Magid Osman.
Magid
Osman foi uma das figuras que participaram no conturbado processo de
construção do Estado, a seguir à independência. Ocupou, entre outras
funções, o cargo de ministro das Finanças.
Onde estava Magid Osman na altura da luta de libertação?
No
meu caso particular, a minha participação é mais intensa após a
independência nacional, porque, antes da independência, eu trabalhava
numa instituição financeira em Portugal, a Caixa Geral de Depósitos, e a
actividade política, na altura, fazia-se, fundamentalmente, através das
forças que em Portugal lutavam contra o colonialismo. Portanto, ainda
não tinha um contacto com a Frelimo, embora acompanhasse a luta da
Frelimo. Esse contacto faz-se imediatamente a seguir ao 25 de Abril, em
Portugal. Fui contactado por algumas pessoas para regressar e só pude
regressar em Janeiro de 1975 (...). Comecei por trabalhar, na altura, no
Ministério da Administração Interna, que era dirigido pelo actual
Presidente, Armando Guebuza.
E qual foi a motivação para deixar Moçambique?
Na altura, fui fazer o curso superior de Economia e Finanças em Lisboa, porque não havia ainda este curso
em Moçambique. Depois de concluir o curso, fiquei mais dois a três anos
em Portugal, como assistente universitário - ensinava matemáticas
gerais e trabalhava na Caixa Geral de Depósitos. Não tinha grande
vontade de voltar a um Moçambique colonial. Era mais fácil participar na
vida política em Portugal do que em Moçambique, na altura colonial.
Como é que essa consciência política materializa-se em acções concretas em Moçambique, quando retoma em 1975?
Fui
colocado no Ministério da Administração Interna. Isso tinha como
objectivo fundamental testar o grau de compromisso das pessoas que
voltavam para Moçambique, e eram muitas. No meu caso particular, fui
colocado no Ministério da Administração Interna, embora a ideia inicial
fosse a de trabalhar num banco, mas fui para o Gabinete de Estudos, e
havia, digamos, a indicação de que deveria ir para a província do
Niassa, o que nunca chegou a acontecer. Mas, de qualquer maneira, era um
teste para saber se a pessoa tinha um compromisso firme ou não. No meu
caso particular, o compromisso era firme, porque, mesmo quando estava em
Portugal, a ideia de voltar para Moçambique era tão forte que as
oportunidades de constituir raízes em Portugal foram rejeitadas. Por
exemplo, trabalhava numa instituição financeira e podia obter empréstimo
em condições excepcionais para adquirir uma casa, mas não o fiz, porque
não queria criar raízes. Queria ficar completamente disponível para
voltar para Moçambique. E mesmo mais tarde, quando em 1992
saí de Moçambique para trabalhar para as Nações Unidas, em Nova Iorque,
continuava com o propósito de voltar, não obstante ter uma posição
muito elevada nas Nações Unidas. Quando viajava pelo mundo fora em
missões de consultoria a vários governos, sentia uma certa saudade de
participar na vida política, o que mantinha o desejo de voltar para
Moçambique, para dar a minha contribuição. Havia o receio em relação à
saída dos quadros portugueses, mas ao mesmo tempo a convicção de que ia
acelerar o processo de formação dos quadros nacionais.
E acelerou, ou melhor, criou uma certa pressão?
Criou
uma pressão, mas também criou dificuldades. Dou exemplo vivido por mim.
saí da Administração Interna para o Ministério das Finanças, como
director nacional de Finanças, e, na altura, tutelava quase todos os
sectores, com excepção das Alfândegas, que eram uma unidade
independente. Para suprir a falta de quadros, recrutámos 20 jovens que
estavam na fase final da formação universitária, para criar capacidades
nacionais, e devo dizer que alguns portugueses ficaram mais alguns anos e
deram uma contribuição importante na formação e enquadramento de
quadros moçambicanos. Posso dar exemplos de algumas
pessoas que trabalharam comigo: Ibraimo Ibraimo - que hoje é presidente
Executivo do BCI, era chefe do Departamento de Finanças (mais tarde
director nacional), e acabou o curso de Direito quando ainda trabalhava
comigo, e como ele havia muitos outros quadros, como Bonifácio Dias,
inclusive a antiga primeira-ministra Luísa Diogo, mas no caso dela
concluiu o mestrado no ensino à distancia, numa iniciativa que foi
desenvolvida ao nível do Ministério das Finanças, com a Open University
de Londres. Foi uma - entre muitas outras - iniciativa de formar quadros
sem perder capacidades que eram necessárias para a gestão corrente do
Ministério. Houve um esforço muito grande de formação não só académica,
mas também formação no lugar, e isso era absolutamente crucial, porque,
ao contrário de muitas outras instituições, a Direcção nacional de
Finanças não podia passar por grandes perturbações, como aconteceu em
outras instituições públicas, pois tinha muitas exigências correntes por
cumprir - preparar os orçamentos, pagar as despesas públicas, assegurar
o pagamento de salários, gerir a dívida pública, cobrar impostos, etc.,
sob pena de paralisar sectores importantes da administação pública. Ao
contrário do que aconteceu em muitos países africanos, em
que o funcionário público ficava períodos longos sem receber salários,
Moçambique conseguiu evitar esta situação. É uma tradição que, no
essencial, se mantém ainda hoje.
Logo
após a independência, depois de ultrapassarmos o desafio da libertação
nacional, vieram os desafios de construção de um Moçambique novo, um
Moçambique nas mãos dos moçambicanos. Em 1977, a Frelimo organiza o seu
congresso, onde traça várias políticas de desenvolvimento, incluindo
aspectos económicos e sociais, com a colectivização dos campos.
Relativamente ao Plano Prospectivo Indicativo, qual foi a visão dos
economistas moçambicanos nessa altura, em particular do Dr. Magid Osman?
Talvez
seja útil lembrar alguns dos fenómenos que aconteceram logo a seguir à
independência. Primeiro, a economia de Moçambique era extremamente
dependente da África do Sul. Tínhamos milhares e milhares de
moçambicanos que trabalhavam na África do Sul, cujas remessas, em
particular daqueles que trabalhavam nas minas, eram convertidas em ouro,
a preço oficial, ou seja, 36 dólares por onça. Este ouro era vendido -
pelo menos parte - ao preço de mercado, que subiu drasticamente,
passando para os 200 dólares. O ganho, que era grande, sustentou durante
algum tempo o funcionamento regular da nossa economia. E o
governo sul-africano, consciente da importância deste ganho para a
nossa economia, denunciou unilateralmente este entendimento, deixando
por isso de converter parte dos salários em ouro a preço oficial. Além
disso, começou a reduzir significativamente o número de trabalhadores
moçambicanos nas minas sul-africanas, uma prática que se estendeu a
outras áreas – reduziu o uso do porto de Maputo, que chegou a manusear,
no período colonial, cerca de 14 milhões de toneladas/ ano, desviando a
carga sul-africana para os portos sul-africanos. Em consequência, nos primeiros anos de Independência Nacional, surgiram dificuldades enormes para manter
a nossa economia a funcionar, e é exactamente na altura do Congresso
que surgem as carências generalizadas de produtos de primeira
necessidade, o que determinou a necessidade de criar um sistema nacional
de abastecimento, para assegurar que as populações urbanas tivessem
acesso a um mínimo para a sua sobrevivência. E foi nessa na altura que,
numa decisão pouco pensada, se contraiu um empréstimo, do Brasil, de 200
milhões de dólares para comprar bens de consumo, e, obviamente, estes
bens de consumo aliviaram a situação de abastecimento apenas por um
período curto de tempo. E rapidamente voltámos à situação de carência
generalizada nas cidades, em particular na de Maputo. Esta solução, que
não era sustentável, criou um outro problema, o de não conseguirmos
honrar os nossos compromissos em termos da dívida que tínhamos assumido.
Estávamos super-endividados, e não conseguíamos pagar.
Isso
significa que tínhamos dificuldades em várias frentes ao mesmo tempo,
grande parte das quais com origem na sabotagem económica e militar dos
sul-africanos, às quais se acresceram outras, como a de não termos
acesso aos mercados financeiros internacionais, porque estávamos em
incumprimento sistemático das nossas obrigações. As nossas exportações
também começaram a cair, por razões que não vale a pena mencionar. O
Serviço Nacional de Abastecimento (SNA), quando foi criado, era
fundamentalmente para assegurar que as populações urbanas tivessem
acesso a alguns produtos básicos em quantidades muito limitadas e preços
controlados. no mercado, os mesmos produtos, quando existissem,
custavam 20 vezes mais do que os preços controlados. Esta é a vivência
que tínhamos do dia-a-dia no que toca ao abastecimento. Como é que surge
a ideia do PPI – Plano Prospectivo Indicativo? O impacto das sanções à
Rodésia foi enorme e afectou-nos a vários níveis, pois o porto da Beira
deixou de funcionar, porque servia, fundamentalmente, a economia
rodesiana. Na reunião do Conselho de Segurança que discutiu esta
questão, Moçambique estava representado pelo então
ministro dos Negócios Estrangeiros, Joaquim Chissano, que apresentou o
porquê das sanções e solidariedade que esperávamos da comunidade
internacional, e, na altura, pedimos o apoio de economistas experientes
para a preparação de um programa que identificasse as nossas
necessidades para um eventual apoio da comunidade internacional. Mas os
economistas solicitados não vieram e decidimos, por isso , juntar
dezenas de quadros moçambicanos e alguns portugueses com grande
experiência da realidade moçambicana para elaborar esse programa. Foi um
exercício colectivo que envolveu muita gente e permitiu fazer, pela
primeira vez, um esforço de programação. Este programa foi
mais tarde apresentado numa nova reunião do Conselho de Segurança, e a
delegação moçambicana era chefiada por Marcelino dos Santos, que era, na
altura, o ministro do Desenvolvimento, para apresentar aquilo que
pensámos que seriam as nossas necessidades. Foi, digamos, o primeiro
exercício de programação na utilização de meios para satisfazer as
necessidades consideradas prioritárias (...), depois disso houve muitos
outros esforços de planificação que deram origem, mais tarde, ao PPI.
Quanto ao apoio da comunidade internacional, ficou-nos uma lição –
qualquer emergência em termos de apoio da comunidade internacional tem
uma duração muito limitada, até surgir outra emergência. Tivemos uma
ajuda considerável no primeiro ano, mas, depois, foi baixando, porque,
entretanto, surgiram outras emergências em outros pontos de globo e os
países esqueceram-se das necessidades de Moçambique, e, em
consequência, tivemos que arcar sozinhos com as consequências
económicas e outras das sanções. É verdade que as sanções foram
aplicadas por uma causa nobre, mas o sacrifício que tivemos que suportar
foi imenso, e o mesmo não acabou com o regime de Ian Smith, pois,
entretanto, surgira um inimigo mais poderoso, que era o regime de
apartheid. Um economista americano, Reginald Green, estimou que a
redução do PIB de Moçambique, por causa da guerra de desestabilização,
tinha sido brutal, isto é, todos os anos, a produção de Moçambique
decrescia consideravelmente, ao ponto de, em alguns anos, termos
perdido no conjunto o equivalente à produção de um ano. Hoje, quando em
alguns países europeus a economia decresce menos de 1% há tumultos e uma
profunda crise política. No nosso caso, a queda da produção durante
anos e anos foi violentíssima, com destruição massiva de
infra-estruturas, pontes, centenas de escolas, postos de saúde, empresas
paralisadas, etc..
De onde é que surgiu a ideia do Plano Perspectivo Indicativo?
A
ideia de preparar o Plano Prospectivo Indicativo resulta de um discurso
do Presidente Samora Machel, em que traça os objectivos a longo prazo,
onde define que é necessário criar uma fábrica têxtil em todas as
cidades e enumera outros projectos regionais. e aproveitou-se alguma
experiência anterior de programação, por exemplo, aquando do Congresso,
com a preparação das directivas económicas e sociais, para iniciar a
preparação do plano. Este processo de preparação era abrangente, com
muitas reuniões participativas, e com pessoas de todos os quadrantes, e
este processo era, digamos, uma marca da Frelimo. Lembro-me que se faziam
reuniões que iam até à meia-noite a discutir as directivas económicas e
sociais, e, às vezes, tínhamos discussões muito agitadas entre as
pessoas que não concordavam com determinado tipo de objectivo. Alguns
não concordavam em absoluto com a ideia das directivas, outros porque
achavam que os objectivos fixados não seriam atingidos por serem
irrealistas, e noto que, na altura, as directivas económicas e sociais
eram muito detalhadas e tinham, inclusive, metas quantificadas. Importa,
também, salientar que este processo era mais importante
que o resultado, pois embora algumas metas fixadas fossem irrealistas, o
processo, no entanto, permitia que muitos problemas e soluções fossem
adequadamente internalizados, facilitando a definição das medidas e a
sua implementação. A outra experiência anterior foi a de organização do
Plano Estatal Central (PEC), que passou a ser uma referência nacional.
Em qualquer distrito do país mencionava-se o PEC, o que revela a grande
capacidade mobilizadora da Frelimo. Como disse, o programa de
emergência, aquando das sanções ao regime de Ian Smith, terá sido
pioneiro neste esforço de programação. Na elaboração do PPI, seguiu-se o
mesmo processo de participação, e muitos projectos nele contemplados,
tidos como irrealistas, estão hoje a tornar-se realidade, mas com um
conceito de modelo de negócios completamente diferente. Recordo-me que,
na altura de preparação do PPI, discutíamos se a meta para o carvão
seria 10 ou 12 milhões, e existia um consenso generalizado de que era
uma meta quase impossível, e hoje a meta para o carvão situa-se entre
100 e 120 milhões de toneladas por ano. Isso revela que, afinal, o PPI
não era assim tão ambicioso e irrealista, pelo menos no que se refere a
recursos minerais. O mesmo se pode dizer em relação ao alumínio,
cimentos, etc. Infelizmente, as metas referentes à agricultura não têm
tido o mesmo comportamento. O PPI pecava no facto de considerar que o
Estado faria todos os investimentos necessários. ora, o Estado -
incluindo as empresas públicas - não tinha capacidade, nem em termos
financeiros, nem em termos de capacidade de gestão e técnicos. A nossa
base de recursos humanos era e continua a ser muito débil. Hoje, são as
grandes multinacionais que tornam uma versão muito mais avançada do PPI realidade, pelo menos em alguns sectores.
Na
década 80, os desafios tornaram-se cada vez maiores para o partido
Frelimo. Houve pressão vinda da guerra de desestabilização, das calamidades naturais, com cheias seguidas
de secas e vice-versa, criando fome generalizada, agravada pelo grande
número de refugiados (...) que não estavam de acordo com a
linha de desenvolvimento que o partido Frelimo tinha traçado, o que o
obrigou a abandonar o modelo de economia centralmente planificado para
liberalizar a economia. Como é que viveram esses momentos? Qual foi o
nível de influência de Magid Osman desde os primeiros anos da mudança,
nas visitas aos EUA, na adesão às instituições de Bretton Woods até à
elaboração do Programa de Reabilitação Económica (PRE)?
Falava,
muito recentemente, com um colega sobre este assunto, destacando a
qualidade dos dirigentes da Frelimo, que mesmo em situações desesperadas
mantiveram a determinação de optar por soluções políticas correctas em
cada momento, pois eram propostas soluções que aparentemente resolveriam
o problema do conflito, mas a longo prazo transformariam o país numa
neo-colónia. Exemplificando, tentou-se, em determinado momento, devolver
as casas aos donos anteriores à Independência Nacional, e no caso de
sul-africanos, as casas que tinham na Ponta de Ouro, como um gesto de
rendição disfarçado como sendo de boa vontade. Por outro lado, pode
imaginar o desespero provocado pela escassez de recursos. a Defesa e
Segurança absorviam uma grande percentagem de recursos do Estado, mas
era manifesto que este esforço, mesmo desproporcionado, era
insuficiente, porque o abastecimento às forças armadas continuava sendo insuficiente. A destruição de infra-estruturas e de equipamento era colossal - locomotivas recém-adquiridas eram destruídas na primeira emboscada e cada uma das locomotivas custava 1
milhão de dólares que faziam falta para o funcionamento de outros
sectores. As linhas de alta tensão eram sabotadas e havia falta
sistemática de energia nas cidades; compraram-se dezenas de camiões para se transportar o chá de Gurúè, que foram também destruídos.
E
como é que foi para o Presidente Samora Machel aceitar a ideia de que é
preciso “bater a porta” das instituições de Bretton Woods e estabelecer
contacto com os americanos? Creio que foi em 1983 que fez a primeira
viagem e já em 1984 Moçambique fazia parte dessas instituições de
Bretton Wodds.
A
Frelimo tinha um princípio que era o de criar amigos para isolar o
inimigo, e, a partir de uma certa altura, a direcção da Frelimo terá
percebido que o modelo que estava a seguir de contar apenas com ajuda
dos países socialistas, em particular da União Soviética, não resolveria
nem o problema da situação de guerra que nós vivíamos, nem traria os
meios económicos necessários para o processo de desenvolvimento, e,
sobretudo, não isolaria o inimigo. Por exemplo, os Estados Unidos, que
não eram propriamente um país amigo, tornam-se, no âmbito do programa de
emergência, o principal doador em termos de ajuda alimentar, digamos
que eram o principal suporte do programa de emergência. Além disso, a
ajuda que recebíamos dos países nórdicos e de outros países europeus ultrapassava em grande medida a ajuda proveniente de países socialistas, em que só a União Soviética, RDA e Cuba davam alguma contribuição significativa. O apoio vinha também de outros quadrantes, por exemplo, vivíamos o drama anual de assegurar
o fornecimento dos combustíveis, pois não havia divisas para a sua
importação, e isso levou-nos a procurar apoio dos países produtores de
petróleo. Por exemplo, o Iraque vendeu-nos 300 mil toneladas de crude a
crédito. Depois a Líbia, e seguir a Argélia
venderam-nos a mesma quantidade, também a crédito. Quando foi esgotado o
apoio destes três países, que não repetiam este tipo de ajuda porque não conseguíamos honrar o serviço da dívida, procurávamos apoio de outros países, embora sem grande sucesso .
Em
1986, em Abril, foi convidado a ocupar a pasta de ministro das
Finanças. Que desafios encontrou neste Ministério, tendo em conta a
situação do país?
Em
1986 fui indicado, mais do que convidado, para assumir a pasta de
ministro das Finanças, e a razão fundamental era a consciência ao nível
da direcção do país que era necessário mudar, experimentar outras
soluções de gestão económica. Na terminologia moderna, dir-se-ia que era
necessário um agente de mudança, e governo na altura, no seu conjunto,
foi um agente de mudança, e isso foi possível porque
o ambiente político era favorável à mudança. Com isso, quero dizer que
não basta uma vontade própria e subjectiva, pois é necessário que
existam outras condições propícias para que as mudanças ocorram. As
crises criam, por vezes, essas oportunidades.
E qual foi a mudança mais marcante?
A
mudança mais marcante foi termos introduzido uma economia de mercado.
Ou melhor, preparámos um programa que, na altura, se designou PRE, que
teve a contribuição de muita gente e cujo objectivo foi introduzir a
afectação de recursos pela via das forças de mercado. Esse processo foi
muito complexo em termos negociais. Por exemplo, não conseguimos
convencer o FMI de que estávamos determinados a introduzir as medidas
previstas no PRE, pois, no passado, tinha havido promessas que não foram
implementadas. Isto é, embora gostassem do nosso programa, não acreditavam na nossa capacidade de implementação, porque não tínhamos credibilidade. A solução de compromisso foi a de iniciarmos a implementação em Janeiro de 1987, sem um a acordo formal com FMI , o que veio a
suceder alguns meses mais tarde, depois de implementar as primeiras
medidas. Um acordo com o FMI, politicamente, era crucial, pois
representava uma disponibilidade institucional para evoluir para uma
economia de mercado e traduzia a imagem de que a direcção da Frelimo
era, acima de tudo, pragmática e nacionalista. Isto é, estava disponível
para adoptar medidas que fossem as mais convenientes para os interesses
nacionais. O Presidente Samora, certamente,
interrogava-se sobre o que seria melhor para Moçambique, socialismo ou
capitalismo? E respondia a esta questão com outra: “Mas se o capitalismo
é tão bom”, dizia ele, “por que é que o Malawi não se desenvolveu?”,
e dizia que “não tenho problema nenhum de seguir a via capitalista,
desde que a cidade de Maputo possa, no futuro, ser como a cidade de Nova
Iorque”. Contudo, a adopção do PRE, que chegou a ser aprovado pela
Comissão Política, presidida pelo Presidente Samora, revela que o
pragmatismo tinha se sobreposto à ideologia.
O
PRE significou uma viragem muito profunda para a banca nacional, num
contexto em que a guerra também criava uma certa pressão sobre a
estabilidade da economia. Por um lado, o Governo queria que as empresas
funcionassem, para dar conta deste programa de reabilitação económica e
evitar que dezenas de milhares de pessoas fossem desempregadas, por
outro, havia a necessidade de se criar uma classe
empresarial. O que é que mais determinou para a atribuição de crédito
sem muito rigor naquela altura? Foi a questão do incentivo à emergência
de uma classe empresarial ou o facto de se querer garantir que as
empresas não entrassem em falência?
Uma
das características do PRE foi exactamente tentar disciplinar o
funcionamento das empresas estatais. O que é que isso significou?
Significou que os bancos deviam começar a avaliar a concessão do crédito
na base de mérito, com a excepção de algumas empresas estatais que
tinham uma importância muito grande para a economia, por
isso, não podiam ficar paralisadas, mas mesmo nesses casos foi
introduzida disciplina orçamental. Muitas empresas (eram centenas), que
tinham a tradição de ir buscar dinheiro à banca, na altura o BPD e o Banco de Moçambique, deixaram
de ter acesso automático a esses créditos. Significa que as empresas
com comissões administrativas entraram em ruptura financeira que era
esperada, pois, logo a seguir, implementou-se um programa ambicioso de
privatização. Portanto, o PRE fez um saneamento e racionalização da maior parte das empresas com comissões administrativas .
Magid
Osman testemunhou vários projectos de combate à pobreza do governo da
Frelimo, desde o PPI, PRE, até ao PARPA, mas a pobreza continua a ser um
dos grandes desafios do governo da Frelimo. Qual é, de facto, o modelo
mais acertado para reduzir a níveis bastante significativos a pobreza
que nos assola?
Quando
falamos de pobreza, economia e desenvolvimento, podemos, numa expressão
muito simples, dizer que desenvolvimento é fundamentalmente o aumento
de produtividade. Portanto, se não há aumento de produtividade não há
desenvolvimento e, sobretudo, não há alívio de pobreza. O
que é que contribui para o aumento de produtividade? São vários factores
que confluem para o aumento da produtividade: a criação de
infra-estruturas, que nós chamamos capital físico, equipamento moderno,
capacitar as pessoas (através de educação e formação e organização de
trabalho mais eficiente) para que sejam mais produtivas no dia-a-dia.
Enquanto não conseguirmos aumentar a produtividade dos nossos camponeses
do sector familiar, será extremamente difícil termos sucesso no combate
à pobreza. Para mim, a questão essencial é o aumento da produtividade
dos nossos camponeses. Jeffrey Sachs, economista americano, faz
referência a esse aspecto de uma maneira mais ilustrativa, quando se
refere ao exemplo das mulheres de Bangladesh, que saem do campo para a
cidade para trabalharem nas fábricas de confecções em
condições muito difíceis (pois, porque vivem em camaratas, comem em
refeitórios, a vida privada é muito restrita, etc...), mas, mesmo assim,
sair do mundo rural (onde as condições são muito piores) para ir
trabalhar numa fábrica de confecções representa um salto histórico.
Porque ela deixou de ser uma mulher rural (sujeita à brutal pressão e
condicionamento que resulta da tradição) e passou a ser uma operária,
aumentou a sua consciência política e dos seus direitos, dado que passou
a ter acesso a todo um conjunto de informações que não tinha enquanto
mulher rural. Diz ainda Jeffrey Sachs que o
campo não se pode transformar sozinho, exige um grande investimento de
transformação . Por exemplo, o nosso camponês, entregue a si próprio,
não vai conseguir aumentar a produtividade de 400 a 500
quilos de algodão por hectare, para, como acontece na África Ocidental,
produzir 1500 a 1600 quilos de algodão por hectare, sem uma intervenção
mais forte do Estado e de outros agentes económicos.