terça-feira, 7 de março de 2017

100 anos da Revolução: Porquê na Rússia?

CENTENÁRIO


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Lenine e os seus, que no exílio de Zurique souberam com surpresa da insurreição, lograriam depois, da Estação de Finlândia ao assalto ao Palácio Inverno, acender o rastilho do revolucionário século XX
Faz esta semana um século que começou, em Petrogrado, a revolução de Fevereiro, o movimento popular que viria a resultar na Revolução Soviética.
A Rússia, como Estado de religião ortodoxa, mantinha o calendário juliano, por isso a revolução de Fevereiro é para nós em Março, e a revolução de Outubro em Novembro.
Esse 8 de Março do calendário gregoriano (23 de Fevereiro do juliano) era o Dia Internacional da Mulher, criado sete anos antes por Clara Zetkin, em Copenhaga. Por isso, milhares de trabalhadoras russas desfilaram pela Prospettiva Nevsky. Vinham das fábricas têxteis de Vyborg, exigindo pão, pedindo o fim da guerra e gritando “Abaixo o Czar”. Ajudava-as a brusca melhoria do tempo, que abrandara os frios intensíssimos do Ártico para deixar passar um sol de Inverno, quase primaveril.
A capital chamava-se S. Petersburgo mas, dados o eco germanófilo do nome, fora no princípio da guerra rebaptizada Petrogado. A guerra e a fome estavam na base dos protestos que, ao longo do dia, tinham vindo a juntar às manifestantes muitos outros operários. Convergiam todos para a Duma, o edifício do Parlamento, e nem os polícias nem os cossacos conseguiam já contê-los.
Hulton Archive/Getty Images
Esse 23 de Fevereiro de há cem anos ia ser o primeiro dia do processo que transformaria a velha e santa Rússia na nova e laica União Soviética, o primeiro Estado comunista do universo, um Estado revolucionário que se propunha exportar a sua ideologia e contaminar o mundo com um novo modelo de sociedade. E essa vontade expansionista do novo Estado e da nova ideologia iria acordar forças de resistência que, como resposta, criariam novos modelos revolucionários – o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão – e reactivos modelos autoritários. Em parte significativa da Europa, era o fim dos regimes de democracia liberal.

Exotismo Russo

É à luz do próprio marxismo que a revolução russa surge como um fenómeno inesperado, imprevisto, exótico. A teoria marxista sustentava que a revolução socialista deveria dar-se num dos países de capitalismo maduro – na Alemanha, na Grã-Bretanha ou até mesmo em França –, países com uma industrialização avançada e com um proletariado numeroso e consciente do seu papel na luta de classes e no processo evolutivo da História. Com os seus aristocratas latifundiários e a sua incipiente pequena burguesia de burocratas e quadros médios, iguais aos das peças de Tchekov; com os seus milhões de camponeses pobres e analfabetos, amansados e santificados por Tolstoi; com os seus niilistas maquiavélicos, romanceados por Dostoiévski, a Rússia parecia não poder servir de modelo, em termos de materialismo histórico, para uma sociedade pré-revolucionária.
Mas serviu. A narrativa desses dias e meses que abalaram o mundo costuma explicar tudo pelo caos causado pela guerra, pela passividade do Czar e da Corte, desprestigiados pelo “caso Rasputin”, pela incompetência tonta de Kerensky perante a vontade e a tenacidade de Lenine, pela capacidade estratégica de Trotsky e o fanatismo sem limites dos seus colaboradores. Mas havia na Rússia algumas condições objectivas. O proletariado era já significativo, muito concentrado em volta dos centros urbanos de Petrogrado e Moscovo – em Moscovo a indústria têxtil, em Petrogrado a indústria pesada. A industrialização fora tardia mas intensiva e as condições de vida dos trabalhadores – horários, locais de trabalho, salários – eram infra-humanas, maduras para revolta.

Das Capital como best-seller

O marxismo chegara às elites russas muito cedo. Das Kapital, cuja primeira edição saíra em Hamburgo em 1867, fora traduzido e publicado na Rússia por Nicolai Poliakov, em 1872. O editor apresentara a obra aos censores oficiais que tinham autorizado a publicação com o seguinte comentário:
“Como seria de esperar, muitas passagens no livro revelam as posições socialistas e antirreligiosas do conhecido presidente da sociedade A Internacional. Contudo, apesar de serem violentas e constantes as observações de Marx sobre o tratamento dos trabalhadores pelos capitalistas, o censor pensa que não irão causar grande mal, já que estão mergulhadas numa massa de abstracta e obscura argumentação político-económica que constitui a substância do livro. Pode assim dizer-se, com confiança, que poucas pessoas na Rússia o poderão ler e muito menos entender.” (Citado por Anton A. Fedyashin, Liberals under Autocracy: Modernization and Civil Society in Russia, 1866–1904, University of Wisconsin Press, Madison, 2012, pp. 134-135)
O Capital foi recebido pela intelligentsia russa mais como aquilo que era em substância: um tratado de economia política. Abundaram as críticas ao seu abuso da dialética hegeliana e as comparações das suas teorias do valor com as de Ricardo e houve até avisos vindos da área conservadora de que, baseando-se o livro no estado do capitalismo inglês, seria bom que a Rússia, a entrar na industrialização, se servisse dele para evitar os maus passos e erros da Grã-Bretanha.
Mas O Capital foi um sucesso e a edição de 3.000 exemplares esgotou-se num ano. A edição alemã, de 1.000 exemplares, levaria mais de cinco anos a vender. Dos populistas aos eslavófilos, dos liberais a alguns reaccionários, não lhe faltaram leitores para o louvar ou para o condenar. As teses sobre o movimento da História, as digressões e o aparato científico caíam bem na burguesia letrada e nos estudantes que tinham já o seu caldo de cultura de racionalismo e materialismo.
Até porque, no seu conjunto, a obra de Marx era optimista, prevendo um progresso – económico, científico e tecnológico – que, na etapa final da História, acabaria por atingir a Rússia, implicando que, também ela, poderia alcançar os valores ocidentais, liberalizando-se, democratizando-se, desenvolvendo-se, socializando-se. Era mais uma utopia socialista…
Lenine e os seus, que no exílio de Zurique receberam tarde e com surpresa a notícia da revolução da Rússia, encarregar-se-iam do resto. E reencontrariam na velha Rússia muitos correligionários. Com eles, da Estação de Finlândia ao assalto ao Palácio Inverno, iriam acender o rastilho do revolucionário século XX de que agora estamos a sair.
Pedro Torres de Castro
1 h
     
«A revolução anticapitalista da Rússia acolhida com alegria pela alta finança internacional de Nova Iorque.  
   
O golpe de Kerensky custou a Jacob Schiff doze milhões de dólares. 

 O "New York Times" de 10 de Abril de 1917, publicou dois telegramas, trocados entre Milioukof, primeiro Ministro dos  Negócios Estrangeiros do governo revolucionário russo e Jacob Schiff, Director do Banco Kuhn, Loeb e Cia., de Nova-Yorque.      
Ver páginas 66-67 da reportagem “Trinta Anos de Comunismo, I
 da Brotéria volume 46  de 1948
João de Morais e Almeida
1 h
Artigo muito interessante.

Avisem o Presidente Marcelo para não se enganar nas datas (por causa do Calendário Gregoriano)  porque senão dá ao Putin os parabéns pelas revoluções nos meses errados...
Josephvs Alves
2 h
Um esboço  muito fraco!

PS: "czarismo"  em portuguez diz-se Monarquia
J Sm
4 h
Um bom e elucidativo artigo como seria de esperar. No entanto é preciso ter cuidado para falar do czarismo e do czar como se a república fosse o melhor dos regimes. Não é como se provou na união soviética, na Alemanha e por todo o século vinte até aos dias de hoje. Não há regimes perfeitos mas a república moderna já provou que é o mais imperfeito. A não ser que estejam a pensar nos estados unidos, nas bombas atómicas ou no Trump!
Antonio Castro
5 h
Felizmente tenho, no pacote imenso de canais televisivos que a NOS disponibiliza, o canal ARTE, e foi nele que pude, há dias , mergulhar em pleno na revolução de 1917. Infelizmente, a «box» não permite rever os programas emitidos por este canal , e por isso não posso deixar a sugestão , a quem não o tivesse visto, de deliciar-se com aquela difusão que, no entanto, não mencionou, nomeadamente, o episódio da publicação e interpretação da obra « Das Kapital» em terras russas  que Nogueira Pinto , cheio de oportunidade,nos narra .  Aliás, a propósito da publicação de obras de grande relevo na história europeia do « grande século passado» , vieram-me à ideia os debates intra-germânicos antes da recente decisão do Estado da Baviera em se proceder , após 70 anos de pausa, à re-publicação da obra « Mein Kampf»  -  já disponível na net... - , que, finalmente, aconteceu , depois de expressas na edição  circulada, os julgados necessários esclarecimentos  interpretativos. 
P.S.: leio, com tristeza, que foi cancelada ,à última hora, por pressão de um grupo de irrequietos e activos alunos universitários «maoistas» ,uma intervenção/conferência de Nogueira Pinto sobre Trump, o brexit, a Europa. Espero que a Direcção dessa Universidade «caia em si» e volte a convidar o historiador . Não fazê-lo revelaria uma menoridade intelectual confrangedora.   
  
Elodie Moses
5 h
Essa das "massas de camponeses analfabetos" até deve ser verdade. Mas a rússia fez um extraordinário esforço na alfabetização das crianças no final do sec XIX, pelo que de acordo com o respeitado demografo Emmanuel Todd, na altura da revolução mais de 80% dos homens entre os 18 e os 30 anos sabia ler. Havia portanto uma população instruida, jovem e sem nada a perder, parece-me propicio para uma revolução.
Pedro Torres de CastroElodie Moses
2 h
Esclarecimento oportuno.
Parabéns.
E no que me toca, obrigado pela informação.
fernando simoes
6 h
É no entanto interessante observar que o marxismo vinga (à força claro está) precisamente num país atrasado (a Rússia) e não nos países industrializados, para os quais se dirigia, onde supostamente o proletariado se revoltaria contra o capitalismo. É também de realçar o papel da Alemanha na implantação do marxismo na Rússia, pois foram os alemães que foram buscar Lenine a Zurique para o levar para Moscovo, para assim minar o regime czarista. Era uma manobra que a guerra impunha.
E o dinheiro, vindo de multimilionários judeus sediados nos USA para se vingarem das perseguições czaristas , foi Leon Trotsky buscá-lo à Finlândia
Pedro Torres de CastroMCMCA A
1 h

Isso vem descrito com importantes pormenores, por Agostinho Veloso, num seu trabalho intitulado, "100 anos de Comunismo" em 1948.
victor guerra
6 h
A Rússia czarista apresentava  uma profunda desigualdade entre a aristocracia inútil e o povo,numa sociedade onde se afirmavam artistas e intelectuais.A agrura da 1ª Guerra ditou o desiquilibrio.Não há um guião para estes acontecimentos,antes condições.Depois acontecem,ou não.É fácil criticar "depois do jogo" ,o que foi uma significativa passagem da história da Humanidade,que acabou mal.Mas,muitos criticam com a maior ligeireza ,uma que corre bem e ainda é mais EXCEPCIONAl.A União Europeia
Filipe Campos
6 h
A Rússia czarista era um país pobre, demasiado pobre, tendo em conta os recursos existentes. Foi terreno fértil para a propagação da mensagem "distorcida" de Marx por parte de Lenine, já que as purgas, os assassínios em massa, a morte de milhões de compatriotas "só porque sim" nada faziam parte da literatura de Marx. A interpretação e manipulação feita primeiro por Lenine para chegar ao poder e depois por Estaline para se manter e tudo o que daí resultou, representam talvez o período mais negro da história só comparável com o holocausto e a solução final adotada pela Alemanha Nazi e as purgas maoistas. 
José SousaFilipe Campos
3 h
Marx já era um distorcido. Inventou estatísticas na sua obra, quando a realidade não corroborava as sua ideias, era um fulano que ninguém gostava pessoalmente, traidor dos seus amigos e parasitava a sua família. Vivia como um burguês à custa dos seus próximos. Confira.
Esta maneira de estar fez escola em muita esquerdista. 
A terrível manipulação intelectual do marxismo-leninismo tão magnificamente exposta no célebre livro de Arthur Costler Zero e infinito (Darkness at noon)
Josephvs AlvesFilipe Campos
2 h
hehe mais um comunista LOL
Filipe Campos
6 h
Sempre um prazer ler o Dr. Jaime Nogueira Pinto. Das pessoas mais cultas deste nosso Portugal. Digo isto mesmo não partilhando a visão politica do Dr. Jaime, sobretudo em relação a Salazar e às suas virtudes, mas, o Dr. Jaime Nogueira Pinto é um exemplo de saber estar mesmo quando confrontado muitas vezes com aquelas estranhas personagens - sobretudo de extrema esquerda - que julgam que a verdade e a razão os acompanham sempre. 

Espero que o Observador reserve uma coluna ao Dr. Jaime Nogueira Pinto, porque as opiniões de pessoas como ele valem sempre a pena ser lidas e debatidas. 
Fernando Ribeiro
8 h
 Dr. Jaime Nogueira Pinto, eu não sei se estamos a sair... pelo menos no mundo ocidental, não parece.
Amora Bruegas
15 h
Bom artigo, focando aspecto que desconhecia. Tenho pena que os descendentes da turba soviética, tenha ameaçado a Direcção da Escola e esta por cobardia tenha proibido o inofensivo debate sobre verdades que incomodam..., incomodam sempre os socialistas!

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