe de estado contra Dilma Rousseff no Brasil, a viragem perigosa a favor dos promotores das ditaduras fascistas dos anos 70 que se vai assistindo na América do Sul ou o cheiro a fascismozinhos na Hungria e na Polónia.
É curioso recordar que uma das características dessa gente de têmpera superior e intocável do ponto de vista moral foi sempre a modéstia. Um exemplo?
Acaba de chegar ao fim dos seus dias, em Paris, Américo Gomes de Carvalho.
Um dos réus do primeiro processo político oficialmente julgado em Angola, na já longínqua década de 40 do séc. XX. O crime de que era acusado: acções subversivas contra o estado português em Angola. Expulso do País que adoptou como seu, esteve em 1974 na frente da luta política, mantendo-se fiel aos ideais de uma vida, integrando o Movimento Democrático de Angola. Muitos anos depois voltou a reencontrar gente angolana (como ele deveria ter tido o direito a ser...) e, no nosso caso, trocámos correspondência permanente até há uma semana.
Dos livros que foi publicando, do último, Notas de Outono, demos aqui notícia ainda há bem pouco tempo. E da sua coerência, da sua verticalidade, do seu profundo amor à Terra, da sua atenção, das suas preocupações relativamente a Angola, mesmo distante, com a dimensão que 97 anos de idade dão a um ser humano. Toda uma vida, todo um caminho do qual não recolheu louros nenhuns, riqueza alguma, a não ser a consciência do dever cumprido.
Poucos o conhecerão hoje, porque a alguns não interessará nunca reavivar estas memórias. Apoucam-nas sempre para poderem empurrar para as fotografias principais os que lhes dão mais jeito, os que lhes são mais convenientes. Figuras de grande dimensão que não mudaram conforme o vento, não trocaram as suas convicções ideológicas por um pedaço que fosse de fama e/ou de aproveitamento.
Homem de esquerda toda a vida, profunda e teimosamente um arauto da liberdade, de ver o ser humano como o ponto de partida e de chegada de toda a acção política que tenha esse nome.
Não fará parte dos livros de História. Não terá nome de rua nem de escola. Mas o nome e a obra passarão de boca em boca e a memória da sua acção não se perderá nas brumas do tempo e do oportunismo político.
Um Homem inteiro que chegou ao fim da sua jornada, mas que é um exemplo dessa diferença gigantesca que separa a esquerda da direita, as noções de progresso e de justiça social, do egoísmo e do atraso secular para onde nos têm conduzido toda a vida os regimes de direita. Até sempre, Companheiro Américo de Carvalho. Não te esqueceremos.

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